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Função punitiva da responsabilidade civil: Necessidade de fixação de critérios no novo Código Civil

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Atualizado às 10:22

Introdução

Em 04 de setembro de 2023, iniciaram-se os trabalhos da comissão de juristas instituída pelo Senado Federal, presidida pelo Min. Luis Felipe Salomão (STJ), com a missão de elaborar a proposta de atualização do Código Civil (lei 10.406/2022). Essa recente iniciativa do Poder Legislativo acendeu debates e reflexões importantes na sociedade, sobretudo nos ambientes acadêmicos.

Nessa esteira, o objetivo deste artigo é identificar, sob o enfoque da análise econômica do direito, potenciais pontos de aprimoramento da legislação no que se refere à função punitiva da responsabilidade civil, cuja aplicação pelos tribunais ainda carece de critérios claros e segurança jurídica.

A opção pela abordagem econômica se justifica pela sua ênfase na eficiência como parâmetro qualitativo de soluções jurídicas, o que em nosso entendimento contribui para a racionalização do direito e para o desenvolvimento social e econômico da sociedade brasileira.

O regime da responsabilidade civil

O tratamento dado ao regime da responsabilidade civil, no direito brasileiro, é proveniente de uma longa tradição do sistema romano-germânico, segundo a qual a indenização cível tem por objetivo, conforme ensinava Antunes Varela: "prover à directa remoção do dano real à custa do responsável, visto ser esse o meio mais eficaz de garantir o interesse capital da integridade das pessoas, dos bens ou dos direitos sobre estes" (Varela, 2008)1.

O critério de avaliação do dano, por sua vez, nem sempre esteve atrelado somente a seu conteúdo econômico. Durante muito tempo, preponderaram nas civilizações antigas métodos rudimentares e violentos de reparação civil, calcadas na vingança privada e pessoal, consideradas uma "forma primitiva, selvagem talvez, mas humana, da reação espontânea e natural contra o mal sofrido; solução comum a todos os povos nas suas origens, para a reparação do mal pelo mal". (LIMA, 1938, p.10)2. Essa mesma concepção de justiça e reparação fundamentou a histórica Lei de Talião, conhecida pela regra "olho por olho, dente por dente".

Na Roma Antiga, em um ímpeto de inovação institucional, a noção de dano passou a se vincular estreitamente à lesão a interesses patrimoniais, especialmente sob a égide da "lex Aquilia", instituída no Séc. III a.c, que estabeleceu as bases para a responsabilidade extracontratual (conhecida hoje também pela denominação "responsabilidade aquiliana") Foi a partir disso que, com o tempo, foram-se delineando os conhecidos pressupostos da responsabilidade civil pelo triênio: ato ilícito, nexo causal e dano. Assim, o valor da indenização passou a estar relacionado ao prejuízo material sofrido pelo lesado, levando em conta a perda efetiva ou a diminuição do valor de seus bens.

Herança dessa tradição romana, foi positivada no ordenamento jurídico brasileiro, no art. 944 do Código, a regra pela qual: "a indenização mede-se pela extensão do dano".

A função punitiva e pedagógica

Nos Estados Unidos, embora alguns estados proíbam a utilização dos punitive damages, como Massachussets e Washington, esse instituto foi positivado pelo §908 do Restatement (Second) of Torts 19793, principal regra instituidora dos princípios gerais da reparação civil no direito americano. Assim, o punitive damages foi conceituado como uma indenização de natureza distinta da reparatória/compensatória, que é imposta a uma pessoa com o objetivo de puni-la por sua conduta particularmente ofensiva e ultrajante, dissuadindo a ela e a terceiros a repetir práticas semelhantes (punishment e deterrence).

No Brasil, por outro lado, a função punitiva da responsabilidade civil tem se desenvolvido a partir dos critérios de quantificação da indenização do dano moral pelos tribunais brasileiros, sobretudo a partir das mudanças promovidas pela Constituição Federal de 1988.

Há, ainda, a defesa da aplicação da função punitiva como uma forma de lidar com certas situações, em que a reparação do dano não apresentaria resposta adequada, como nos casos em que o benefício econômico do ato ilícito para o ofensor não é neutralizado pela compensação financeira advinda da condenação, ou quando o ofensor é indiferente ou não substancialmente afetado pela penalidade que lhe é imposta4.

Dados da jurisprudência

Em um interessante estudo estatístico, Fabiana da Sila Colonetti e Daniel Ribeiro Preve analisaram seiscentos acórdãos provenientes dos Tribunais de Justiça do Rio Grande do Sul e Santa Catarina, em busca de dados concretos acerca da utilização da teoria da função punitiva da responsabilidade civil entre 2014 e 20175. Segundo os resultados da pesquisa, em cerca de 70% dos acórdãos do TJRS e TJSC foi identificada uma tendência em aplicar a função punitiva da responsabilidade civil, de acordo com critérios de intensidade do dano e situação econômica das partes envolvidas no litígio.

A inserção da função punitiva da responsabilidade civil tem sido aplicada precipuamente na quantificação do dano moral, sendo bastante comum em demandas judiciais em que esse tipo de indenização é mais comumente utilizado, como litígios consumeristas e aqueles voltados à violação da honra pessoal (difamação e injúria). Por essa via, identificou-se uma preocupação dos tribunais em, além de se compensar o ofendido, inibir a conduta ilícita mediante a punição do ofensor. Ocorre que, apesar da utilidade social da função punitiva da responsabilidade civil, dado seu viés pedagógico, não há uma clara padronização dos critérios utilizados pelos tribunais na sua aplicação.

Análise econômica da função punitiva da responsabilidade civil

Kaplow e Shavell ensinam que a análise econômica do direito busca responder a duas questões básicas: (i) quais são exatamente os efeitos das regras jurídicas no comportamento dos agentes? e (ii) são esses efeitos socialmente desejáveis?6

Atendendo a essa perspectiva, deve ser adotado o individualismo metodológico como princípio para a reflexão, pois, conforme ensinam Mckaay e Rosseau: "todo fenômeno coletivo deve ser explicado a partir de comportamentos individuais".7 Em linhas gerais, a análise comportamental pressupõe que os seres humanos possuem ao menos alguma racionalidade, de modo que realizam exercício de ponderação de consequências na tomada de decisões.

Isso significa que os indivíduos tendem a maximizar a sua própria utilidade em cada contexto, interagindo com as regras institucionais, que representam as "regras do jogo" na perspectiva da economia institucional e influenciam os comportamentos dos agentes em uma relação complexa, caracterizadora dos processos sociais.8  

Experimentos realizados pelo psicólogo vencedor do prêmio nobel, Daniel Khaneman, demonstram que as pessoas, em sua maioria, são predispostas a evitar uma perda certa, do que a aceitar uma "aposta" entre um ganho futuro ou uma perda maior9.

Transportando essa conclusão para o contexto debatido neste artigo, temos que o estabelecimento de critérios claros para a aplicação da função punitiva e pedagógica da responsabilidade civil pode contribuir para uma redução da litigiosidade. Isso porque, a promoção de uma maior segurança jurídica nas condenações judiciais reduzirá os custos de transação relacionados à litigância predatória ou oportunista, que aproveita a vantagem das atuais regras institucionais pouco previsíveis.

Assim, uma maior certeza de uma perda, decorrente da padronização de critérios, torna mais eficiente o objetivo pedagógico da responsabilidade civil, potencializando a sua capacidade de dissuadir os indivíduos do cometimento de ilícitos. Em um sistema judiciário que, em 2023, superou a marca de 80 milhões de processos em tramitação, esse não é um problema pequeno10.

As regras jurídicas de responsabilização civil, nelas incluídas a tendência punitivista identificada na Jurisprudência, possui nesse aspecto um papel relevante que não pode fugir à atenção do analista. Pois se os agentes do mercado preocupam-se com custos e riscos, a definição de critérios seguros racionaliza a análise de custo-benefício realizado pelos tomadores de decisão e contribui para a segurança no mercado, evitando-se custos improdutivos.

Nessa esteira, entendemos ser uma necessidade de primeira ordem a realização de alterações no novo Código Civil, para que sejam estabelecidos, como critérios de quantificação de indenização por dano extrapatrimonial, elementos que permitam a padronização das decisões dos tribunais (como médias de condenação em casos semelhantes), além de considerações éticas sobre a natureza do bem jurídico violado, impacto na vida da vítima e grau de evitabilidade do resultado danoso, por exemplo. Somente assim consideramos ser possível o atingimento de uma finalidade verdadeiramente pedagógica/preventiva/punitiva sem o comprometimento da segurança jurídica.

A comissão encarregada de atualizar o Código Civil tem a oportunidade, portanto, de definir critérios claros que efetivamente contribuam para o esclarecimento aos agentes do mercado acerca daquilo que caracteriza a reprovabilidade do ilícito. Um requisito básico para legitimar a ideia de desincentivo que fundamenta a função punitiva, preventiva e pedagógica e, assim, trazer segurança e eficiência para a sociedade e o mercado.

__________

1 Antunes Varela, João de matos. Das Obrigações em Geral. Vol. I. 10ª Edição. Almedina: 2008. p.904.

2 LIMA, Alvino. Da culpa ao risco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1938, p. 10.

3 "§908 Restatement (Second) of Torts 1979 (1) Punitive damages are damages, other than compensatory or nominal damages, awarded against a person to punish him for his outrageous conduct and to deter him and others like him from similar conduct in the future".

4 ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Indenização Punitiva. Revista da EMERJ. v.9, n. 36, 2006, p. 136.

5 COLONETTI, Fabiana da Silva. A função punitiva e a responsabilidade civil e a sua aplicação nos Tribunais de Justiça de Santa Catarina e Rio Grande do Sul. (Re)pensando Direito, Santo Ângelo/RS. v. 09. n. 18. jul./dez. 2019, p. 123-146.

6 Kaplow, Louis; Shavell, Steven. Economic Analysis of Law (Chapter 25). Handbook of Public Economics. V. 3. Harvard Law School and National Bureau Economic Research (Elsevier Science B.V.). p. 1666.

7 Mackaay, Ejan; Rosseay, Stéphane. Análise Econômica do Direito. Trad. Rachel Stajn. 2ª ed. São Paulo, Atlas, 2020. p. 41.

8 Hodgson, Geoffrey M. A Abordagem da Economia Institucional. In.: Economia Institucional: Fundamentos Teóricos e Históricos. Org: Teatini Salles, Alexandre Ottoni; Pessali, Huáscar Fialho; Fernández, Ramon Garcia. São Paulo: Editora Unesp, 2017. p. 252-253.

9 Khaneman, Daniel. Rápido e Devagar: duas formas de pensar. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2012. p. 425.

10 Disponível aqui.