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Em busca do pressuposto comum das classes de responsabilidade civil

quinta-feira, 15 de junho de 2023

Atualizado às 07:51

Na contemporaneidade, houve verdadeira implosão dos pressupostos e requisitos tradicionais da responsabilidade civil em geral. Surgiram, então, os pressupostos específicos de cada classe de responsabilidade civil: da responsabilidade por culpa ou subjetiva, da responsabilidade sem culpa ou objetiva, da responsabilidade transubjetiva (por fato de coisa, de animal ou de outra pessoa), da responsabilidade por fato ou atividade lícita, da responsabilidade preventiva, da responsabilidade sem danos efetivos, da responsabilidade por ilícito lucrativo.

Novos conceitos foram difundidos para conformação da responsabilidade civil: danos extrapatrimoniais, prevenção, precaução, atividade, risco, reparação punitiva, primazia da vítima, proteção, preservação, consolação ou satisfação da vítima para além da reparação.

Se a culpa, a antijuridicidade, o dano efetivo, o nexo de causalidade e a reparação, qualificados como requisitos tradicionais da responsabilidade subjetiva, não constituem pressupostos abrangentes de todas as classes de responsabilidade civil, o que há de comum, ou seja, o que se encontra presente em todas elas? Por exemplo: na responsabilidade objetiva não há culpa; na responsabilidade por atividade lícita não há ilicitude ou contrariedade a direito; na responsabilidade preventiva não há dano (não ocorreu ou pode não ocorrer) nem reparação; na responsabilidade transubjetiva não há nexo de causalidade entre dano e comportamento de quem efetivamente o originou (a culpa presumida já não é explicação adequada).

Não são mais comuns a licitude ou ilicitude do fato ou ato gerador, a existência ou não de dano real, a possibilidade ou não de reparação, a equivalência da reparação em razão da extensão do dano, o nexo causal entre determinado comportamento e o dano, a culpa do agente. A multiplicidade das espécies de responsabilidade civil e das próprias classes ante a crescente complexidade da vida desafiam a busca de pressupostos comuns entre elas.

Esse quadro, aparentemente inseguro, abre amplas possibilidades para a reconfiguração da responsabilidade no direito privado que abranja tanto as obrigações decorrentes de fatos passados (consequências negativas ou repressivas), principalmente quando geradores de danos, quanto as obrigações de fazer em virtude de situações e posições jurídicas (consequências positivas ou promocionais), sem a camisa de força dos requisitos tradicionais da responsabilidade subjetiva.

A afirmação dos direitos fundamentais, notadamente no mundo ocidental, duramente conquistada contra os despotismos de todos os matizes, de certa forma obliterou a compreensão dos consequentes deveres fundamentais, onde se insere a noção alargada de responsabilidade de cada pessoa humana. O predomínio exclusivo dos direitos fundamentais oponíveis ao Estado ou das liberdades públicas, de caráter negativo, apenas faz sentido em uma visão de mundo individualista e antropocêntrica, na qual o Estado, a sociedade e a natureza são apenas tolerados quando favorecem a realização individual. Os deveres fundamentais são necessariamente transindividuais, pois têm como destinatários a outra pessoa humana, a coletividade e os meios de vida digna das atuais e futuras gerações, implicando fins e futuridade. A reciprocidade é a tônica dos deveres fundamentais, pois cada pessoa humana é responsável pela outra, e ela é também responsabilidade das outras.

Quando o art. 931 do Código Civil estabelece a responsabilidade das empresas pelos danos que o produto causou, dispensa o requisito da contrariedade a direito e concentra-se no dano em si, que deve ser reparado. A atividade empresarial é lícita, mas basta o fato de pôr em circulação os produtos - licitamente produzidos - para responsabilizar-se pelos danos decorrentes. Antes, justamente pela ausência de contrariedade a direito, a lei não admitia a reparação desse dano, que se entendia inserido nos riscos da vida social, ou o preço a pagar pelo progresso econômico. Consequentemente, há danos reparáveis que não dependem de contrariedade a direito ou de ilicitude.

O dano causado por fato lícito é reparável, mas não é ilícito, o que também torna dispensável o pressuposto de nexo de causalidade da responsabilidade civil. O dano pode existir, mas o direito pré-excluir a ilicitude. O direito até admite que haja reparação do dano em alguns desses casos, mas não em virtude da ilicitude do ato causador. O dono de imóvel encravado em outro tem direito a servidão de passagem, mas há de indenizar o dono do imóvel serviente para que possa exercê-lo; o proprietário de imóvel tem direito a entrar no imóvel vizinho quando houver necessidade de reparos, limpeza, construção, mas assume a responsabilidade de indenizar os danos que provocar, ainda que sem culpa sua. Nesses casos, o dano não deriva de ato ilícito, e o dever de reparar independe de contrariedade a direito ou de existência de culpa, somente podendo ser excluído se houver culpa exclusiva da vítima, ou de terceiro, ou caso fortuito ou força maior.

Pontes de Miranda já aludia a hipóteses excepcionais nas quais o direito dispensaria a ocorrência do dano: a) a cobrança de dívida ainda não vencida; b) a cobrança de dívida já paga. Em sendo assim, o dano não poderia constituir pressuposto da responsabilidade civil em geral, porque o pressuposto não admite exceção.

Quanto ao nexo de causalidade, nunca é demais lembrar que a responsabilidade civil subjetiva, em sua origem, não o contemplava, bastando a prova da culpa do ofensor e do dano. Não há consenso doutrinário sobre o tipo de causalidade que o direito brasileiro deve adotar (direta, ou adequada, ou eficiente, ou necessária) prevalecendo a causalidade direta ou do dano direto e imediato, em razão do art. 403 do Código Civil. O STF (RE 130.764), aplicando norma do Código Civil anterior, idêntica à do atual art. 403, afirmou que em nosso sistema jurídico "a teoria adotada quanto ao nexo de causalidade é a teoria do dano direto e imediato, também denominada teoria da interrupção do nexo causal", aplicando-se também à responsabilidade extranegocial, "inclusive a objetiva, até por ser aquela que, sem quaisquer considerações de ordem subjetiva, afasta os inconvenientes das [demais]".

A relativização do nexo de causalidade tem esbarrado em afirmações categóricas de sua imprescindibilidade, contrariando a evolução do direito brasileiro. Como exemplo, o STJ, para negar a responsabilidade civil de shopping center por tiros desferidos por uma pessoa em cinema nele instalado, fundamentou-se na ausência de nexo de causalidade (REsp 1.164.889). Contudo, o nexo de causalidade deve ser afastado ou expandido quando houver solidariedade passiva dos fornecedores de serviços e o dever jurídico de proteção de terceiros, como no caso.

No plano filosófico é comum a relativização da causalidade e até mesmo sua negação. Por exemplo, Nietzsche, em A Gaia Ciência, afirma que a dualidade causa e efeito "não existe provavelmente jamais - na verdade temos diante de nós um continuum do qual isolamos algumas partes", na mesma linha que vem do pré-socrático Heráclito. Ocorre muito mais um processo, as causas sendo causadas por outras e os efeitos sendo causas seguintes. A vida é um fluxo eterno. A causalidade apenas existiria na linguagem, no pensamento.

Por seu turno, a imputabilidade, na evolução do direito, desligou-se da culpa e da causa da responsabilidade pelo ilícito civil. A imputabilidade contemporânea diz respeito à atribuição da responsabilidade pelo dano, independentemente de ter havido culpa ou até mesmo participação no evento (exemplo, empregador pelo fato danoso do empregado). É simplesmente imputação de responsabilidade patrimonial extranegocial. Deslocou-se da causa do dano para os efeitos do dano, máxime com o crescimento das hipóteses de responsabilidade que têm na origem atos e atividades lícitas.

Assim, a imputabilidade não mais está relacionada à capacidade delitual do agente, ou capacidade para praticar ilícito, salvo para os atos ilícitos referidos no art. 186 do Código Civil. O ato cometido pelo menor absolutamente incapaz, contrário a direito, é ilícito civil, ainda que ele pessoalmente seja inimputável; a imputabilidade é objetivamente trasladada para seus pais, que não participaram ou mesmo não sabiam do evento.

Tende-se para a extensão da imputação da responsabilidade, para além do fato gerador do dano, como ocorre com o direito do consumidor, que alcança todos os que, direta ou indiretamente, participaram do fornecimento do produto ou do serviço no mercado de consumo, não bastando a relação jurídica imediata, recorrendo-se à solidariedade passiva de todos. O mesmo ocorre com relação às pessoas e entidades referidas no art. 932 do Código Civil.

A reparação compensatória adquiriu autonomia própria, com a tutela dos danos extrapatrimoniais. A própria função reparatória da responsabilidade civil não é mais suficiente para abranger todas as suas dimensões contemporâneas. Exemplo é a incorporação do ilícito lucrativo entre as espécies de responsabilidade civil, como os estudos de Nelson Rosenvald apontam.

A quase exclusividade da indenização ou reparação pecuniária cedeu também sua primazia para modalidades de sanção ou pena civil, nas obrigações de fazer e de não fazer: a legislação processual estabelece que a obrigação somente se converta em perdas e danos se for impossível a tutela específica ou a obtenção de resultado prático correspondente ao adimplemento, ou se interessar ao autor, e sem prejuízo da multa (CPC, art. 489). O juiz pode determinar a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e impedimento de atividade nociva. Essas medidas produzem mais satisfação pessoal e social que a simples reparação em dinheiro.

Atualmente, retoma-se com força a ideia de conjugação de reparação e de pena, na responsabilidade civil (principalmente em situações de danos extrapatrimoniais), enquanto no ilícito criminal cada vez mais assiste-se a substituição da pena de prisão por "penas alternativas", de natureza civil, como obrigações de fazer ou obrigações de dar.

Sem o acréscimo da pena civil, a sociedade e outras pessoas ficam vulneráveis a novas violações dos direitos da personalidade, quando o valor econômico suplanta o valor jurídico, na apreciação de custo e benefício. Mas, nenhuma pena civil pode ser considerada sem previsão legal. Neste ponto, a responsabilidade civil atual retoma a diretriz fundamental da pena criminal, como requisito do estado de direito: nulla poena sine lege.

Há muito mais espécies e classes de responsabilidade civil de que nossa vã teoria é capaz de unificá-las a partir dos requisitos tradicionais. Comuns são os pressupostos de cada classe em relação às suas espécies. Apesar dessa constatação, haveria ao menos um pressuposto comum a todas elas? Assumindo-se a complexidade irredutível da vida contemporânea, podemos afirmar que sim: a imputação legal da responsabilidade a alguém de obrigação pecuniária ou não, em face de determinado fato jurídico lícito ou ilícito.