Responsabilidade civil pelo atropelamento do ator Kayky Brito: Existe algo de excepcional no caso a afastar a presunção de culpa do motorista?
terça-feira, 26 de setembro de 2023
Atualizado às 07:46
Sempre que um fato público repercute na mídia, tem-se uma excelente oportunidade para revisitar alguns temas, e, neste momento, rever algumas visões sobre a responsabilidade civil. Nesse caso, justificável novamente debater a responsabilidade civil do condutor de veículo por atropelamento de pedestre. Trata-se de um tema complexo que envolve diversos aspectos legais, sociais e morais - e alguns prejulgamentos. Se por um lado, quem dirige deve fazê-lo com cuidado, por outro lado, é lugar comum a exigência de cautela por parte do pedestre. Esse assunto ganha novos relevos em razão da comoção causada pelo atropelamento do ator Kayky Brito.
Em primeiro lugar, cumpre lembrar que o veículo a motor, automóvel, é um gerador natural de riscos. Veloz, dinâmico e metálico, é meio de conforto, segurança e desenvolvimento, mas também pode originar perigosos desdobramentos, acidentes com danos graves e óbito dos envolvidos.
Não sem razão, o Código de Trânsito Brasileiro, em seu artigo 29, parágrafo segundo, estabelece que os condutores de veículos devem respeitar a prioridade dos pedestres nas faixas de travessia e sempre cuidar destes: "respeitadas as normas de circulação e conduta estabelecidas neste artigo, em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade dos pedestres." A responsabilidade de quem dirige é a mesma de quem se utiliza de qualquer bem que, por sua natureza, gere riscos.
Para que a responsabilidade civil do condutor seja configurada em casos como estes, é necessário que sejam atendidos os seguintes requisitos: o condutor deve ter agido de forma a causar o atropelamento do pedestre. Deve haver um dano efetivo causado ao pedestre, seja ele de ordem moral ou patrimonial. Os danos podem variar desde lesões físicas graves até danos psicológicos decorrentes do acidente. Ademais, deve existir uma relação direta entre a conduta do condutor e o dano causado ao pedestre. Em outras palavras, o atropelamento deve ser uma consequência direta da ação ou omissão do condutor. Uma vez configurada a responsabilidade civil do condutor, ele é obrigado a reparar os danos causados ao pedestre. Isso pode incluir o pagamento de despesas médicas, indenização por danos morais, ressarcimento por danos materiais (como avarias em objetos pessoais) e outros prejuízos decorrentes do atropelamento.
Porém, unindo-se a circunstância especial com o pensamento geral, neste contexto, é usual a opinião doutrinária de que existe presunção da culpa em caso de abalroamento de pedestre, valendo citar o mais detalhado livro brasileiro sobre a matéria, Acidentes de Trânsito, Responsabilidade e Reparação, de Arnaldo Rizzardo:
"Torna-se perfeitamente previsível que, em um momento ou em outro, alguém, imprudentemente ou com pressa, cometa algum desatino e ingresse na pista de rolamento. Por isso, coloca-se sempre o motorista em grau maior de responsabilidade pelos eventos que podem ocorrer envolvendo pedestres. Sua culpa é presumida."1
Deste modo, é necessário verificar a questão relativa ao atendimento de um dever objetivo de cuidado (culpa objetivada), no caso concreto, que veio a resultar em um atropelamento de pedestre, origem da mencionada presunção.2 Se em razão do mencionado dispositivo do CTB existe um dever de cuidado, este gera um standard de conduta a delimitar o que não é e o que é conduta culposa. O condutor de veículo, motorista, deve sempre ter cautela e cuidar de não abalroar. Mas será que há casos e casos?
Da leitura dos veículos de imprensa,3 temos que o ator foi atropelado cerca de quatro horas da manhã, fora da faixa de pedestres, por veículo que trafegava em velocidade alta, porém dentro da faixa legalmente permitida. O motorista não estava alcoolizado, e trabalha com aplicativos de transporte. Aparentemente, pelas imagens, é possível verificar que o ator não atravessou de modo cauteloso.
No entanto, é exatamente em casos nos quais, nas palavras de Rizzardo, um (possível) descuido do pedestre deve ser motivo redobrado para a cautela do motorista, especialmente de madrugada, em via ao lado da praia, que sempre tem pessoas e nunca está completamente vazia, a qualquer hora do dia ou da noite, no Rio de Janeiro.
Nesta ordem de ideias não há no caso nada que afaste a presunção de culpa do motorista, que deveria ter sido mais cauteloso, visto que trafegava com baixa visibilidade, de madrugada, em local com pessoas. Há julgados a amparar tal visão, como por exemplo este, do Superior Tribunal de Justiça:
"RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO EM RAZÃO DE ACIDENTE DE TRÂNSITO. CONDUÇÃO DE MOTOCICLETA SOB ESTADO DE EMBRIAGUEZ. ATROPELAMENTO EM LOCAL COM BAIXA LUMINOSIDADE. INSTRUÇÃO PROBATÓRIA INCONCLUSIVA SE A VÍTIMA ENCONTRAVA-SE NA CALÇADA OU À MARGEM DA CALÇADA, AO BORDO DA PISTA DE ROLAMENTO. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. 1. Em relação à responsabilidade civil por acidente de trânsito, consigna-se haver verdadeira interlocução entre o regramento posto no Código Civil e as normas que regem o comportamento de todos os agentes que atuam no trânsito, prescritas no Código de Trânsito Brasileiro. A responsabilidade extracontratual advinda do acidente de trânsito pressupõe, em regra, nos termos do art. 186 do Código Civil, uma conduta culposa que, a um só tempo, viola direito alheio e causa ao titular do direito vilipendiado prejuízos, de ordem material ou moral. E, para o específico propósito de se identificar a conduta imprudente, negligente ou inábil dos agentes que atuam no trânsito, revela-se indispensável analisar quais são os comportamentos esperados e mesmo impostos àqueles, estabelecidos nas normas de trânsito, especificadas no CTB. 2. A inobservância das normas de trânsito pode repercutir na responsabilização civil do infrator, a caracterizar a culpa presumida do infrator, se tal comportamento representar, objetivamente, o comprometimento da segurança do trânsito na produção do evento danoso em exame; ou seja, se tal conduta, contrária às regras de trânsito, revela-se idônea a causar o acidente, no caso concreto, hipótese em que, diante da inversão do ônus probatório operado, caberá ao transgressor comprovar a ocorrência de alguma excludente do nexo da causalidade, tal como a culpa ou fato exclusivo da vítima, a culpa ou fato exclusivo de terceiro, o caso fortuito ou a força maior. 3. Na hipótese, o ora insurgente, na ocasião do acidente em comento, em local de pouca luminosidade, ao conduzir sua motocicleta em estado de embriaguez (o teste de alcoolemia acusou o resultado de 0,97 mg/l - noventa e sete miligramas de álcool por litro de ar) atropelou a demandante. Não se pôde apurar, com precisão, a partir das provas produzidas nos autos, se a vítima se encontrava na calçada ou à margem, próxima da pista. 3.1 É indiscutível que a condução de veículo em estado de embriaguez, por si, representa o descumprimento do dever de cuidado e de segurança no trânsito, na medida em que o consumo de álcool compromete as faculdades psicomotoras, com significativa diminuição dos reflexos; enseja a perda de autocrítica, o que faz com que o condutor subestime os riscos ou os ignore completamente; promove alterações na percepção da realidade; enseja déficit de atenção; afeta os processos sensoriais; prejudica o julgamento e o tempo das tomadas de decisão; entre outros efeitos que inviabilizam a condução de veículo automotor de forma segura, trazendo riscos, não apenas a si, mas, também aos demais agentes que atuam no trânsito, notadamente aos pedestres, que, por determinação legal ( § 2º do art. 29 do CTB), merece maior proteção e cuidado dos demais. 3.2 No caso dos autos, afigura-se, pois, inarredável a conclusão de que a conduta do demandado de conduzir sua motocicleta em estado de embriaguez, contrária às normas jurídicas de trânsito, revela-se absolutamente idônea à produção do evento danoso em exame, consistente no atropelamento da vítima que se encontrava ou na calçada ou à margem, ao bordo da pista de rolamento, em local e horário de baixa luminosidade, após a realização de acentuada curva. Em tal circunstância, o condutor tem, contra si, a presunção relativa de culpa, a ensejar a inversão do ônus probatório. Caberia, assim, ao transgressor da norma jurídica comprovar a sua tese de culpa exclusiva da vítima, incumbência em relação à qual não obteve êxito. 4. Recurso especial improvido." (STJ - REsp: 1749954 RO 2018/0065354-5, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Julgamento: 26/02/2019, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 15/03/2019)
Verifica-se que a baixa luminosidade foi usada como motivo para que houvesse responsabilização e, ainda, que foi considerada incidente a mencionada presunção de culpa. O standard é esse: dirigir para não abalroar. Há casos nos quais a culpa exclusiva da vítima pode romper o nexo de causalidade? Por exemplo, atropelamentos ocorridos em vias nas quais a circulação de pedestres é proibida, ou ainda em casos de travessias de vias nas quais logo acima existe passarela ou, logo abaixo, uma passagem subterrânea. Nada disso ocorreu na Avenida Lúcio Costa, Barra da Tijuca, ao tempo do atropelamento do aludido ator.
Já houve julgados em tribunais brasileiros entendendo que deve ser responsabilizado quem tinha melhor oportunidade de evitar o acidente, e se entendeu que a oportunidade era do pedestre.4 Já houve até caso, curioso, aliás, no qual a pedestre foi condenada a indenizar, visto que constatou-se sua culpa exclusiva.5 Contudo, estes casos incomuns não devem nos desviar da visão, essa sim histórica e usual, do dever de direção defensiva, que deve acima de tudo respeitar o pedestre.
O caso do ator, tão repercutido pela mídia, tem causado comentários que imputam ao referido desídia ou descuido, quase que como se tivesse se deixado atropelar, e foi mesmo matéria de debate em sala de aula em nossas aulas do LLM em Direito Civil e Processo Civil da Escola de Direito da FGV - Rio de Janeiro, o que ensejou este pequeno texto, no qual quis trazer ao lume, novamente, o fato básico que o dever de cuidado recai sobre o motorista. Neste momento inicial, não parece haver litígio entre o condutor e a família, que reconhece que este ter socorrido o atropelado foi fundamental para a sua sobrevivência. Possivelmente sequer teremos ajuizamento de ação de indenizar, de parte a parte. De qualquer modo, o caso nos serve, como dito de início, como boa oportunidade para revisitar estes pressupostos e, respondendo a pergunta inicial, não há nada de excepcional neste caso que justifique o afastamento da presunção de culpa do condutor, ou demais elementos que o responsabilizem.
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1 São Paulo: Gen, 12ª Ed, p. 164.
2 No mesmo sentido, Rosenvald, Farias e Braga Netto, Novo Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 1.437.
3 Disponível aqui.
4 "Ação de indenização decorrente de acidente de trânsito - Sentença de improcedência - Apelo do autor - Atropelamento de transeunte que tentou atravessar pista de rolamento destinada ao tráfego de veículos leves e de grande porte. Inegável, pelo que se tem nos autos, que a causa imediata ou direta, e que preponderou para a ocorrência do acidente, foi a conduta da vítima, que, de inopino, tentou atravessar via em local e momento inapropriado. Portanto, a vítima, e não o condutor do ônibus, como o autor quis fazer parecer crer, tinha a melhor oportunidade de evitar o acidente e, em linha de desdobramento causal, induvidoso que o causou, por adotar conduta por demais imprudente - Ausência de provas quanto à culpabilidade do condutor do veículo - Culpa exclusiva da vítima que exclui a responsabilidade dos réus de indenizar - Recurso do autor improvido. " (TJ-SP - AC: 10510103820158260100 SP 1051010-38.2015.8.26.0100, Relator: Neto Barbosa Ferreira, Data de Julgamento: 16/02/2022, 29ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 16/02/2022)
5 0314977-31.2017.8.24.0018, Tribunal de Justiça de Santa Catarina.