COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas >
  3. Migalhas de Responsabilidade Civil >
  4. Responsabilidade ambiental das instituições financeiras: poluidor indireto

Responsabilidade ambiental das instituições financeiras: poluidor indireto

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

Atualizado às 07:39

O aumento das preocupações com a proteção ambiental e com as mudanças climáticas tem dado margem a um crescimento vigoroso do número de ações judiciais buscando responsabilizar instituições públicas e privadas pelas alterações dramáticas do sistema climático e por danos ambientais. Tem sido usual que a busca de reparação dos danos se faça com base no artigo 3º, IV da lei 6.938/1981 que define o poluidor como "a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental", a partir da interpretação que foi dada pelo REsp 1.071.741 - SP que o caracteriza  como: "quem faz, quem não faz quando deveria fazer, quem não se importa que façam, quem cala quando lhe cabe denunciar, quem financia para que façam e quem se beneficia quando outros fazem." A decisão, muito embora não tenha efeito vinculante, tem sido considerada como um leading case da matéria.

A decisão tem sido interpretada em relação às instituições financeiras como se elas fossem, automaticamente, responsáveis solidárias por danos ambientais causados por seus mutuários. Este artigo tem por foco o "quem financia para que façam". Muito embora a responsabilidade civil do poluidor direto seja objetiva1, parece claro que, no caso de  "quem financia para que façam" , a sua natureza é subjetiva.

Inicialmente, deve ser recordado que a matéria tratada no REsp 1.071.741 diz respeito a obras irregulares em unidades de conservação [parque estadual] e a responsabilidade da administração pública no caso concreto, tendo sido decidido que, na hipótese tal responsabilidade é "solidária, objetiva, ilimitada e de execução subsidiária"2. A decisão, em momento nenhum, trata de instituições financeiras, ou de suas responsabilidades por danos ambientais. Ora, como se sabe, o Código de Processo Civil, em diversas oportunidades, determina que, ao se aplicar a jurisprudência e os precedentes, seja feita a distinção entre os casos; isto é, que a matéria de fato seja examinada para que se saiba se os precedentes são cabíveis na hipótese3.

O problema jurídico central que se coloca em relação às instituições financeiras, em tema de responsabilidade ambiental, é o estabelecimento do nexo de causalidade entre o dano efetivamente causado ao meio ambiente e as suas ações ou omissões. Inicialmente, cumpre considerar que o conceito de poluidor indireto,  tal como definido pelo REsp 1.071.741, tem sido interpretado de forma abrangente e inconsistente com a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça [STJ] e da legislação aplicável, sendo fonte de inquietudes desnecessárias. O STJ, no Tema Repetitivo 957, deixou clara a necessidade da relação de causa e efeito para a imputação de responsabilidade por danos ao meio ambiente4. Logo, a definição de poluidor, seja ele direto ou indireto, necessariamente demanda a existência de nexo de causalidade claro e indiscutível. Vale lembrar que o artigo 3º, IV não define o que seja poluidor indireto, sendo certo que poluição tem um conceito normativo claro5. Hipoteticamente, poderíamos definir o poluidor indireto como alguém (Ticio) que contribuiu para a prática de um dano ambiental, muito embora não seja o seu causador direto (Mévio). Em tal circunstância não há uma relação de causa e efeito entre ação ou omissão e o dano causado, pois o dano foi causado por Mévio. Tício seria corresponsável se (1) soubesse dos designíos de Mévio para molestar o meio ambiente e, ainda assim, houvesse contribuído para o evento danoso, fornecendo o óleo para poluir o rio, e.g. Assim, houve uma contribuição fundamental, sem a qual o dano não teria ocorrido. Cuida-se, portanto, de uma responsabilidade subjetiva, pois sem o conhecimento do objetivo de Mévio, a responsabilização de Ticio seria arbitrária.

A solidariedade não se presume, conforme disposto no artigo 265 do Código Civil Brasileiro [CCB]. No particular, não se pode deixar de observar que, o artigo 403 do CCB determina que a obrigação de indenizar perdas e danos 'só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato", mesmo que o devedor tenha, dolosamente,  dado causa à inexecução da obrigação. O Supremo Tribunal Federal em sua jurisprudência, desde longa data, tem entendido que: "Em nosso sistema jurídico, como resulta do disposto no artigo 1.0606 do Código Civil, a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal. Não obstante aquele dispositivo da codificação civil diga respeito a impropriamente denominada responsabilidade contratual, aplica-se ele também à responsabilidade extracontratual, inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das outras duas teorias existentes: a da equivalência das condições e a da causalidade adequada"7

Ora, dado que a lei 6.938/1981 não define o que seja o "poluidor indireto" de forma clara e inequívoca, surge um problema relevante quando o imputado não é daqueles cuja "a atividade normalmente desenvolvida (...) impli[que], por sua natureza, risco para os direitos de outrem", conforme determinação do parágrafo único do artigo 927 do CCB. É pacífico que a atividade financeira não é de natureza a causar riscos ou danos para direitos de terceiros.8 Portanto, no caso de instituições financeiras, em princípio, a classificação genérica como poluidor indireto para  atividades por elas  financiadas - capazes de degradar o meio ambiente -  é uma verdadeira  presunção de responsabilidade, o que é vedado pelo ordenamento jurídico brasileiro. Assim, considerando-se que as atividades-fim das instituições financeiras não podem ser classificadas como degradadoras do meio ambiente9, somente lei específica pode incluí-las no rol dos poluidores indiretos. Observe-se que o direito brasileiro, na Lei de Biossegurança, determina que as instituições financeiras, ao conceder financiamentos, exijam, se for o caso, o Certificado de Qualidade em Biossegurança, sob pena de serem solidariamente responsáveis por danos ambientais causados por organismos geneticamente modificados.10 Na hipótese, cuida-se de responsabilidade subjetiva que tem por base uma conduta (1) dolosa ou (2) culposa por negligência, por exemplo.

A lei 9.605/1998, em seu artigo 3º determina que as pessoas jurídicas, "jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta Lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade." Aqui, a lei exige uma conduta subjetiva e não meramente a relação de causa e efeito. É necessária uma decisão com a finalidade de atender interesse ou beneficiar a pessoa jurídica.

Em relação às instituições financeiras, há também que se considerar que os danos devem ser diretamente causados em razão do financiamento concedido; em outras palavras, ele deve ter como causa direta e imediata os valores aportados pela instituição financeira para a atividade que tenha causado o dano ambiental.  

A rarefeita jurisprudência nacional sobre o tema admite a tese de que a responsabilidade das instituições financeiras por danos causados por atividades que, eventualmente, tenham financiado é subjetiva.  O Ministro Ricardo Vilas Boas Cueva11 examinou uma interessante hipótese na qual uma disputa entre mutuário e o BNDES, relativa ao inadimplemento contratual, causado pela não obtenção de licença ambiental pelo mutuário. Firmou-se o entendimento que "seria impossível exigir do banco que se certificasse previamente sobre o preenchimento dos requisitos legais para a obtenção de licença ambiental, posto que as únicas autoridades legitimadas para tanto são o IBAMA e os órgãos ambientais estaduais e municipais, a depender do empreendimento e do impacto ambiental, conforme disciplinado na Resolução 237 do CONAMA. "A decisão deixa claro que à instituição financeira compete, única e tão somente, exigir do mutuário a documentação ambiental cabível; foge da atribuição legal da instituição financeira agir em substituição aos órgãos de controle ambiental.

O Tribunal Regional Federal da 1ª Região12, ao julgar uma disputa relativa à responsabilização de agências de controle ambiental, por conduta omissiva, em razão de danos causados a particulares por empresa de mineração, entendeu que "[a]s entidades de direito público responsáveis pela vigilância, controle e fiscalização da atividade mineradora, juntamente com a empresa extrativista, possuem legitimidade para responder como sujeitos passivos em ação de reparação por danos ambientais que se alega sofridos por particular em sua fazenda, os quais causaram crateras (dolinas) e a morte de animais, por contaminação da água". Em relação ao agente financeiro, no caso concreto o BNDES, a Corte afirmou que "o simples fato de ser ele a instituição financeira incumbida de financiar a atividade mineradora (...), em princípio, por si só, não o legitima para figurar no polo passivo da demanda." A natureza subjetiva da responsabilidade foi afirmada ao acrescentar que "se vier a ficar comprovado, no curso da ação ordinária, que a referida empresa pública, mesmo ciente da ocorrência dos danos ambientais que se mostram sérios e graves e que refletem significativa degradação do meio ambiente, ou ciente do início da ocorrência deles, houver liberado parcelas intermediárias ou finais dos recursos para o projeto de exploração minerária da dita empresa, aí, sim, caber-lhe-á responder solidariamente com as demais entidades-rés pelos danos ocasionados". A decisão, claramente, afirma que, no caso concreto, há a necessidade de que a instituição financeira (1) tenha ciência do dano ambiental causado e (2) apesar disso, prossiga concedendo ou liberando crédito já concedido. Trata-se, portanto, de conduta dolosa ou culposa, conforme deve ser apurado. Com relação à ciência do dano, evidentemente, ela tem que ser fruto de uma informação idônea e oficial, salvo as hipótese de fatos públicos notórios, pois os contratos de financiamento são sujeitos a cláusulas relativas ao fluxo financeiro que precisam ser observadas por ambas as partes contratantes.

Em igual sentido vai a decisão proferida pelo Tribunal Regional Federal da 2ª região13, ao decidir questão relativa a bens dados em hipoteca ao BNDES, havendo assentado que: "[m]algrado as referidas embarcações tenham sido dadas em garantia ao crédito objeto da execução, não há no nosso ordenamento jurídico nenhuma norma que legitime o executado a compelir o exequente a adjudicar compulsoriamente um bem hipotecado." Acrescentando, ainda, que em relação à "específica alegação de risco ambiental, esta não é suficiente para alterar o entendimento acima exposto, eis que a responsabilidade pela manutenção dos bens hipotecados é da empresa agravante, assim como dos eventuais danos ambientais por ventura causados, fruto de sua deterioração, não podendo ser carreada a culpa ao BNDES".

A decisão proferida no REsp 1.071.741 ao mencionar o "quem financia para que façam" deve ser compreendida à luz da jurisprudência que especificamente trata das relações entre instituições financeiras e danos ambientais causados por seus mutuários. Esta jurisprudência, com muita clareza, indica a natureza subjetiva de tal responsabilização. Justifica-se a posição jurisprudencial, pois não havendo lei específica para tratar da matéria, o intérprete há que se socorrer do parágrafo único do artigo 927 do CCB; ora, a atividade financeira não tem como "natureza" pôr em risco ou causar danos ao meio ambiente; portanto, não está sujeita à responsabilidade objetiva por esse fundamento.

Em conclusão, é possível dizer que a responsabilidade das instituições financeiras relativamente a créditos que tenham concedido - os quais tenham financiado atividades degradadoras do meio ambiente - exige a (1) ciência inequívoca do fato danoso; a (2) continuidade dos financiamentos apesar da ciência dos danos causados; matéria de prova que deve ser feita pelo autor da demanda.

__________

1 Lei 6.938/1981. Art. 14 - Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:....§ 1º Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.

2 SÚMULA N. 652 A responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária.

3 Por exemplo: Art. 489. São elementos essenciais da sentença: ....§ 1º Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: .....II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; ....VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento.

Art. 966. A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida ...§ 5º Cabe ação rescisória, com fundamento no inciso V do caput deste artigo, contra decisão baseada em enunciado de súmula ou acórdão proferido em julgamento de casos repetitivos que não tenha considerado a existência de distinção entre a questão discutida no processo e o padrão decisório que lhe deu fundamento.       § 6º Quando a ação rescisória fundar-se na hipótese do § 5º deste artigo, caberá ao autor, sob pena de inépcia, demonstrar, fundamentadamente, tratar-se de situação particularizada por hipótese fática distinta ou de questão jurídica não examinada, a impor outra solução jurídica.       

Art. 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036 , proferirá decisão de afetação, na qual: § 9º Demonstrando distinção entre a questão a ser decidida no processo e aquela a ser julgada no recurso especial ou extraordinário afetado, a parte poderá requerer o prosseguimento do seu processo.

4 As empresas adquirentes da carga transportada pelo navio Vicuña no momento de sua explosão, no Porto de Paranaguá/PR, em 15/11/200, não respondem pela reparação dos danos alegadamente suportados por pescadores da região atingida, haja vista a ausência de nexo causal a ligar tais prejuízos (decorrentes da proibição temporária da pesca) à conduta por elas perpetrada (mera aquisição pretérita do metanol transportado).

5 Art. 3º - Para os fins previstos nesta Lei, entende-se por: III - poluição, a degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividades sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos; IV - poluidor, a pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividade causadora de degradação ambiental;

6 Código de 1916, correspondente ao artigo 403 do CCB de 2002.

7 Recurso Extraordinário nº º 130.764/PR, Relator Ministro Moreira Alves.

8 Lei 4.595/1964. Art. 17. Consideram-se instituições financeiras, para os efeitos da legislação em vigor, as pessoas jurídicas públicas ou privadas, que tenham como atividade principal ou acessória a coleta, intermediação ou aplicação de recursos financeiros próprios ou de terceiros, em moeda nacional ou estrangeira, e a custódia de valor de propriedade de terceiros. Parágrafo único. Para os efeitos desta lei e da legislação em vigor, equiparam-se às instituições financeiras as pessoas físicas que exerçam qualquer das atividades referidas neste artigo, de forma permanente ou eventual.

9 Lei 6.938/1981, artigo 3º, II

10 Lei 11.105/2005. Art. 2º As atividades e projetos que envolvam OGM e seus derivados, relacionados ao ensino com manipulação de organismos vivos, à pesquisa científica, ao desenvolvimento tecnológico e à produção industrial ficam restritos ao âmbito de entidades de direito público ou privado, que serão responsáveis pela obediência aos preceitos desta lei e de sua regulamentação, bem como pelas eventuais conseqüências ou efeitos advindos de seu descumprimento. .....§ 4º As organizações públicas e privadas, nacionais, estrangeiras ou internacionais, financiadoras ou patrocinadoras de atividades ou de projetos referidos no caput deste artigo devem exigir a apresentação de Certificado de Qualidade em Biossegurança, emitido pela CTNBio, sob pena de se tornarem corresponsáveis pelos eventuais efeitos decorrentes do descumprimento desta lei ou de sua regulamentação.

11 STJ - Agravo em Recurso Especial: AREsp 1304424 PR 2018/0133582-2.

12 TRF-1 - AG: 36329 MG 2002.01.00.036329-1, Relator: Desembargador Federal Fagundes de Deus. Julgamento: 15/12/2003, 5ª Turma, Publicação: 19/12/2003 DJ p.185.

13 TRF-2 - AG: 201302010035645, Relator: Desembargador Federal Nobre Matta, Julgamento: 14/08/2013, 7ª Turma Especializada, Publicação: 22/08/2013.