Novos paradigmas da responsabilidade civil ambiental
quinta-feira, 16 de novembro de 2023
Atualizado às 08:56
Assiste-se na atualidade a escassez de recursos naturais diante da busca desenfreada por crescimento econômico e consumo de massa. Conforme Ulrich Beck1 vive-se em uma "sociedade de risco" que coloca as origens e as consequências da degradação ambiental no centro das discussões na sociedade moderna. A deterioração dos bens ambientais atingiu patamar tão elevado que está a comprometer a qualidade de vida da humanidade, havendo prognósticos pessimistas para a natureza e o bem-estar das futuras gerações se não forem criados mecanismos para a proteção ambiental e efetivar os já existentes.
Desde a década de 1960, após a criação do Clube de Roma e do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), iniciou-se o processo de emancipação do Direito Ambiental como meio de regulamentar as relações do ser humano com a natureza, abrangendo não apenas seu aspecto ecológico, mas também buscando o uso racional e sustentável dos recursos naturais de forma multidisciplinar.
A medida em que aumenta a irracional degradação do meio ambiente natural, afetando negativamente a qualidade de vida da humanidade e colocando em risco as futuras gerações (princípio da equidade intergeracional), torna-se necessária uma maior e eficaz tutela dos recursos ambientais pelo Poder Público e coletividade.
Nesse cenário e não omissa a essas questões, como forma de conter a degradação ambiental, a Constituição da República posicionou-se de forma exemplar ao prever no artigo 225, parágrafo 3º, que as "condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados". Portanto, a reparação ambiental está sujeita a tríplice responsabilização: penal, administrativa e civil.
Especificamente no que concerne a essa última, vislumbra-se que atualmente, a tradicional responsabilidade civil conforme previsto na legislação privada, não possui instrumentos hábeis para proteger e concretizar o Direito Ambiental.
Tanto referido é verdade que Sérgio Ferraz2 e Nelson Nery Junior3 foram os pioneiros a demonstrar que as ferramentas fornecidas pelo Direito Civil não eram suficientes para a restauração do meio ambiente degradado, por serem bens tipicamente difusos. Essas discussões, aliadas à possibilidade de responsabilização objetiva prevista no art. 14, parágrafo 1º da lei 6.938/81 propiciaram um terreno fértil para a construção de um sistema autônomo com regras próprias para a reparação ambiental.
De fato, o Direito Ambiental se especializou criando ferramentas singulares para sua efetivação. Além dos instrumentos estabelecidos para a realização dos objetivos da Política Nacional do Meio Ambiente como zoneamento ambiental, avaliação de impacto ambiental, licenciamento ambiental, entre outros, estabelecidos no art. 9º da Lei n.º 6.938/81, a responsabilidade civil ambiental migrou da teoria do risco administrativo para a teoria do risco integral. A questão atual não é necessariamente fundamentar novos direitos, mas criar mecanismos para a proteção dos já existentes, como de forma muito pertinente justificou Norberto Bobbio4.
Nos anos que se seguiram, a doutrina e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça percorreram um caminho autêntico, construindo um modelo próprio para a reparação dos danos ambientais, sempre tendo como referência os pressupostos da responsabilidade civil do direito comum.
Ocorre que na contemporaneidade, em meio à sociedade de risco e à era do conhecimento, a adoção do modelo tradicional de reparação civil imporia limitações aos imprescindíveis avanços na proteção ambiental, especialmente considerando as novas e inimagináveis demandas ambientais que estão se apresentando ao Poder Judiciário. Cita-se, por exemplo, o rompimento da barragem em Mariana e Brumadinho, considerados como os maiores desastres ambientais brasileiros, verdadeiro leading case na jurisprudência nacional. Vislumbra-se que a defesa ao meio ambiente e por consequência, o Direito Ambiental, estão passando por constantes e aceleradas transformações.
Diante das mudanças sociais experimentadas na sociedade de risco, talvez seja a responsabilidade civil um dos campos que sofrem, nas palavras de Jean-Louis Gazzaniga5, maior metamorfose na atualidade, não apenas acumulando experiências e conhecimentos, mas incorporando novos modelos de atuação o que, como se verá, trouxeram repercussões no Direito Ambiental.
Se, por um lado, houve um aumento no número de ações judiciais em matéria ambiental6, por outro, a responsabilidade civil está sendo um importante instrumento para resolver disputas que antes eram previamente solucionadas por outros institutos jurídicos ou instrumentos legais.
Significa dizer que o Direito de Danos, como vem sendo chamada a responsabilidade civil por Carlos Ghersi7, acaba por mudar completamente seu foco de estudo: o que tradicionalmente recaía sobre a pessoa do causador do dano, que por seu ato reprovável era punido, com a expansão das atividades econômicas da sociedade de risco deslocou-se para a tutela de garantia à vítima de ser indenizada pelo dano injusto. No caso da reparação civil por danos ambientais o foco passou a ser o da reparação in integrum, ou seja, preferencialmente busca-se "recuperar o meio ambiente degradado até sua restauração plena e imediata" (REsp 1.114.893-MG, julgado em 16/3/2010.), precisamente porque "o dano ambiental é multifacetário ética, temporal, ecológica e patrimonialmente falando, sensível ainda à diversidade do vasto universo das vítimas, que vão desde o indivíduo isolado à coletividade às gerações futuras e aos próprios processos ecológicos em si" (RESP 1.198.727, julgado em 14/08/2012).
Justamente o despertar dessa consciência que fez com que o Superior Tribunal de Justiça tenha se tornado nos últimos anos referência internacional no campo do Direito Ambiental, de modo a apresentar soluções inovadoras e sólidas o suficiente para se transformarem em paradigmas, segundo reconhecimento de autoridades internacionais do setor8. Isto porque o dano apresenta-se de forma multifacetada9 e requer soluções inovadoras para sua proteção.
De fato, com a complexidade e multidisciplinaridade dessas questões, somadas ao aumento significativo das demandas ambientais, inflação dos bens ambientais objetos de tutela e a emancipação de novos sujeitos de direitos potencialmente atingidos pelos danos ao meio ambiente demonstram que o modelo até então construído pelo STJ passa por uma nova metamorfose. Como então equacionar todas essas variáveis e tutelar de forma mais eficaz o meio ambiente, de forma a obrigar os responsáveis a repararem civilmente os danos ambientais na sociedade de risco?
A resposta à pergunta acima não é simples, perpassando por diversas questões polêmicas e inúmeras indefinições. Bem da verdade a pós-modernidade tem (re)construído, sistematicamente, o modelo de responsabilização civil ambiental diante das novas demandas que estão chegando ao Poder Judiciário.
Na contemporaneidade assistem-se novos modelos sendo construídos e a propositura de novas soluções hermenêuticas. As mudanças se justificam diante da maior criatividade dos juristas em propô-las aliada a uma postura de vanguarda do Superior Tribunal de Justiça, que se tornou um dos protagonistas mundiais ao decidir as causas ambientais, o que resultou em recentes atualizações no ano de 2023 do "Jurisprudência em Teses" em matéria de "responsabilidade civil por dano ambiental"10.
Para ilustrar o aqui exposto e demonstrar que está em curso uma nova construção dos paradigmas da responsabilidade civil tradicionais à luz dos danos ambientais, pode-se extrair da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça algumas conclusões: a) aplicação da responsabilidade civil objetiva na modalidade teoria do risco integral (REsp 1.114.398/PR) o que significa dizer que nessa hipótese não há excludente de responsabilidade civil a ser alegada (CR, art. 225 parágrafo 3º, combinado com art. 14 parágrafo 1º da lei 6.938/81). A esse respeito, importante esclarecer que o "reconhecimento da responsabilidade objetiva por dano ambiental não dispensa a demonstração do nexo de causalidade entre a conduta e o resultado" (AgInt no AREsp 1682237/RJ, julgado em 12/06/2023); b) reparação integral dos danos cabendo se falar em cumulação de recuperação de área degradada - obrigação de fazer ou não fazer - com a indenização pecuniária pelos prejuízos devidos (Resp 1.120.117 e Súmula 629 do STJ), independentemente dos danos serem individuais ou coletivos (REsp 1.373.788, julgado em 21/12/2013) ou mesmo de prévio licenciamento ambiental (REsp 1.354.356, julgado em 26/3/2014.)11; c) a mitigação do nexo de causalidade na responsabilidade civil ambiental sob a alegação de que excepcionalmente pode ser dispensada a prova do nexo de causalidade para os casos de adquirentes de imóveis já degradados ambientalmente, imputando-se ao novo proprietário a responsabilidade pelos danos causados (REsp 1.056.540), o que mais precisamente se caracteriza como obrigação propter rem, sendo admissível cobrá-las do proprietário ou possuidor atual e/ou dos anteriores, à escolha do credor" (Súmula n. 623/STJ)12; d) a impossibilidade de fato de terceiro excluir o dever de indenizar, de modo que não há excludente do nexo de causalidade nesse caso, como tradicionalmente ocorre na responsabilidade civil do direito comum, responsabilizando o degradador em decorrência do princípio do poluidor-pagador (REsp 1612887/PR, julgado em 28/04/2020); e) a aplicação da tese da inversão do ônus da prova aplica-se às ações de dano ambiental, contrariando a regra geral que o ônus da prova é de quem acusa (Súmula n. 618/STJ); f) vedação da intervenção de terceiros para garantir maior celeridade das ações de modo que aquele que reparar o dano deverá buscar seu ressarcimento por meio de ação própria (AgRe no Ag 1.213.458, julgado em 24/08/2010); g) aplicação do dever de solidariedade de todos os poluidores aos danos ambientais (REsp 604.725 e Resp 1.137354); h) responsabilidade civil objetiva do Estado por omissão (Resp 1.071.741), sendo certo que a "responsabilidade civil da Administração Pública por danos ao meio ambiente, decorrente de sua omissão no dever de fiscalização, é de caráter solidário, mas de execução subsidiária (Súmula n. 652/STJ); i) reconhecimento do dano moral ambiental coletivo, diante da violação massificada de inúmeros direitos da personalidade de pescadores impedidos de exercer a profissão (REsp 1.269.494, julgado em 24.9.2013,); j) imprescritibilidade da pretensão de reparação civil de dano ambiental (conforme Repercussão Geral - Tema n. 999/STF); k) Não admissão da teoria do fato consumado em tema de Direito Ambiental (Súmula n. 613/STJ); l) Não há direito adquirido à manutenção de situação que gere prejuízo ao meio ambiente (REsp 1983214/SP, julgado em 14/06/2022); m) O termo inicial da incidência dos juros moratórios é a data do evento danoso nas hipóteses de reparação de danos morais e materiais decorrentes de acidente ambiental (AgInt no REsp 1990643/PR, julgado em 22/11/2022).
Como se vê, as transformações sofridas pela responsabilidade civil ao longo dos últimos anos na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça trouxeram como consequência o descarte ou mitigação dos tradicionais pressupostos da responsabilidade civil, substituindo-os por novos critérios de forma a garantir a melhor proteção ambiental e o acesso ao meio ambiente como um direito fundamental de cunho intergeracional.
Isso implica na reconfiguração de seus próprios paradigmas à luz da tábua axiológica constitucional, que orientam os valores fundamentais da sociedade e o momento da crise climática e ambiental que é vivenciada.
Portanto, a evolução da doutrina e jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, impulsionada pela crescente quantidade de casos apresentados para apreciação jurídica, tem revelado uma nova dogmática da responsabilidade civil ambiental, construída de forma coerente e adaptada às novas realidades socioambientais. Essa transformação aponta para caminhos que visam a proteção mais efetiva dos valores ambientais, sem comprometer a necessária segurança jurídica.
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1 BECK, Ulrich. La Sociedad del riesgo: Hacia uma nueva modernidad. Barcelona: Paidós Básica, 2002.
2 FERRAZ, Sérgio. Responsabilidade civil por dano ecológico. Revista de Direito Público, São Paulo: 1979, p. 34-41.
3 NERY JUNIOR, Nelson. Responsabilidade civil por dano ecológico e a ação civil pública. Revista Justitia, São Paulo, v. 126, 1984, p. 168-189.
4 BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. 8ª Edição. Campus, Rio de Janeiro, 1992, p. 17.
5 GAZZANIGA, Jean-Louis. Les métamorphoses historiques de la responsabilité. Paris: Presses Universitaires de France, 1997.
6 Conforme divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça, essa tendência foi revelada pela edição do "Justiça em Números" do ano de 2023. Disponível em < https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2023/09/justica-em-numeros-2023-010923.pdf>. Acesso em 01 de novembro de 2023.
7 GHERSI, Carlos A. Teoría General de la Reparación de Daños. Buenos Aires: Ed. Astrea, 1997.
8 Conforme reportagem do site Consultor Jurídico. Disponível em
9 De acordo com o entendimento do STJ: "O dano ambiental existe na forma difusa, coletiva e individual homogêneo, este, na verdade, trata-se do dano ambiental particular ou dano por intermédio do meio ambiente ou dano por ricochete" (REsp 1641167/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 13/03/2018, DJe 20/03/2018).
10 Disponível em
11 Conforme entendimento do STJ: o "erro na concessão de licença ambiental não configura fato de terceiro capaz de interromper o nexo causal na reparação por danos ao meio ambiente" REsp 1612887/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 28/04/2020, DJe 07/05/2020.
12 Com efeito, "Causa inequívoco dano ecológico quem desmata, ocupa, explora ou impede a regeneração de Área de Preservação Permanente - APP, fazendo emergir a obrigação propter rem de restaurar plenamente e de indenizar o meio ambiente degradado e terceiros afetados, sob o regime de responsabilidade civil objetiva" (AgInt no REsp 1882947/SP, Rel. Ministro FRANCISCO FALCÃO, SEGUNDA TURMA, julgado em 20/03/2023, DJe 23/03/2023).