A comunicação como prevenção de responsabilidade civil na relação médico-paciente
quinta-feira, 23 de novembro de 2023
Atualizado às 07:06
Da sua origem de cura baseada na fé e no misticismo, a relação médico-paciente é marcada pela verticalização, onde o médico, detentor do conhecimento técnico, é quem definia (e muitas vezes ainda define) as melhores escolhas para o paciente. Ao paciente restava acolher a opinião técnica médica e cumprir as recomendações e prescrições para alcançar a cura ou melhorar seus sintomas.
A comunicação, inicialmente utilizada como recurso de apuração de diagnóstico e de criação de conexão e confiança para envolver o paciente nos cuidados e tratamentos prescritos pelo profissional sem maiores questionamentos, foi relegada para um plano ainda mais secundário com o desenvolvimento de tecnologias, pois, os exames, por exemplo, se tonaram suficientes para trazer respostas sobre o que se passava com o corpo do paciente.
Já não era preciso tanto diálogo para saber o que se passava com a saúde do enfermo e o objetivo da equipe de saúde era curar o paciente, salvar sua vida.
No Direito, havia a mesma desvalorização do diálogo e o sistema de justiça alicerçado na perseguição da culpa e punição do culpado. É o sistema de justiça retributiva e, nas palavras de Howard Zehr:
A administração da justiça é uma espécie de teatro no qual os temas culpa e inocência predominam. O julgamento ou a confissão da culpa formam o clímax dramático, tendo a sentença como desenlace. Assim a justiça se preocupa com o passado em detrimento do futuro" (Zehr, 2008, p. 77)
O mesmo movimento de transformação das relações aconteceu e ainda acontece no Direito e na Medicina.
No Direito, a troca de lentes para compreensão do conflito, da justiça e das relações ficam a cargo dos meios de gestão de conflitos, especialmente pautados na cultura da paz e do consenso, os quais objetivam a restauração das relações futuras.
Na medicina, o surgimento do Direito do Paciente como ramo jurídico, com foco na proteção e na participação do paciente na ambiência clínica e na construção da horizontalização da relação médico-paciente (Albuquerque, 2023, p. 132), e a crescente valorização dos cuidados paliativos, os quais imprimem, na prática, condutas que efetivamente centralizam a pessoa humana nos seus cuidados e valorizam não apenas a via biológica, mas também a vida biográfica do indivíduo.
Os movimentos que acontecem no Direito na Medicina convergem em diversos aspectos, mas substancialmente na valorização da pessoa humana, seus interesses, necessidades, valores e todo o aspecto subjetivo que envolve suas questões, reconhecendo-a como capaz de exercer sua autonomia e assumir o protagonismo da sua vida.
Há um afastamento da postura combativa e adversarial em direção à colaborativa e o centro passa a ser o cuidado com a pessoa. Os médicos deixam de querer somente curar o paciente e o advogado defender o cliente. À cura e ao êxito na demanda, agrega-se a noção de cuidado (Fürst, 2022, p. 241).
Como recurso principal para alcançar a centralização da pessoa tanto na solução de conflitos, como em seus cuidados em saúde, o diálogo contribui como o veículo de estabelecimento de relacionamento e troca de informações, tão fundamentais para o exercício da autonomia do paciente.
Estima-se que a comunicação é causa direta de 90% dos conflitos e, nos 10% restante, atua de forma indireta para sua ocorrência. Ou seja, a comunicação ocupa relevantes papéis nas relações humanas e, como não poderia ser diferente, na relação médico-paciente. Compreender alguns desses papéis permite vislumbrar sua importância como meio de prevenção da crescente Judicialização na Saúde, especialmente em relação à ocorrência de eventos adversos que, muitas vezes, culminam em longos e dolorosos processos apuração e condenação de responsabilidade civil.
No Relatório Justiça em Números 2023 (CNJ, 2023), disponibilizado em 01/09/2023 com ano base 2022, indica a crescente judicialização de ação de ressarcimento civil por erro médico de 2020 a 2023.
Em 2020 houveram 6.926 processos novos/ano, em 2021 houveram 7.450 processos novos/ano, em 2022 houveram 8.499 processos novos/ano e em 2023, até 21/7/23, já haviam sido levantados 5.546 processos novos, com a observação que ainda restavam 6 meses para ser possível concluir o total de distribuições, cuja projeção seria a dobra desta quantidade.
É certo que a apuração da responsabilidade civil do médico deve preencher todos os requisitos legalmente estabelecidos como desencadeadores do dever de ressarcimento. Contudo, para o paciente, muitas vezes esses requisitos são relegados e, havendo um resultado diverso do esperado, passa a perseguir um culpado e, ainda que judicialmente sua teoria não seja reconhecida, passam-se anos e anos discutindo culpados e vítimas, em processos extremamente custos financeira e emocionalmente.
A comunicação, principal recurso utilizado por meios consensuais de gestão e prevenção de conflitos, contribui firmemente para que as relações entre médicos-pacientes não avancem para demandas judiciais, especialmente de responsabilidade civil.
O primeiro ponto da comunicação que deve ser considerada como forma de prevenir responsabilidade civil é que é impossível não se comunicar, afinal, tudo comunica. O dizer algo comunica, e o ficar em silêncio também comunica. Uma ação comunica, e a inércia também comunica. Porém, a impossibilidade de não se comunicar, não exime a necessidade de dizer algo. É clichê, mas o óbvio precisa ser dito, pois muitas vezes o silêncio diz aquilo que está na esfera de compreensões outro, que, em mais vezes ainda, não é a mesma de quem silencia.
Cada indivíduo constrói em si as suas próprias percepções a partir das suas próprias experiências. É como se fosse um DNA: particular, único e individual.
Deste modo, o caminho percorrido entre a mensagem emitida e recebida não garante que ambas sejam idênticas, o filtro das percepções influencia o conteúdo e a forma da informação e, dedicar-se a traduzir em palavras o que se pretende expressar é o meio mais simples e eficaz de alcançar a maior medida de semelhança entre elas.
A comunicação transporta um conteúdo informacional, seja pelo que é verbalizado e escrito, seja na forma com que é conduzida, pois o comportamento também comunica. É o diálogo que reduz à menor distância entre o que é comunicado pelo emissor e o que é compreendido receptor.
O médico detém o conhecimento técnico e experiência de tratamento da doença e o paciente é o titular, com exclusividade, do conhecimento do seu conceito de vida boa e o que é, para ele, experienciar aquela enfermidade. Essas informações precisam alcançar um ao outro para que juntos, de forma colaborativa e cooperativa, possam chegar à uma decisão e o paciente exercer plenamente sua autonomia e reduzir os riscos de danos e eventos adversos.
Termos de Consentimento Livre e Esclarecido, quando reduzidos a meros documentos formais que não imprimam verdadeiro processo informacional não se prestam aos fins pretendidos e, não raro, acabam gerando maiores conflitos que sua completa inexistência.
Isto porque, a simples entrega de um documento pelo médico ao paciente para assinatura e cumprimento de um protocolo sem que a linguagem técnica e o que nele consta sejam verdadeiramente esclarecidos, para muitos, pode comunicar que a decisão compete ao profissional de saúde e, com ela, toda a carga de responsabilidade pelo sucesso e insucesso. E mais! Que aquele tratamento não passa de mais um protocolo, que aquele paciente não passa de mais um número desprovido de pessoalidade.
Este é o segundo aspecto da comunicação que se pretende trazer como relevante: a comunicação estabelece os contornos da relação formada. É por meio da comunicação que se constrói conexão e confiança.
O bom relacionamento entre sujeitos promove ambiente de resiliência e superação de falhas humanas, que reflete diretamente na prevenção de culpabilização e judicialização.
Entre as expectativas do paciente e as condições técnicas do médico em proporcionar a cura ou o tratamento desejado existe um vazio. Não é o profissional que detém o poder de curar e salvar o paciente. O médico possui conhecimento e experiência técnica, que, nem sempre, são suficientes. A vida e a morte contemplam grandes complexidades que não são totalmente dominadas pelo homem e, nestas situações, a relação estabelecida entre médico e paciente permite o diálogo sobre esse vácuo, os limites de cada um, o acolhimento das frustrações e que juntos possam tomar as melhores decisões.
O paciente é acolhido, empoderado e a ele são dadas condições para fazer suas próprias escolhas e, com elas, as responsabilidades são compartilhadas.
O compartilhamento da responsabilidade não tem o objetivo simplório de eximir o médico da carga da decisão, mas sim manter o paciente como protagonista da sua vida, capaz de tomar suas decisões, valorizado-o enquanto condutor do seu destino e não o reduzido à figura de um doente incapaz.
É a valorização da pessoa, a percepção de que a decisão também foi sua e tomada com base em farta informação sobre riscos e benefícios, acolhimento, encorajamento e reconhecimento que se pretende alcançar.
Como reflexo da valorização e da participação ativa do paciente, em caso de frustração pelos resultados ou mesmo falhas, que se tenha a ciência de que nem sempre há um culpado e que existe limites não transponíveis ao médico para alcançar a cura, que o sentimento verdadeiro e genuíno de ter sido respeitado e bem cuidado sejam maiores que a atribuição de culpa, e todos os esforços do profissional para que projeto de vida do paciente fosse concretizado não sejam menores que sua eventual falha humana.
Isso tudo somente é possível com a também verdadeira e genuína disponibilidade do médico nos cuidados com o paciente e a comunicação o seu veículo.
A experiência da aviação em relação à gestão adequada e consensual de conflitos, divergências e adversidades promoveu significativa alteração do contextos de dano, revelação de falhas humanas e prevenção de acidentes e pode contribuir na ressignificação da relação médico-paciente, em especial na valorização do diálogo e de uma sólida relação.
Por receio da atribuição de culpa, da sujeição em dolorosos e longos processos e, inclusive, do julgamento por seus pares, as falhas humanas na aviação deixavam de ser relatadas e, com isso, ora deixavam de ter suas causas resolvidas e ora suas pequenas consequências eram ocultadas e, por não solucionadas, ganhavam maiores proporções.
Com a gestão adequada dos conflitos, especialmente com a implementação de processo comunicacional com o foco em solução e não de busca de um culpado, houve aumento significativo de relatos de falhas humanas e, com isso, redução do número de acidentes.
A mesma dinâmica da aviação pode ser transplantada para a relação médico e paciente, que, quando há verdadeira conexão e confiança, propicia ambiente confortável pra que eventuais falhas sejam relatadas e resolvidas sem maiores consequências e danos, e eventuais mudanças de tratamentos sejam realizadas de forma conjunta.
A comunicação, portanto, além de ser veículo para suprir o dever de informação do médico, que, se deficitário pode sim ensejar responsabilização civil, promove a construção de um relacionamento que, bem alicerçado, ainda que haja eventos humanos adversos, há incentivo de que sejam revelados pelos profissionais, os quais gozam de maior segurança e tranquilidade na condução do tratamento daquele paciente, prevenindo que danos de maior impacto e importância aconteceram.
Por meio do diálogo, a postura colaborativa e cooperativa entre médico e paciente predomina onde a combatividade e adversaridade certamente prejudicaria o próprio tratamento, inibiria os cuidados médicos e incentivaria que pequenas divergências assumiriam maiores proporções com atribuições de culpa e responsabilidade civil.
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Albuquerque, A. (2023). Empatia nos Cuidados em Saúde: Comunicação e ética na prática clínica. (Manole, Ed.) Santana da Parnaíba, SP.
CNJ, C. N. (2023). Justiça em Números 2023. Brasília, DF: CNJ. Acesso em 21 de 11 de 2023, disponível em https://painel-estatistica.stg.cloud.cnj.jus.br/estatisticas.html
Fürst, O. (2022). Cuidados Paliativos Pediatricos e a Importância dos Processos de Diálogo. Em L. Dadalto, Cuidados Paliativos Pediatricos. Aspectos jurídicos. Indaiatuba, SP: Editora Foco.
Zehr, H. (2008). Trocando as Lentes. Justiça Restaurativa para o nosso tempo. (T. V. Acker, Trad.) São Paulo, SP: Palas Athena.