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Os danos extrapatrimoniais à pessoa humana: Existe uma maneira simples e direta de os diferenciar?

quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Atualizado às 07:42

Com base no artigo 5º, inciso X, da Constituição Federal, a doutrina nacional - até bem pouco tempo de maneira quase unânime -, não vinha enxergando razão para a criação de outras categorias de danos extrapatrimoniais além da do dano moral para a proteção da esfera imaterial do ser humano. Assim, o dano moral era visto como figura abrangente e suficiente para radicar a proteção ao homem dispensada pelo ordenamento jurídico.

Com o passar dos tempos, as inovações tecnológicas e o modo de vida cada vez mais arriscado ao qual se submeteram as pessoas, em razão do conforto, comodidade, rapidez e eficácia de resultados, além do prazer que eles produzem em benefício da vida humana, acelerou o processo de criação de danos até então desconhecidos, danos estes que se multiplicaram e ao mesmo tempo tornaram-se enormes1 com grande potencialidade lesiva e capacidade de atingir a sociedade de maneira difusa.

Decerto, a tecnologia e o avanço do modo de vida dos seres humanos não podem ser facilmente por estes renunciados, todavia, cabe considerar que para todo avanço existe um custo efetivo e previsível e também decorrente de efeitos inimagináveis, bastando se chamar a atenção para o potencial ofensivo daquilo que se convencionou chamar - em mecanismos de dispositivos de inteligência artificial, de black box ou caixa preta - que seria a possibilidade de a própria tecnologia promover resultados não previstos e até imprevisíveis decorrentes de sua capacidade de autoaprendizagem.

Com isso, os danos imateriais perpassam pela simplicidade que existia nos denominados "danos morais" agregando potencialidade danosa mais gravosa e duradora justamente pelo modo de vida humana com o qual acostumou-se a pessoa a coexistir em sociedade.

Para uma efetiva e integral tutela da pessoa humana, mister é que se opere a análise das suas três esferas ou dimensões que comportam seu ser, isto é, 1 - a sua dimensão biológica; 2 - a sua dimensão psíquica; e, 3 - a sua dimensão noética. Portanto, a tutela humana integral pelo simples conceito de dano moral restar-se-ia prejudicada, como se tentará demonstrar a seguir.

O professor Sessarego, no Peru2, preferiu a denominação "dano à pessoa" àquela conhecida por "dano moral" por entender que este último seria uma espécie de dano emocional ou subjetivo que resultava em consequências mais efêmeras, do que aquelas as quais resultariam dos próprios danos existenciais. Assim, partindo da concepção existencialista Sartriana de que o homem é um ser "condenado à liberdade" ou "a ser livre", o homem é os seus projetos de vida, donde se lhe conceber a proteção de uma liberdade ontológica (estática) e uma outra, qual seja, a fenomenológica (dinâmica), por meio da qual deveria se desenvolver em ser devir.

A partir daí, refere-se aos danos psicossomáticos (quando decorrentes da lesão à sua esfera psíquica e somática) e os danos ao projeto de vida, ou seja, decorrentes da lesão à liberdade fenomenológica. Logo, de consequências bem mais graves do que aquelas geradas pelo dano moral, os danos existenciais devem merecer catalogação própria e uma maior reprimenda por parte do Estado.

Aqui pretende-se ir mais além, já que na visão do psiquiatra e filósofo austríaco Victor Frankl, além de suas dimensões biológica e psíquica, o homem carrega entorno de si uma dimensão onde se desenvolvem os fenômenos noéticos3. Urge, pois, para além dos danos existenciais que interferem na vida de relação do ser vivente e nos seus projetos vitais, conferir-se proteção à sua liberdade espiritual, aquela que se é atingida quando, em virtude de dano de natureza complexa, provoca o vácuo existencial no indivíduo.

Como então, à guisa de classificação dos danos não patrimoniais, distinguir os danos morais dos demais danos existenciais? Será que tal critério de diferenciação assume relevância entre os danos morais e os danos estéticos? E ainda, será que servirá para distinguir os danos existenciais entre si?

Para tanto, imprescindível é operar a classificação dos danos à pessoa em danos de consequências predispostas no suporte fático da norma indenizativa e danos de consequência concreta ou provada. Tal categorização classificatória permitirá na prática forense a distinção de forma simples dos danos imateriais e imprimir relevância à uma maior resposta estatal concernente ao valor da reparação nos danos de consequências concretas.

Para Maita Naveira4, o dano só pode ser definido em razão da utilidade do bem jurídico danificado para o ser humano; logo, o bem jurídico será tudo aquilo que poderá satisfazer uma necessidade do sujeito, podendo compreender coisas ou bens da personalidade. Já o interesse, ou sua utilidade, adviria da relação entre o sujeito que elege uma necessidade para um determinado bem. A lesão a tal interesse é que poderia se chamar, de uma maneira geral, de dano, o qual pode ser material ou imaterial. Destarte, o dano não poderia ser definido pela natureza do bem violado, porém, do interesse jurídico a ele ligado.

O dano moral decorreria daquilo que o professor alagoano Paulo Luiz Netto Lôbo5 definiu como lesão a direito da personalidade, nada importando as consequências mais gravosas para o ofendido e que, na linguagem do presente escrito, seria uma dano de consequências predispostas, bastando à vítima a prova da lesão ao seu direito subjetivo personalíssimo, e, em razão da dimensão objetiva dos direitos fundamentais da personalidade, a simples lesão ao direito - ou interesse protegido -, já abarcaria as consequência no sentido da norma de reparação, engendrando a respectiva sanção indenizativa.

Em suma, dano moral decorreria da lesão a interesse jurídico personalíssimo, não incumbindo à vítima a prova de qualquer consequência negativa em seus sentimentos, como dor, sofrimento, vexame ou humilhação, tal qual a concepção clássica estava a exigir.

Por outro lado, os danos estéticos e os danos existências nas três categorias agora desenvolvidas seriam, lado outro, danos de consequências concretas ou provadas, devendo a vítima se desincumbir do ônus da prova de ter suportado as consequências mais gravosas na estrutura de harmonia de beleza do seu corpo (dano estético), na sua vida de relação, nos seus projetos vitais e na sua vontade de sentido (danos existenciais).

Com essa construção, visa-se combater figuras criadas que estão em desacordo com a linha de raciocínio ora proposta, assim sendo, de que o dano é pressuposto indispensável da responsabilidade reparatória e sempre guarda em si as consequências que podem ou não lhe estarem predispostas por norma jurídica. Destarte, não há de se concordar com a divisão da figura danosa em "dano-evento" e "dano-consequência", do "dano in re ipsa" ou "prima facie evidence" - o que importaria mais para o estabelecimento de certas teorias acerca do nexo causal, máxime na seara dos acidentes de consumo - e do que hoje muito se popularizou daquilo que resolveu denominar de dano presumido.

Concluindo o até aqui expendido, os danos à pessoa humana de natureza extrapatrimonial são de três ordens: a) o dano moral; b) o dano estético; e, c) os danos existenciais.

Os danos morais provocam consequências mais ou menos efêmeras para homem, estando elas predispostas por norma jurídica, portanto, sempre existentes - levando-se em consideração o conceito jurídico até aqui desenvolvido e a natureza objetiva de proteção dos direitos mais fundamentais dos homens.

Os danos estéticos, de sua ordem, são danos de consequências provadas pela vítima do evento danoso, valendo dizer que deve ela se desincumbir do ônus da prova de que seu estado de harmonia física e de beleza piorou com relação àquele existente antes do dano, considerando-se também apenas as consequências mais graves às linhas de harmonia corporal. Em razão disso, o valor da reparação compensatória deverá ser evidentemente maior do que aqueles dispensados às compensações dos danos morais.

Por fim, nos danos existenciais, os quais são danos de consequências também provadas ou concretas, incumbe ao ofendido comprovar que, em razão da lesão grave a sua integridade física, psíquica, fenomênica ou à vontade de sentido, padece nos respectivos campos biológico, de relacionamento de vida, fenomenológico e noético. Da mesma sorte, a reparação aos danos de índole existencial deverá receber valor consideravelmente maior do que aquele determinado aos "simples" danos morais.

Urge-se, pois, a tutela humana radicada em sua completude ontológica, fenomenológica e noética, pois inexiste "ser ai" ou "ser no mundo" sem o seu próprio devir e sem um almejar de sentidos para sua existência como um todo e, continuar a impor-se barreiras à reparação de consequências tão graves ao ser que existe, seria o mesmo que usurpar-lhe de uma existência a mais digna possível.

Referências bibliográficas

FRANKL, Viktor. A falta de sentido. Um desafio para a psicoterapia e a filosofia. Tradução de Bruno Alexander. Campina S/P: Auster, 2021.

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Revista jus navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n.119, 31 de outubro de 2003. Disponível aqui. Acesso em 18 de novembro de 2021.

SANTOS, Romualdo Batista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018.

SESSAREGO, Carlos Fernández. Apuntes sobre el daño a la persona. Disponível aqui. Pesquisado em 24 de novembro de 2024.

ZARRA, Maita María Naveira. Concepto y requisitos del daño ressacible. Disponível aqui - 294145. Acesso em 23/05/2023.

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1 Sobre o assunto conferir a excelente tese: SANTOS, Romualdo Batista dos. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá, 2018.

2 SESSAREGO, Carlos Fernández. Apuntes sobre el daño a la persona. Disponível aqui. Pesquisado em 24 de novembro de 2024, p.31-36.

3 Sugere-se a leitura, entre outras, da seguinte obra: FRANKL, Viktor. A falta de sentido. Um desafio para a psicoterapia e a filosofia. Tradução de Bruno Alexander. Campina S/P: Auster, 2021.

4 ZARRA, Maita María Naveira. Concepto y requisitos del daño ressacible. Disponível em http://vlex.com/vid/concepto-requisitos-ressarcible - 294145. Acesso em 23/05/2023, p. 1-4.

5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Danos morais e direitos da personalidade. Revista jus navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 8, n.119, 31 de outubro de 2003. Disponível aqui. Acesso em 18 de novembro de 2021, p. 1 e 16.