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Imputabilidade, capacidade e responsabilidade civil

terça-feira, 3 de outubro de 2023

Atualizado às 08:07

Tomamos como ponto de partida a noção mais comum de imputabilidade, no sentido de capacidade de compreender o caráter ilícito da conduta que se pratica.1 A imputabilidade, assim, é tratada como elemento subjetivo do ato ilícito, ao lado da culpa, enquanto a antijuridicidade, entendida como contrariedade ao direito, constitui o elemento objetivo do ilícito.

A imputabilidade em nosso sistema é atrelada à capacidade jurídica de exercício, que pressupõe a presença de sanidade e de maturidade. Tanto é assim que o Código Civil de 1916 não previu a responsabilidade civil dos sujeitos incapazes, deixando sob a exclusiva e integral responsabilidade de seus pais, tutores e curadores a obrigação de reparar danos causados.

Já o Código Civil de 2002, avançando, ainda que de um modo particular, sob a influência de sistemas estrangeiros, previu no artigo 928 a responsabilidade subsidiária dos incapazes, mitigada pela fixação equitativa da indenização como previsto no parágrafo único.2

A doutrina, ainda longe de pacificar o assunto, debruçou-se sobre a nova norma com o intuito de compreender a natureza dessa responsabilidade. Para alguns, seria uma imputação objetiva, por entender ser impossível se cogitar para um sujeito sem discernimento a prática de um ato ilícito culposo, justamente por faltar o elemento subjetivo deste.3

Para outros, seria esta responsabilidade subjetiva, fundada numa culpa objetiva4, que remete à análise do erro de conduta independentemente das condições do sujeito, bastando-lhe o desvio objetivo de padrões/standards gerais de comportamento socialmente esperados em dadas circunstâncias. Foca mais na conduta causadora do dano do que no seu autor. A inimputabilidade, assim, simplesmente deixaria de ser um elemento necessário para a configuração do ato ilícito e não obstaria a própria responsabilidade subjetiva, porque ainda fundada na culpa. Essa concepção, todavia, esbarra nos limites da normativa brasileira, que pressupõe a inimputabilidade como consequência da incapacidade e, justamente por isso, não atribui a obrigação de indenizar diretamente, em primeiro plano, ao sujeito com o status de incapaz, mas apenas subsidiariamente. Se a intenção fosse adotar a culpa objetiva, desatrelada em absoluto da imputabilidade para atribuição geral da obrigação de indenizar nos moldes do sistema francês, não teria justificativa a subsidiariedade da responsabilidade do incapaz.5

Enfim, para o que podemos chamar de terceira corrente, a responsabilidade dos incapazes seria essencialmente fundada na equidade, para justificar a atribuição, mesmo a um sujeito inimputável, da obrigação de reparar, função esta primária da responsabilidade civil, lastreada numa ponderação entre os interesses da vítima e do autor do dano quando este tiver condições patrimoniais de arcar com a indenização sem prejuízo do que lhe é necessário ou necessário para aqueles que dele dependem.6

Em qualquer das três perspectivas, a inimputabilidade aparece indissociavelmente ligada à incapacidade jurídica de exercício. Mas todas chegam ao mesmo lugar, conferindo maior peso à antijuridicidade, para reconhecer a responsabilidade civil subsidiária e com indenização equitativa dos sujeitos incapazes.

Claramente a responsabilidade civil destacou-se da imputabilidade, mantida, entretanto, a noção comum, posta por nossa doutrina dominante e jurisprudência, de inimputabilidade como produto da incapacidade, exatamente porque nosso Código Civil não prevê a responsabilização primária dos sujeitos incapazes.

Apartamo-nos do sistema francês7 e das jurisdições da common law8, que estabelecem a plena e direta responsabilidade civil dos incapazes, a partir de uma concepção de culpa desprovida de nuances subjetivas, ou seja, da chamada "culpa objetiva".

Aproximamo-nos dos sistemas italiano e alemão9, que afastam a responsabilidade em primeiro plano dos sujeitos inimputáveis.10 Mas nestes últimos ordenamentos, porém, não há uma expressa vinculação da inimputabilidade à incapacidade.

De uma forma mais veemente, dispõe o Código Civil de Portugal: "Art. 489. 1. Se o acto causador dos danos tiver sido praticado por pessoa não imputável, pode esta, por motivo de equidade, ser condenada a repará-los, total ou parcialmente, desde que não seja possível obter a devida reparação das pessoas a quem incumbe a sua vigilância. 2. A indemnização será, todavia, calculada por forma a não privar a pessoa não imputável dos alimentos necessários, conforme o seu estado e condição, nem dos meios indispensáveis para cumprir os seus deveres legais de alimentos".

Não obstante a evidente aproximação com o parágrafo único do artigo 928 do Código Civil Brasileiro, o ordenamento português não se refere ao "incapaz", mas ao "não imputável".

Cumpre-nos avaliar se atualmente ainda convém manter a inimputabilidade como reflexo automático da incapacidade no campo da ilicitude ou se cabe advogar uma fratura entre os dois conceitos e, havendo, qual seria sua repercussão e, ainda, se essa repercussão é congruente com a ordem constitucional vigente.

Pois bem. Partindo primeiramente da literalidade da própria normativa aplicável, em nenhum momento o Código Civil de 2002 afirmou taxativamente que a pessoa incapaz jamais praticaria ato ilícito ou que seria sempre considerada inimputável. Sob uma perspectiva lógica inversa, tampouco afirmou categoricamente que a pessoa capaz deverá necessariamente sempre responder pelos danos por ela causados.

O que se vê, em verdade, é que o código estabelece uma responsabilidade equitativa das pessoas incapazes em geral, implicitamente incluindo (a aí temos um problema) pessoas civilmente imputáveis, por reunirem condições de compreensão do caráter lesivo da conduta que praticam e, por conseguinte, de autodeterminação, em hipóteses que deveriam ser, pensando bem, direcionadas àqueles que efetivamente não tinham essas condições. 

Abre-se, assim, margem para uma interpretação favorável à tutela das vítimas, algo que não é apenas conveniente, mas necessário, à luz do princípio constitucional da solidariedade que informa o instituto da responsabilidade civil.

Ora, o mundo real comporta a existência de pessoas incapazes, porém civilmente imputáveis e, inversamente, de pessoas civilmente inimputáveis, todavia capazes. A pretendida fratura entre inimputabilidade e capacidade implica que um sujeito capaz pode ser inimputável e, um sujeito incapaz, imputável.

Com efeito, a capacidade está no plano da possibilidade de agir juridicamente, do exercício de atos jurídicos, traduzindo um conceito mais estático, ainda que comporte modulação, considerando-se a proporcionalidade da renovada curatela à luz do Estatuto da Pessoa com Deficiência.11 A imputabilidade, por seu turno, associa-se a uma capacidade natural, traduzindo um conceito mais dinâmico e pontual, como real ou concreta aptidão para responder ao tempo do fato danoso, aptidão esta que pressupõe a compreensão do ato lesivo praticado e de suas possíveis consequências.

Assim, pode-se afirmar que, em se tratando de sujeitos incapazes, sob curatela, o direito brasileiro denota uma presunção de ausência de condições de autodeterminação no campo do agir danosamente em áreas reservadas à atuação do curador, ou seja, uma presunção de inimputabilidade. Todavia, parece-nos possível romper tal presunção mediante a comprovação de que o autor do dano compreendia, ao tempo do ato, o caráter lesivo de sua conduta, tornando-se diretamente imputável. Ainda que se mostre remota, tem-se aí uma possibilidade de responsabilização solidária do curatelado e do curador, sendo a responsabilidade do primeiro subjetiva, fundada no ato ilícito do artigo 186 do Código Civil, e, a do segundo, objetiva, fundada no artigo 932, inciso II.

Abrimos parênteses para lembrar da ressignificação da curatela a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência, que implica o reconhecimento de campos de maior ou menor autonomia e enseja a modulação da incapacidade jurídica de exercício, o que, na perspectiva funcional, volta-se essencialmente à proteção da própria pessoa curatelada, sobretudo no tocante aos seus interesses patrimoniais, na medida de sua real necessidade.12

Em decorrência disso, nos casos em que há curatela constituída, a pessoa curatelada é presumidamente inimputável por danos decorrentes dos atos que estiverem dentro do campo de atuação do curador, embora ressalvada sua responsabilidade subsidiária e a indenização equitativa do artigo 928. Por outro lado, é o curatelado presumidamente imputável em relação aos atos danosos que não estejam na esfera de atuação do curador.13 A responsabilidade objetiva do curador é, assim, circunscrita à sua zona de atuação nos termos da sentença constitutiva da curatela.14

Enfim, não tendo a pessoa restrição de sua capacidade de exercício, isto é, não estando sob curatela, há uma forçosa presunção de capacidade, inclusive para pessoas com deficiência psicossocial ou intelectual, à luz da Convenção da Organização das Nações Unidas de 2007, da Constituição Federal e do Estatuto da Pessoa com Deficiência, e, consequentemente, uma presunção de imputabilidade. Parece-nos igualmente possível, entretanto, a comprovação de que ao tempo do ato o sujeito não tinha condições de compreender o caráter lesivo de sua conduta, sendo concretamente inimputável, apesar de juridicamente capaz. 

A conveniência de se dissociar a imputabilidade da capacidade evidencia-se novamente, neste ponto não apenas para ampliar a tutela das vítimas, mas, igualmente, para reconhecer a autonomia da própria pessoa causadora do dano, impondo-lhe as consequências de suas condutas e escolhas. Isso porque - é sempre importante lembrar - a responsabilidade reafirma a autonomia, valor constitucional.

Noutro giro, reconhecer em concreto a inimputabilidade de um sujeito desprovido de condições de autodeterminação quando da prática da conduta danosa, para afastar-lhe o rótulo do ato ilícito e permitir-lhe a aplicação da indenização equitativa do parágrafo único do artigo 928, independentemente de seu status de sujeito juridicamente capaz, é uma medida de justiça.

Em conclusão, a proposta é de repensarmos a imputabilidade de um modo dinâmico e sempre em concreto, consistente na reunião de condições de compreensão do caráter lesivo da conduta que se pratica e, por conseguinte, de autodeterminação, que conformam uma autonomia suficiente para que a pessoa seja diretamente responsável por suas próprias escolhas e atos. Afinal, é justamente essa autonomia, e não a capacidade, o que autoriza e justifica a responsabilidade civil.

__________

1 Segundo explicita Guido ALPA, em tradução livre, a imputabilidade "é a capacidade do agente de compreender, estar ciente do que está acontecendo e saber o que fazer, bem como de querer e decidir o comportamento a ser realizado (a chamada capacidade de entender e querer). Esta incapacidade isenta de responsabilidade no sentido de que na ausência de imputabilidade não há ilícito e, portanto, responsabilidade" (ALPA, Guido. La responsabilità civile. Parte generale. Milano: Utet, 2010, p. 147).

2 Art. 928. O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes.

Parágrafo único. A indenização prevista neste artigo, que deverá ser eqüitativa, não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem.

3 Na linha de pensamento de CALIXTO, Marcelo Junqueira, A culpa na responsabilidade civil - estrutura e função, Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 49-55, a responsabilidade civil do incapaz seria objetiva, partindo do argumento de que não se poderia imputar um erro de conduta à pessoa desprovida de maturidade ou sanidade. A imputabilidade estaria aí atrelada à culpabilidade e à capacidade.

4 MULHOLLAND, Caitlin, A responsabilidade civil da pessoa com deficiência psíquica e/ou intelectual, in: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.), Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas - Convenção sobre os direitos da pessoa com deficiência e Lei Brasileira de inclusão, Rio de Janeiro: Processo, 2016, p. 645-648, defende que a responsabilidade do incapaz é subjetiva, fundada, assim como a responsabilidade subjetiva das pessoas capazes, no ato ilícito por culpa objetiva, conferindo menor relevância aos aspectos psicológicos dos sujeitos e ao discernimento e maior ênfase no erro de conduta devido à não observância de certos padrões de comportamento, standards cada vez mais concretos, fragmentados e especializados, em lugar da comum abstração do padrão médio de diligência do bonus pater familias ou reasonable man.

5 Entendemos, de fato, que a análise da culpa nos dias atuais é mais objetiva do que subjetiva, o que é reforçado pelo fenômeno denominado de "fragmentação dos modelos de conduta". Tal, porém, não significa que o sistema brasileiro teria adotado o modelo da culpa objetiva desatrelada em absoluto da inimputabilidade. Não se questiona o cabimento da análise objetiva da culpa quando se trata da responsabilidade civil dos sujeitos capazes, que gozam de uma imputabilidade presumida, automática, cuja análise é prescindível e habitualmente ignorada. Porém, no tocante aos sujeitos incapazes, a lógica do sistema brasileiro é inversa, pois a normativa expressa nos artigos 932 e 928 do Código Civil impede a atribuição de responsabilidade em primeiro plano a tais sujeitos, diferentemente do que se verifica nos sistemas francês e inglês. Assim, é forçoso reconhecer que no Brasil, a não ser que tivéssemos uma reforma legislativa, para os sujeitos incapazes estabeleceu-se uma inimputabilidade presumida, automática, que afasta a configuração do ato ilícito, mas que, à vista da antijuridicidade, numa acepção mais ampla, do resultado da conduta, poderá comportar, excepcionalmente, a responsabilidade civil mediante a indenização equitativa do parágrafo único do artigo 928 do Código Civil.     

6 Cf. NETTO, Felipe Braga, FARIAS, Cristiano Chaves de, e ROSENVALD, Nelson, Novo tratado de responsabilidade civil, 4. ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 730, que sustentam que a responsabilidade do incapaz seria uma espécie de responsabilidade patrimonial, porém subsidiária e mitigada, haja vista que "os menores não cometem ilícitos civis, em virtude de sua inimputabilidade. Podem, contudo, à luz da ordem jurídica vigente, ser civilmente responsáveis por determinados danos. Cabe sempre lembrar que ilicitude civil não se confunde com responsabilidade civil. A incapacidade civil produzirá duas ordens de efeito: (a) atrairá a responsabilidade objetiva dos pais, tutores ou curadores (CC, art. 932, I e II); (b) evidenciará sua própria responsabilidade patrimonial, porém subsidiária e mitigada (CC, art. 928, parágrafo único)".

7 O Código Civil Francês prevê a responsabilidade direta das pessoas incapazes: "Celui qui a causé un dommage à autrui alors qu'il était sous l'empire d'un trouble mental n'en est pas moins obligé à réparation" (artigo 414-3 criado pela lei 2007-308).

8 De acordo com o Restatement third of torts: liability for intentional harm to persons, "a deficiência mental não se leva em conta para se determinar se uma conduta é ou não negligente, a menos que o autor seja um menor" (§ 11, c, 2010). The American Law Institute, disponível em: https://www.ali.org/publications/show/torts-liability-physical-and-emotional-harm/, acesso em: 30 set. 2023.

9 Com efeito, o artigo 2046 do Código Italiano dispõe que "não responde pelas consequências do dano quem não tem capacidade de entender e querer no momento de cometê-lo, a menos que o estado de incapacidade derive de sua própria culpa". E, segundo o parágrafo 827 do BGB, "quem causa um dano a outra pessoa em estado de inconsciência ou sofrendo de uma perturbação mental que lhe impede o livre exercício da vontade, não é responsável por ele".

10 Não obstante declarem a irresponsabilidade da pessoa inimputável e a consequente responsabilidade de seus curadores (ou guardiões, quando menores), estes ordenamentos permitem ao juiz, em atenção à equidade e tendo em conta as circunstâncias concretas das partes, impor ao causador do dano uma excepcional responsabilidade, notadamente quando aqueles sejam insolventes.

11 Conforme o Artigo 84, § 3º, do Estatuto da Pessoa com Deficiência, "A definição de curatela de pessoa com deficiência constitui medida protetiva extraordinária, proporcional às necessidades e às circunstâncias de cada caso, e durará o menor tempo possível".

12 Cf. ABREU, Célia Barbosa. A curatela sob medida: notas interdisciplinares sobre o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o novo CPC. In: MENEZES, Joyceane Bezerra de (Org.). Direito das pessoas com deficiência psíquica e intelectual nas relações privadas: Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência e Lei Brasileira de Inclusão. Rio de Janeiro: Processo, 2016; ROSENVALD, Nelson. Curatela. Tratado de direito das famílias. 3. ed. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018; e ALMEIDA, Vitor. A capacidade civil das pessoas com deficiência e os perfis da curatela. Belo Horizonte: Fórum, 2019.

13 A propósito, cf. SALLES, Raquel Bellini de Oliveira. A responsabilidade civil das pessoas com deficiência e dos curadores após a Lei Brasileira de Inclusão. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 1-18, 2021. Disponível em: https://revistaiberc.responsabilidadecivil.org/iberc/article/view/157. Acesso em: 2 mar. 2021.

14 Nesse sentido, o Enunciado 662 da IX Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: "A responsabilidade civil indireta do curador pelos danos causados pelo curatelado está adstrita ao âmbito de incidência da curatela tal qual fixado na sentença de interdição, considerando o art. 85, caput e §1º, da lei 13.146/2015".