Reputação por um fio: responsabilidade civil por condenação midiática envolvendo suposto "erro médico"
quinta-feira, 24 de agosto de 2023
Atualizado às 08:29
Há uma frase comumente utilizada no discurso popular e que, ante a sua preciosidade afirmativa, convém ser o ponto de partida desta abordagem: "o dinheiro não compra tudo". Sempre que mencionada, é bem provável que esta afirmação considere que nem tudo na vida se resume a bens materiais, passíveis de precificação e, portanto, de compra e venda. Isto porque, ante um possível "consenso social" de que o importante, na vida, não são as "coisas" e sim os bens intangíveis, a conclusão por maior valoração ao que é imaterial se posiciona num grau de significados sensíveis à dignidade humana, tais como a felicidade, o amor, a presença de alguém, o tempo e a confiança.
Também pode-se incluir, nesta conjuntura, a "vida social" e uma "reputação profissional" solidamente construída, gerando a possível percepção de uma ótima credibilidade que, no entanto, se questionada de forma amplamente acusativa em uma conjuntura de prejulgamento depreciativo, pode se fragilizar abruptamente, ensejando um contexto imediato de morte social do sujeito.
Pode-se dizer que uma reputação profissional começa a ser construída desde o primeiro dia de um estudante na graduação. A postura adotada perante colegas e professores, as notas que alcança, as atividades extracurriculares que participa, os estágios que realiza, entre tantos outros parâmetros, já começam a ser indicadores, ao longo do tempo, de uma notoriedade profissional interessante.
Nos dicionários brasileiros, é possível encontrar definições do termo "reputação" como "fama, opinião pública, favorável ou desfavorável"1, e "conceito em que uma pessoa é tida; bom ou mau nome."2. Neste sentido, é possível afirmar-se que se trata de uma definição abstrata, da ordem da opinião, dependente da percepção individual e subjetiva, no entanto, também apta a alargar-se a uma compreensão coletiva e potencialmente objetiva, na medida em que incluída em um propósito de divulgação ampla, que pretende a perfazer em concreta.
Para isso, bastaria ser apresentada ao mundo social como verdade através de longo e frequente alcance, ainda que obtida por um julgamento antecipado, ilegítimo à esfera judicial. Assim, tal como a frase popular inicialmente trazida neste texto, pode-se refletir outra, atualmente também comumente utilizada, que é: "uma mentira dita mil vezes torna-se verdade", famosa afirmação de Joseph Goebbels, ex-ministro da propaganda na Alemanha Nazista e que explica o atual fenômeno das "fakes News".
A história de vida de um sujeito, neste sentido, é capaz de seguir uma linearidade de fatos enriquecidos por impressões causadas por suas condutas percebidas especificamente pelo meio social em que se insere, que podem ser valoradas, positivamente, em uma crescente. Contudo, pode também ser valorada negativamente, em um decréscimo abrupto, rápido e cruel, bastando uma manchete pública frequente, ausente de qualquer devido processo legal, apta a eliminar a carreira e a vida de um profissional.
Na tentativa de aproximar o leitor à reflexão que se propõe, utiliza-se como exemplo o caso de um cirurgião pediátrico do estado do Piauí, cuja informação veiculada, em matéria jornalística, de modo deturpado e acusativo a respeito de um terrível evento adverso, no entanto, sem culpa, terminou por causar severa consequência. No início do mês de julho, no Brasil, houve uma grande mobilização por parte de entidades da classe médica, após a notícia de que esse cirurgião pediatra foi encontrado morto, por provável suicídio, pouco tempo após seu nome e foto terem sido veiculados amplamente, pela imprensa, com a seguinte manchete: "Médico é indiciado por morte de criança de 6 anos no Hospital Unimed em Teresina" e massiva acusação, em meios de comunicação diversos, pela instituição investigadora.
Tratava-se de uma complicação descrita previamente em literatura médica, possível, embora obviamente indesejada, não proveniente de erro médico, decorrida durante a implantação de um cateter para tratamento de uma infecção que acometia a paciente, que cursava com insuficiência renal. E ainda que não se possa afirmar haver imediata relação de causa e efeito entre a veiculação da notícia e a morte do médico, necessário se faz refletir sobre como os meios de comunicação são capazes de ensejar prejulgamentos sociais, especialmente quando incluem nome e imagem do profissional, provocando severa angústia, embaraço e desespero ao acusado, à revelia de qualquer direito à sua prévia argumentação de defesa.
Neste caso em específico, a divulgação ampla nas redes sociais e televisivas afirmavam o discurso repetido pelos investigadores, alegando, sem o direito ao contraditório e ampla defesa, que o médico não teria utilizado adequadamente as técnicas de perfuração durante a aplicação do cateter, o que teria incorrido, por conseguinte, em suposta "imperícia" - esta que significa desconhecimento ou inobservância ao que preceituam as normas técnicas.
De acordo com a resolução 2.330/23, do Conselho Federal de Medicina, para que um cirurgião pediátrico desenvolva a sua formação, no Brasil, são necessários seis anos de graduação em medicina, somados a mais três anos de estudos árduos em Residência em Cirurgia Geral, e a mais três anos de especialização em Cirurgia Pediátrica. De outro modo, poderiam também ser necessários, para além dos seis anos de graduação em medicina, se submeter à uma severa prova de títulos perante uma entidade especializada após, no mínimo, doze anos de atuação prática-profissional na área da Cirurgia Pediátrica.
Conclui-se, portanto, que todo cirurgião pediátrico tem, no mínimo, doze ou dezoito anos de estudo e formação profissional, o que implica em uma reflexão sobre a sincera redução da possibilidade de cometimento de ato imperito. Trata-se, de todo o modo, de profissional que dedicou significativo tempo de estudo, que atendeu um razoável número de pacientes, que realizou um considerável número de procedimentos cirúrgicos, enfim, de um profissional que cumpriu todos os requisitos que o seu Conselho Profissional determina para o exercício legal da profissão de modo ultra especializado. No mínimo, há que se avaliar um necessário cuidado prévio à acusação de erro por atecnia, considerando a ocorrência de dano por questões alheias à adequada prática médica especializada.
No exercício da medicina, ainda que a expectativa social construa um imaginário de modo diverso, por vezes é inevitável a ocorrência de complicações mesmo que condutas peritas, prudentes e diligentes tenham sido realizadas, excluindo-se, portanto, qualquer ponto de vista de exatidão matemática à sua prática. Ou seja, ao prestar cuidados à saúde de um corpo humano em sua perspectiva biológica e psicossocial, mesmo com o uso de todas as recomendações técnicas, ainda que seja observada a mais recente e atualizada literatura científica ou que o procedimento tenha sido realizado pelo melhor e mais renomado profissional da medicina, é possível a ocorrência de agravos indesejados não provenientes de culpa. De todo o modo, mesmo tratando-se de um contexto que, ao final, seja comprovadamente culposo, há que se refletir sobre o meio adequado de análise, produção de provas e aplicação razoável de possível condenação, o que destoa de qualquer julgamento fulminante social.
Neste sentido, antevendo-se aos argumentos críticos inversos a esta análise que se apresenta, cumpre esclarecer: não se busca justificar ou defender eventual ocorrência de erro médico, mas sinalizar que, tanto é possível ter-se um dano não proveniente de erro, quanto que, mesmo havendo possível ocorrência, é necessária cautela e responsabilidade caso se pretenda noticiar investigação em curso, respeitando-se, inclusive, o princípio da inocência até prova em contrário. Embora a liberdade de imprensa seja imprescindível e indispensável ao exercício democrático do direito de informação à sociedade, não se trata de meio apto a tornar rarefeito o direito constitucional ao contraditório e ampla defesa, ou mesmo o direito à privacidade, que assegura a preservação de dados individuais e da honra, atributos intrinsecamente ligados à reputação profissional.
Considerando que a imprensa é formadora de opinião, há que se avaliar a responsabilidade de quem informa fatos aos meios de comunicação, sob os seus pontos de vista, bem como o modo como estes meios prosseguirão com as suas transmissões à sociedade, considerando as repercussões possíveis. Parte-se, assim, do pressuposto de um dever de informar revestido de dever de esclarecimento de forma clara e honesta, especialmente quando o tema noticiado envolve uma análise eminentemente técnica, como é o caso da ocorrência ou não de erro médico.
Na perspectiva do Direito Médico, o dano noticiado como proveniente de "erro médico", se analisado com critério e técnica, pode tanto ser real e efetivo, como, de outro modo, ausente de culpa, tal como uma "iatrogenia", um "acidente imprevisível", um "resultado incontrolável" ou, ainda, o que a doutrina reconhece como "erro escusável".
A Iatrogenia é um ato não punível, caracterizada por dano inculpável, no corpo ou na saúde do paciente, consequente de uma aplicação terapêutica, isenta de responsabilidade profissional. A título de exemplo, pode-se citar a cicatriz que se converte em queloide, um processo de cicatrização exacerbada ocorrida após o corte em um procedimento cirúrgico.3 Por sua vez, o acidente imprevisível é aquele ato que provoca dano à integridade do paciente em razão de um acontecimento imprevisível e inevitável, tal como a ocorrência de um terremoto durante a realização de uma cirurgia de grande porte.
Por seu turno, o resultado incontrolável é o que ocorre em razão das limitações da própria ciência, isto é, independe da capacidade do profissional. O óbito em razão de doenças que ainda não tem cura, por exemplo. Por fim, pode-se citar o erro escusável, que se apresenta como ato que provoca dano, ainda que tenha sido praticado com perícia, prudência e diligência. Este último pode ser compreendido à luz do que usualmente se chama de álea terapêutica, isto é, da falibilidade da própria Medicina.
Sendo assim, pode-se concluir que, além das notícias acusativas veiculadas não esclarecerem do que se trata um erro médico real e efetivo, também não apresentam outras possibilidades de ocorrências danosas, plausíveis à prática médica e sem culpa profissional.
Diversos são os estudiosos da responsabilidade civil médica que alertam que nem toda complicação pode ser interpretada como um erro médico, sendo o principal deles o Ilmo. Professor Genival Veloso de França, que assevera:
[...] nem todo resultado adverso na assistência à saúde individual ou coletiva é sinônimo de erro médico. A partir dessa premissa, deve-se começar a desfazer o preconceito que existe em torno dos resultados atípicos e indesejados na relação profissional entre médico e paciente. Os órgãos formadores de opinião poderiam contribuir muito em fazer avançar a sociedade denunciando as péssimas condições assistenciais e a desorganização dos serviços de saúde em nosso país. Exige-se muito dos médicos, mesmo sabendo que sua ciência é inexata e que sua obrigação é de meios e não de resultados. Ainda que a vida seja um bem imensurável, a supervalorização desta ciência não encontrou uma fórmula mágica e infalível. Por isso não se pode concordar com a alegação de que todo resultado infeliz e indesejável seja um erro médico.4
A publicização acusativa irrefletida e desarrazoada de complicações médicas não errôneas, portanto, é capaz de gerar danos incalculáveis. Tal como afirmado em artigo publicado junto ao Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo, é possível considerar-se, já há algum tempo no Brasil, a existência de um fenômeno intitulado "medicina-espetáculo". O autor reflete, ao se referir, neste trecho, ao meio televisivo:
Em outro canal é apresentado um caso de "erro médico". Pouco importa qual foi o fator determinante: imperícia médica, evento adverso, hiper-sensibilidade do paciente ou, talvez, a fatalidade. Não existe efetivamente nenhum interesse sério em nenhuma dessas questões. O tema é abordado com exemplar vulgaridade além de superficialidade e malícia impecáveis.5
[...]
Afinal, para que serve a Medicina-espetáculo? Promove a educação do povo? Induz a melhores hábitos de saúde? Melhora o conhecimento do corpo humano e suas debilidades? Prestigia a Medicina brasileira? Oferece aos aflitos e aos doentes uma luz, um caminho, talvez uma nova chance? A resposta, já sabida é não! Nos moldes em que vem sendo feita e apresentada, a Medicina-espetáculo é, salvo honrosas exceções, um frívolo insulto aos médicos e à inteligência do nosso povo.6
E arremata:
Não é o fim da Medicina-espetáculo que é ora sugerida: o que se propõe é a revisão do tema e uma tomada de consciência da relevância que o espetáculo pode encerrar em si mesmo.
Trata-se de um contexto de sérias repercussões, sendo importante uma revisão social sobre a forma de veiculação de fatos relativos à saúde. Mediante ampla punição social, a opinião pública desconhece, a título de exemplo, que ser "indiciado" por um delegado, não implica, necessariamente, em ser considerado "culpado" por um juiz. Contudo, fulmina sumariamente a reputação de um profissional médico indiciado, deturpando-se os cenários.
Neste rumo, e ponderando que a veiculação de notícias acusando ocorrência de erro médico contém forte conceito apelativo, é possível também considerar-se a ocorrência da possível mercantilização de situações existenciais7. Diferente da opinião pública, aos juristas é devido considerar, no caso referido acima, que o cirurgião pediátrico não deveria ser considerado culpado "até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória"8, por força do art. 5º, inciso LVII.
Do mesmo modo, por força do art. 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aos juristas também é cediço que "todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa."9
Neste sentido, faz-se importante refletir sobre a responsabilização de acusadores e meios de comunicação quando divulgadores ampla e inadvertidamente de notícias de suposto erro médico de modo acusativo, sensacionalista e descompromissado com a apuração das circunstâncias e pontos de vista. Necessário, pois, nestes casos, considerar o pleito de profissionais médicos ou seus familiares por reparação dos danos causados, sobretudo em ofensa à honra. Afinal, é interessante socialmente buscar-se o benefício do esclarecimento ou o malefício da desconfiança sobre a medicina? Trata-se de uma reflexão necessária, atual e premente.
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1 "reputação", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2023, disponível em https://dicionario.priberam.org/reputa%C3%A7%C3%A3o.
2 "reputação", in Michaelis [em linha], 2023, disponível em https://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=reputa%C3%A7%C3%A3o
3 ARAÚJO, Ana Thereza Meirelles, BARBOSA, Amanda Souza, Dano iatrogênico e erro médico: delineamento dos parâmetros para aferição da responsabilidade, Revista Thesis Juris, São Paulo, 2017
4 FRANÇA, Genival Veloso de.Direito médico. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p.207
5 MORAES FILHO, Joaquim Prado Pinto de. A MEDICINA COMO ESPETÁCULO. REVISTA SER MÉDICO. Edição 28, 2004. Disponível em https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=146
6 https://www.cremesp.org.br/?siteAcao=Revista&id=146
7 DANTAS BISNETO, Cícero. A reparação adequada de danos extrapatrimoniais individuais: alcance e limites das formas não pecuniárias de reparação. 2019. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/handle/ri/28690. Acesso em: 27 jul. 2023.
8 Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
9 Unesco. Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos. Disponível em https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf