Esperar morrer para responder? A imperiosa necessidade da adoção da responsabilidade civil preventiva na reforma do Código Civil em matéria ambiental
terça-feira, 28 de novembro de 2023
Atualizado às 08:20
Introdução
O atual texto do Código Civil brasileiro, pelo menos em uma hermenêutica literal, assevera que a Responsabilidade Civil depende da existência da constatação de um dano, quer patrimonial ou extrapatrimonial.
Com efeito, na redação do art. 186 c/c 927 do C.C., depreende-se que o legislador afirmou que deve se verificar a existência de uma ação ou omissão, quer culposa ou dolosa, com violação de direito e causação de dano, para que o ofensor responda e, por consequência, repare o prejuízo que causou.
Como se não bastasse, pelo art. 944 do C.C. é reafirmada a natureza reparatória da responsabilidade civil ao se prever que a indenização mede-se pela extensão do dano.
Nesse quadro, vem à tona algumas indagações: sempre é possível reparar um dano? Não seria mais inteligente que o legislador dispusesse sobre uma responsabilidade civil preventiva, ou seja, a que evitasse o dano?
Portanto, o problema que ora se enfrenta é: existe juridicidade na estipulação de uma responsabilidade civil preventiva na reforma do Código Civil ora em andamento?
Por hipótese, afirma-se que o Código Civil na redação vindoura, deverá, atento ao estudo contemporâneo da Responsabilidade Civil, estabelecer que a função preventiva é fundamental para que se evite um dano, mormente aquele de difícil ou impossível reparação, como, comumente, é o dano ambiental.
Não é difícil afirmar que a reparação ambiental da Baía de Guanabara, da Lagoa da Pampulha, da extinção de uma espécie animal, da devastação de uma espécie vegetal, da introdução equivocada de uma espécie animal desequilibrando um ecossistema são exemplos de danos de difícil ou impossível reparação.
É perceptível a insuficiência dos critérios indenizatório e compensatório da responsabilidade civil em relação aos danos existenciais, tanto individuais como coletivos, ou metaindividuais, da impossibilidade da restituto in integrum, pois não há como se retornar indene ou compensar integralmente a dignidade violada ou o projeto de vida interrompido, sendo a natureza reparatória lato sensu, fundada no dano concreto, incongruente com a própria efetividade da responsabilidade civil.
Objetiva-se, portanto, demonstrar que o texto atual do Código Civil é anacrônico, completamente dissociado do que a doutrina mais moderna sustenta e que uma sociedade lúcida espera, sendo, portanto, imperioso que o novo texto, para muito além de uma Responsabilidade Civil somente reparatória, preveja que é possível estabelecer uma resposta jurídica antes da ocorrência do dano, sobretudo para que se evite que degradações ambientais irrecuperáveis ocorram.
Da responsabilidade civil ambiental preventiva
Comumente os danos ambientais são de difícil ou impossível reparação. Pode-se, portanto, com tranquilidade, afirmar que seria muito melhor para a sociedade que almeja alcançar um meio ambiente ecologicamente equilibrado, intenção expressa na Constituição Federal de 1988 (art. 225), que tais danos não ocorrem.
Por consequência, pouco importa se o Estado, quer pelo Poder Judiciário quer pelo Executivo, impute responsabilidade ao degradador se, em verdade concreta, não for possível a restauração original do ambiente degrado ou destruído.
Afirma-se, portanto, que muito melhor seria se o dano não ocorresse e, de forma alvissareira, afirma-se que isso é possível através da adoção no ordenamento jurídico brasileiro, a função preventiva da Responsabilidade Civil.
Nesse sentido, Nelson Rosenvald e Graziella Trindade Clemente:
Diante das demandas de sociedades complexas, plurais e altamente tecnológicas marcadas pela incerteza e desumanização inerentes, torna-se evidente e necessária a superação do caráter monofuncional da responsabilidade civil. A trajetória do modelo jurídico da responsabilidade civil, no século XXI, deixa de ser linear e estática tornando-se sensível e adaptável à nova realidade em evolução1. Em julgado paradigmático de 2017, das Seções Unidas da Corte de Cassação Italiana,2 considerou-se que "deve ser superado o caráter monofuncional da responsabilidade civil, pois lateralmente à preponderante e primária função compensatória se reconhece também uma natureza polifuncional que se projeta em outras dimensões, dentre as quais as principais são a preventiva e a punitiva, que não são ontologicamente incompatíveis com o ordenamento italiano e, sobretudo, respondem a uma exigência de efetividade da tutela jurídica".1
Sabe-se que nesta década, o Brasil, tristemente, assistiu a duas grandes tragédias ambientais que tiveram causas semelhantes, qual seja: o rompimento de barragem em área minerária.
Tais fatos causaram, como se sabe, para além do evento morte humana, significativos danos ao meio ambiente natural e artificial, destruindo, para sempre, a dignidade das pessoas que com o luto sofrem, bem como, para todos que neste planeta vivem, diante da degradação de rios, mortandade de animais, devastação florestal e outros danos que sequer, anos depois das tragédias, ainda temos dimensão.
Entre as categorias de riscos catastróficos, Christian Lahnstein2 destaca os riscos tecnológicos, estes que tanto se realizam em um acidente industrial como durante a difusão de efeitos negativos de uma tecnologia ou dos seus danos colaterais. Referidos riscos persistentes do futuro e os litígios épicos que acompanham a história de processos administrativos e judiciais envolvendo grandes corporações farmacêuticas e químicas, petrolíferas, mineradoras, entre outras, autorizam o desenvolvimento de medidas precaucionais e também de acompanhamento das populações atingidas em razão dos efeitos críticos tardios do acidente.
O tempo está a demonstrar que as ferramentas dissuasórias não se apresentam eficientes quando se trata de atividades de riscos tecnológicos, diante da capacidade de grandes conglomerados econômicos internalizarem parcialmente as externalidades negativas, mantendo o lucro global das operações, ou mesmo transferirem o encargo e o próprio risco para a sociedade, tanto através de outras relações jurídicas quanto por novas operações financeiras ou de engenharia fiscal e compensatória não integral com o Estado.
Com efeito, contaminações petrolíferas, catástrofes químicas e farmacológicas, inclusive a adição por opioides, rompimento de barragens de contenção de rejeitos minerários e a própria difusão descontrolada de tecnologias de inteligência artificial tem o condão de causar danos que não serão compensados e, por vezes, sequer serão indenizados pelas empresas degradadoras durante a sua vida útil. Mínimas são as perspectivas dissuasórias concretas que possam evitar o poluidor de continuar a atuar de forma predatória, pois, segundo Lahnstein ao trazer o comentário de um juiz inglês, a filosofia do mercado presume que é lícito obter lucro causando outras perdas econômicas ("the philosophy of the market place presumes that it is lawful to gain profit by causing other economics loss")3
Imagine que existisse em nossa legislação civil/ambiental a previsão de que o desastre ambiental, independentemente de suas consequências danosas, acarretasse à empresa uma multa milionária ou a cassação, por longo período, do direito de exercer sua atividade. Será que tragédias teriam ocorrido? E se existisse, no ordenamento jurídico uma previsão que a construção e manutenção de estruturas de risco acarretassem à empresa uma responsabilidade civil pela simples razão de colocar uma sociedade em risco para reduzir o custo empresarial, tragédias teriam ocorrido? Vidas teriam sido perdidas ou maculadas? O meio ambiente seria degradado? Enfim, os danos não seriam evitados?
Afirma-se que a resposta para todas as perguntas acima é: os danos não teriam, provavelmente, ocorrido. Assevera-se, portanto, que se lei brasileira, dispusesse de modo preventivo que determinados comportamentos, independentemente da produção de resultados, já acarretassem a imputação de Responsabilidade Civil, muitos horrores não teriam ocorrido.
Helita Barreira Custódio4 é incisiva ao advertir sobre tais problemas, apontando os riscos de um retrocesso nas técnicas reparatórias dos danos já causados e nas ações preventivas para os danos potenciais:
A experiência tem demonstrado, reiteradamente, que as prejudiciais consequências da poluição ao meio ambiente resultam, geralmente, em danos irremediáveis e, quando remediáveis, a recuperação, a correção, a reposição ou a restauração dos recursos ambientais (naturais e culturais) degradados somente será possível a longo prazo, mesmo assim, mediante o emprego de técnicas caríssimas, ou de mecanismos ou processos complexos de elevadíssimos custos, notadamente socioambientais.
O Código Civil brasileiro tem a eticidade como fundamento, como já preconizava desde de sua construção Miguel Reale, coordenador da comissão de juristas que o estruturou. Eticidade pressupõe que a conduta dos atores nas relações jurídicas esteja conforme o fundamento constitucional da preservação da dignidade da pessoa humana e tenha a sociedade como destinatária de sua proteção.
Para tanto, critérios de correção da conduta na formação da obrigação jurídica passaram a ser essenciais para a verificação da responsabilidade civil, conduzindo a interpretação para além de sua versão clássica reparatória lato sensu, fundada no dano concreto, a abarcar a preocupação social com a prevenção e repercussão do dano.
Não alheio ao mandado constitucional de garantia de inviolabilidade dos direitos fundamentais, não perdendo de vista o princípio do neminem laedere, o legislador reconheceu aqui e ali no Código Civil, de forma tímida, a eficácia preventiva da responsabilidade civil, como quando previu a tutela contra ameaças aos direitos de personalidade (art. 12 do Código Civil), porém não aproveitou a oportunidade de sistematizar normativamente a responsabilidade civil preventiva e seu alcance.
Imperiosa, pois, que a nova redação do Código Civil disponha sobre a função preventiva da Responsabilidade Civil sob pena de se reescrever um texto arcaico e, porque não dizer, muitas vezes inútil. Afinal, seria o mesmo que determinar que um destruidor repare um dano que causou, como se, por uma ridícula estupidez, pudéssemos admitir que morte de alguém que se ama é reparada por dinheiro.
Conclusão
Espera-se que a reforma do Código Civil expressamente inclua no seu texto que a Responsabilidade Civil, consagre definitivamente a tutela preventiva do ilícito, possibilitando que se iniba práticas potencialmente degradadoras, independentemente da ocorrência de danos.
Somente assim, afirma-se com tranquilidade, que o nosso planeta para as presentes e futuras gerações não continuará a sofrer com verdadeiras devastações praticadas pelo homem que, sem nenhuma conotação pessimista, será a própria vítima de suas ações e omissões.
O legislador civil brasileiro tem a obrigação de superar conceitos anacrônicos, há muito afastados por legislações estrangeiras mais evoluídas, prevendo expressamente que devem responder civilmente, antes mesmo da ocorrência de qualquer dano, mormente o ambiental, aqueles que optam por, ainda que potencialmente, colocar o ambiente que vivemos em risco.
Não há qualquer justificativa para que se primeiro degrade para, posteriormente, como se possível fosse recuperar a vida, o Estado determine uma resposta jurídica, por mais severa que seja, imputando ao ofensor a óbvia obrigação de reparar o estrago que causou.
Ora, por que não evitar o dano? Por que não evitar a morte? Por que insistir em uma reparação comumente inviável? Não existe resposta,com robustez jurídica, a essas perguntas.
Sobretudo em matéria de dano ambiental, oxalá o Código Civil em gestação amplie ao máximo a legitimidade ativa para a propositura de ações judiciais e medidas administrativas que objetivem que os danos difusos oriundos da degradação ambiental não ocorram, requerendo-se imposições de providências que assegurem um resultado prático que efetivamente impeçam a ocorrência da degradação.
Afirma-se, em conclusão, que o Código Civil vindouro deve reconhecer que a Responsabilidade Civil para muito além da primitiva tutela reparatória deve admitir, com realce, que a tutela preventiva é fundamental para que alcancemos o objetivo social de vivermos um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
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1 Disponível aqui. Acesso em 8 nov. 23.
2 GUARDIA, Mariano José Herrador .Derecho de daños (cuestiones actuales).Lefebvre:Madrid 2020. P. 101 a 120.
3 Ob.cit. P.107.
4 CUSTÓDIO, Helita Barreira. Responsabilidade Civil por Danos ao Meio Ambiente. Campinas: Millenium, 2006, p. 3.