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Brasil vai se esquecendo (de novo) da gestão de risco de suas barragens

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Atualizado às 08:15

As tragédias ambientais e humanitárias derivadas das barragens de mineração no Brasil, e especialmente em Minas Gerais, ficarão eternamente tracejadas na história, no Direito, na sociedade como um todo. Entretanto, o caráter dos desastres ambientais, que se sucedem e se colocam em um patamar múltiplo de risco, leva a um constante risco de gestão e análise. Este risco é justamente o esquecimento. O período de chuvas se aproxima, e a par dos desafios próprios do enfrentamento de vulnerabilidades sociais, técnicas, ambientais, deve-se relembrar e tematizar as vulnerabilidades jurídicas.

As vulnerabilidades jurídicas são aquelas que contribuem para fragilidades sistêmicas que comprometem o processo de enfrentamento ao risco de desastres, seja em escala preventiva, seja quanto à resposta dos efeitos em si da ocorrência de situações de colapso ou risco de colapso de barragens de mineração. A sucessão de eventos de desastres, assim como de problemas político-sociais, ameaça de forma constante a densidade da discussão de fortalecimento em si de institutos jurídicos para se fazer frente aos desastres.

Em outras palavras, ao se esquecer de continuar a refletir sobre o fortalecimento de institutos jurídicos em face do risco das barragens de mineração, o Brasil compromete negativamente situações que estão ligadas a vulnerabilidades jurídicas. Isso significa a fragilização de mecanismos normativos que contribuiriam seja para a prevenção, seja para a resposta aos desastres ligados a barragens de mineração.

No ano de 2022, os Deputados Federais Rogério Correia, Helder Salomão e Padre João apresentaram o PL 2566. O PL visa alterar a lei 9.605/98, lastreando os recursos de multas ambientais decorrentes de desastres para com o próprio processo de resposta em face das situações de risco concretizado. A proposição sem dúvida fortalece o processo de gestão de risco e combate vulnerabilidade jurídica do sistema, a prever que a aplicação de no mínimo 90% (noventa por cento) de recursos oriundos de multa ambiental sejam destinados a fundo de aplicação na região atingida, sem prejuízo da obrigação de reparação integral. O projeto de lei foi apensado ao PL 6370, que trata das destinações gerais de multa ambiental, não tendo sido posto em tramitação posterior. Não há, pelo que se verifica, perspectiva de votação da salutar proposta.

No ano de 2023, o Deputado Federal Pedro Aihara apresentou o PL 1425/23. O PL visa à adoção de medidas de impulso para que a gestão e análise de riscos, além de fiscalização, sejam efetivamente implementados em municípios que possuam barragens classificadas como de médio e alto risco ou de médio e alto dano potencial associado, ou mesmo ocupações em áreas de alto risco de desastres. Almeja-se que haja eficácia e contundência do Plano de Contingência de Proteção e Defesa Civil. A previsão fortalece a conjuntura de prevenção e gestão de risco, e, portanto, robustece o quadro jurídico de prevenção e controle de desastres. Entretanto, não obstante toda a relevância da previsão, o PL ainda aguarda designação de relatoria e andamentos na Comissão de Integração Nacional e Desenvolvimento Regional.

O resfriamento dos debates parlamentares, sem que sejam os projetos de lei em referência efetivamente levados à análise e votação, é preocupante em termos de redução de vulnerabilidades e contínua assimilação da tarefa protetiva em face da ocorrência de catástrofes. A Estratégia Internacional de Redução de Risco de Desastres - EIRD, elaborada no bojo da Organização das Nações Unidas, visa ao aumento da resiliência em face dos riscos além de fortalecer os planejamentos de redução e mitigação das vulnerabilidades. A configuração normativa brasileira, presente na Lei n. 12.608/12, prevê a gestão de risco com prevenção e mitigação de vulnerabilidades. O artigo 3º da lei, que rege a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC, estabelece ações necessárias de prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação em face dos riscos e da concretização dos desastres.

A lei passou por revisão de regulamentação, por meio do decreto 11.219/22 e pelo recente decreto 11.655/23. Este último, datado de 23 de agosto, estabelece que a análise técnica dos requerimentos de transferência de recursos para a execução de ações de prevenção será realizada pela Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil do Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional. Os parâmetros para execução da análise técnica são o enquadramento da proposta como ação de prevenção em área de risco de desastres; a avaliação da relevância das ameaças e das vulnerabilidades que indiquem o risco de desastres; e o custo global estimado para a execução da proposta.

Sem dúvidas, o aprimoramento e previsões expressas de base de transferência de recursos financeiros para gestão de riscos, redução de vulnerabilidades e execução de obras e serviços voltados a prevenir ou mitigar os riscos de desastres é um ganho estrutural. Entretanto, é necessário o fortalecimento de bases jurídicas de gestão do risco e mitigação das conjunturas sistêmicas que contribuem para as situações ligadas à ocorrência de catástrofes, tanto antropogênicas quanto naturais, mas com contribuição humana em seus níveis de efeitos.

A estratégia de gestão de riscos no Brasil em grande parte se liga a uma perspectiva financeira de aplicação de recursos. Evidentemente, esta é uma face relevante da gestão de risco. Entretanto, é necessário pensar e refletir sobre as vulnerabilidades jurídicas e culturais que contribuem para com os desastres, por vezes imprimindo mecanismos de desalinhamento entre o princípio do poluidor-pagador, em suas faces econômica e jurídica, e os fatores que contribuem com práticas de fragilização seja da prevenção, seja da reconstrução. Fortalecer os dois elos da gestão de risco significa redução das vulnerabilidades jurídicas em prol da eficiente contenção de catástrofes e seus efeitos.

Tematizar a vulnerabilidade jurídica e focar estratégias legislativas para sua redução implica fortalecer políticas públicas nos diversos elos do ciclo dos desastres. No Brasil, o Relatório da 1ª Conferência Nacional de Defesa Civil e Assistência, realizada em 2010, indica uma dupla tipologia de vulnerabilidades. Fala-se em cultura de riscos de desastres e cultura de desastres. A cultura de desastres possui uma abordagem passiva, coliga-se a respostas em face do desastre ocorrido, ao atendimento das vítimas ou atingidos e a medidas de reconstrução. Após treze anos, ainda se mantém forte a cultura desastres no Brasil. É preciso superá-la com a cultura de riscos de desastres. Nesta última, adota-se uma visão amplificada, correlacionando causas e consequências, dimensões normativas e sustentação das políticas públicas em suas diversas aplicações em cada uma das fases da gestão do ciclo.

O quadro referenciado pela existência de projetos de lei pendentes de apreciação demonstra a existência de relevantes proposições voltadas para a gestão de riscos e redução de vulnerabilidades, tanto técnicas quanto jurídicas. É necessário que proposições de fortalecimento da cultura de risco de desastres sejam efetivamente integradas ao ordenamento jurídico brasileiro.

A análise e o planejamento em face de riscos de desastres devem prosseguir continuamente. O distanciamento de tempo do último desastre é um risco cultural. Risco cultural que remete ao potencial de esquecimento quanto a ameaças e potencialidades de dano. É necessário que Poder Executivo, Poder Legislativo e a própria sociedade mantenham a continuidade de reforço de gestão quanto aos potenciais de vulnerabilidade que se alinham à ocorrência de desastres. Reduzir as vulnerabilidades, seja qual for sua categoria, é reduzir o risco de concretização de um desastre. O Brasil não pode (de novo) se esquecer de suas barragens.