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O movimento pendular na evolução do Direito: As transformações contemporâneas da responsabilidade civil e o necessário reconhecimento de suas plúrimas funções

terça-feira, 19 de setembro de 2023

Atualizado às 08:34

O Direito, de uma forma geral, evolui em movimentos pendulares e, dificilmente, estagna, como, na verdade, não poderia ser diferente. A vida é dinâmica e a sociedade está em constante movimento e o que se espera é que o Direito acompanhe essa cinesia.

Importante frisar que essa evolução do Direito se dá não apenas por inovações legislativas, mas especialmente a partir de sua interpretação e aplicação. Isso porque, o estudo e a concretização do Direito se dão em um contexto social, político e econômico. Assim, é estabelecido entre a realidade social e a realidade normativa uma ligação de tal ordem que "a transformação da realidade social em qualquer dos seus aspectos significa a transformação da realidade normativa e vice-versa"1.

Essa necessária e justificável dinamicidade do Direito, ao que parece, encontra terreno fértil no campo da responsabilidade civil. Especificamente no ordenamento jurídico brasileiro, é possível identificar duas fases bem demarcadas nessa evolução e uma possível terceira fase em curso.

Em sua primeira fase, o instituto possuía uma função eminentemente sancionatória e moralizante, evidenciada especialmente pela adoção da culpa como fator principal de imputabilidade e a responsabilidade subjetiva como regra. Já em uma segunda fase, após um "giro conceitual"2, resultante da incidência da axiologia constitucional, especialmente dos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade social, inicia-se uma nova fase cuja função primordial é a reparatória.

Essa segunda fase é evidenciada pela opção do constituinte em consagrar, como direito fundamental, o princípio da reparação integral dos danos (art.5º, X, CF/1988) e, em sede infraconstitucional, pela adoção do risco como outro fator de imputabilidade da responsabilidade civil, positivado como cláusula geral no Código Civil de 2002, além de ser o principal fator de imputabilidade no sistema de responsabilidade civil nas relações de consumo.

Em síntese, a vítima passa a ser a protagonista do sistema de responsabilidade civil. A preocupação central, sob a ótica da função reparatória, desloca-se do ofensor e da sua conduta imoral e culposa para a vítima e o dano injustamente sofrido. 

Cabe destacar que, em uma perspectiva constitucionalizada, o fundamento da teoria do risco é o princípio da solidariedade social3. Trata-se de fundamento constitucional para a desculpabilização da responsabilidade civil, à medida que o objetivo principal do instituto não é mais o de se buscar um culpado, mas sim o de proteger e amparar a vítima de um dano injusto. Ou seja, ultrapassada a concepção de reparação-sanção, o fundamento ético-jurídico da responsabilidade é reorientado pelo valor solidarista de proteção daquele que sofreu um dano injusto. 

Seja como for, desde as presunções de culpa à adoção do risco enquanto fator de imputabilidade, todos os expedientes adotados figuraram como importantes instrumentos a favor da reparação da vítima. A responsabilidade objetiva, que no início era tratado como uma exceção, tornou-se a regra considerando o quantitativo das hipóteses abarcadas.

Nesse sentido, afirma-se que o primeiro movimento pendular foi o da culpa em direção ao risco e, com isso, da função primordialmente sancionatória para a função eminentemente reparatória da responsabilidade civil. Ademais, em um contexto geral, o movimento da culpa ao risco é um nítido reflexo e reposta à revolução tecnológica.

As consequências da revolução industrial impactaram diretamente a forma de produção econômica e a produção dos então denominados acidentes, responsáveis pela concretização de riscos. Como resposta, no âmbito da responsabilidade civil, a objetivação da reponsabilidade expressou a superação da temida prova diabólica da culpa, que recaía sobre a vítima que, não raras vezes, permanecia irresarcida em razão da impossibilidade de provar a culpa do lesante.

No entanto, na contemporaneidade, o pêndulo parece estar iniciando um movimento reverso, indicando uma possível terceira fase em curso, evidenciada pelas novas hipóteses de responsabilidade subjetiva. Certamente, não se afirma um retorno à sua feição anterior, a primeira fase. Mas, a culpa e a responsabilidade subjetiva retornam ao cenário com algum destaque. E, por mais paradoxal que possa ser, esse retorno está ocorrendo novamente em razão de uma nova revolução tecnológica, a da era digital.

Não se afirma com isso que o risco, enquanto fator de imputabilidade da responsabilidade civil, foi abandonado. Mas, em atenção às recentes leis que regulam relações impactadas por essa nova tecnologia, é possível verificar uma certa tendência, ou ao menos, propostas legais que não podem ser minimizadas, voltadas à adoção de culpa, enquanto fator de imputabilidade, para hipóteses relativas à transformação digital e tecnológica4. Trata-se de situações que, sob os olhares de poucas décadas atrás seriam qualificadas como sendo de risco, atraindo, por derradeiro, a responsabilidade objetiva.

Consequentemente, há de se questionar qual é, na atualidade, a função primordial da responsabilidade civil ou, ainda, se a responsabilidade civil passa a assumir múltiplas funções. Dito de outra forma, se o pêndulo inicia uma trajetória regressiva, seria razoável supor a permanência da função reparatória como primordial ou seria o momento de afirmar um perfil multifuncional para a responsabilidade civil?

Como já destacado em doutrina, "diante das demandas de sociedades complexas, plurais e altamente tecnológicas marcadas pela incerteza e desumanização inerentes, torna-se evidente e necessária a superação do caráter monofuncional da responsabilidade civil"5.

A rigor, além das funções punitiva ou sancionatória e reparatória, já referidas, evidencia-se uma terceira função para a responsabilidade civil, a função precaucional,6 atuando na inibição de atividades potencialmente danosas e/ou no condicionamento de tais atividades à observância de certos procedimentos visando a prevenção dos danos7.  

Em uma sociedade de risco8, a função precaucional e preventiva da responsabilidade civil se mostra essencial e pode ser compreendida até mesmo como um reflexo necessário da própria mudança na percepção do risco o que, invariavelmente, alcança a responsabilidade civil. Isso porque, na contemporaneidade, a própria noção de risco é reformulada e dissociada da noção de perigo, sendo apreendida como decorrência de uma decisão9.

Sendo assim, o dano decorrente de um risco também será aquele associado a uma decisão, de sorte que o impasse da sociedade contemporânea diz respeito à distribuição de riscos e a atribuição de responsabilidades pelos danos decorrentes das decisões tomadas.

Nessa perspectiva, é possível concluir que as discussões sobre o risco e a responsabilidade por seus efeitos passam a ser políticas. E, como já referido, algumas inovações legislativas recentes que regulam relações impactadas por novas tecnologias adotaram a culpa enquanto fator de imputabilidade.

Certamente que, dada a primazia do texto constitucional, tais opções não visam o abandono ou minimização da função reparatória da responsabilidade civil10, mas indicam a necessidade do reconhecimento de plúrimas funções para o instituto.  

__________

1 Perlingieri, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil-constitucional. 3. ed., rev. e ampl. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p.2.

Gomes, Orlando. Tendências modernas na teoria da responsabilidade civil. In: Di Francesco, José Roberto Pacheco (org.). Estudos em homenagem ao Professor Silvio Rodrigues. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 291-302.

3 Nesse sentido: "Já para o chamado direito civil-constitucional, como se sabe, não pode haver norma jurídica que não seja interpretada à luz da Constituição e que não se coadune com seus princípios fundamentais. Caberá, então, buscar o fundamento ético-jurídico na Constituição da República e lá será fácil identificar o princípio que dá foros de constitucionalidade, generalidade e eticidade à responsabilidade objetiva em todas as hipóteses em que ela se manifesta: é o princípio da solidariedade social". (Bodin de Moraes, Maria Celina. Risco, solidariedade e responsabilidade objetiva. In Tepedino, Gustavo e Fachin, Luiz Edson (coord). O direito e o tempo: embates jurídicos e utopias contemporâneas - Estudos em homenagem ao Professor Ricardo Pereira Lira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 866).

4 Como exemplo, pode-se citar o modelo de responsabilidade civil instituído pelo Marco Civil da Internet (lei 12.965/14). Soma-se ainda a controvertida divergência quanto ao regime adotado na responsabilidade civil no caso de violação à Lei Geral de Proteção de Dados (Lei n. 13.709/18 ou LGPD), se objetiva, subjetiva (ver: ROSENVALD, Nelson. A polissemia da responsabilidade civil na LGPD. Disponível aqui. Acesso em: 15.09.2023) ou até mesmo responsabilidade proativa (ver: BODIN DE MORAES, Maria Celina. LGPD:  um novo regime de responsabilização civil dito "proativo". Editorial à Civilistica.com. Rio de Janeiro: a. 8, n. 3, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 15.09.2023). Visualiza-se também controvérsias em legislações que sequer foram aprovadas. A exemplo do Projeto de Lei (PL) n. 2338/23 que visa instituir um Marco Legal da Inteligência Artificial (IA).

5 ROSENVALD, Nelson., CLEMENTE, Graziella. A multifuncionalidade da responsabilidade civil no contexto das novas tecnologias genéticas. Disponível aqui. Acesso em: 15.09.2023).

6 NELSON ROSENVALD. As Funções da Responsabilidade Civil A Reparação e a Pena Civil (Portuguese Edition). Editora Saraiva. Edição do Kindle.

7 NELSON ROSENVALD. As Funções da Responsabilidade Civil A Reparação e a Pena Civil (Portuguese Edition). Editora Saraiva. Edição do Kindle.

8 A partir de um debate travado no campo da sociologia e orientado para a tentativa de descrever as características mais marcantes da sociedade contemporânea, alguns autores identificaram no risco e na sensação generalizada de insegurança, o traço mais ressaltado da sociedade atual. (Ver: BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony e LASH, Scott. Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna. São Paulo: UNESP, 1997)

9 Acerca da noção de risco na obra de Niklas Luhmann, Anthony Giddens afirma que a mesma "se originou com a compreensão de que resultados inesperados podem ser uma conseqüência de nossas próprias atividades ou decisões, ao invés de exprimirem significados ocultos da natureza ou intenções inefáveis da Deidade". Em seguida, conclui  pelo acerto na distinção entre os conceitos, aduzindo que a discriminação entre risco e perigo "surge, essencialmente, de uma compreensão do fato de que a maioria das contingências que afetam a atividade humana são humanamente criadas" (GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. São Paulo: UNESP, 1991, p. 38 e 39). 

10 Sobre a função reparatória da responsabilidade civil, ver: MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo. Limites ao princípio da reparação integral no direito brasileiro. civilistica.com, v. 7, n. 1, p. 1-25, 5 maio 2018.