Para além das esferas da dimensão biológica e psicológica da pessoa humana: A dimensão noética e a necessidade de consequências concretas para a reparação dos danos existenciais
quinta-feira, 4 de maio de 2023
Atualizado às 07:37
O filósofo romeno Constantin Noica1, em belo trabalho de ontologia, reconheceu que ao lado das doenças somáticas e psíquicas, devem existir outras "de ordem superior", qualificadas como "doenças do espírito" que nenhuma neurose poderia explicar, entre outros sentimentos, o tédio metafísico, a consciência do vazio e do absurdo etc.
O criador da técnica logoterápica e professor de psiquiatria da Escola de Viena, Dr. Victor Frankl, descreve o ser humano em três dimensões, quais sejam: a dimensão biológica, a dimensão psicológica e a dimensão noológica, onde se desenvolvem os fenômenos noéticos2, ou seja, trata-se da dimensão espiritual no sentido mais largo do termo e que pode levar à ausência de "sentido existencial" e, por consequência, à perda "da vontade de sentido" 3.
Em geral, de graves lesões à vida e à saúde de uma pessoa surgem danos que limitam ou extirpam a vontade de viver decorrente de uma parcial ou completa ausência de sentido existencial, aquilo que Frankl chama de "vazio existencial". Antes, porém, tais lesões podem provocar sequelas que atingem o ser humano em sua vida de relação e em seus projetos de vida.
Existe notadamente uma diferença qualitativa, embora os danos sejam ontologicamente semelhantes, entre as três espécies de danos existenciais. O que será aqui sugerido é que para a reparação civil do dano existencial é necessário que se entenda a diferença qualitativa entre as três esferas de dimensões humanas - em sua acepção ontológica mesma - o que importará um valor maior da verba compensatória para cada título de acordo com a gravidade do dano.
O dano existencial, segundo Flaviana Rampazzo4, "se consubstancia, como visto, na alteração relevante da qualidade de vida, vale dizer, em 'um ter que agir de outra forma' ou em um 'não poder mais fazer como antes', suscetível de repercutir, de maneira consistente, e, quiçá, permanente, sobre a existência da pessoa. Significa ainda uma limitação prejudicial, qualitativa e quantitativa, que a pessoa sofre em suas atividades cotidianas".
No Peru, o professor Carlos Fernandez Sessarego5 desenvolveu o conceito de dano ao projeto de vida enquanto dano existencial. Segundo ele, o projeto de vida é, em sua linha de raciocínio, o rumo ou destino que a pessoa humana consagra à sua vida, ou seja, o sentido existencial derivado de uma prévia valoração, pois, enquanto ser humano, ela é livre para dar o rumo que desejar à sua própria existência, elegendo vivenciar de preferência certos valores, escolhendo determinada atividade de trabalho, perseguindo certos objetivos. Em resumo, como afirma Osvaldo Burgos6, "tudo o que a pessoa decide fazer com o dom de sua vida".
O impedimento ao projetar-se do homem por ato ilícito praticado por outrem ou mesmo o retardamento a esse vir a ser, ou ainda o seu impedimento parcial, caracteriza, dessa maneira, o dano extrapatrimonial a tal projeto de viver (total ou parcial, respectivamente), impondo ao lesado a mudança substancial dos seus rumos a gerar sofrimento para além daquilo que possa suportar, de forma mais ou menos intensa.
Observe-se o exemplo de um determinado pianista, em início de carreira e com futuro projetado de maneira promissora que, em razão de um acidente de veículo provocado por imprudência de um outro condutor, perdeu uma de suas mãos, impossibilitando-o de concretizar os resultados que planejava com muito esforço e previdência durante muitos anos de sua vida. O dano ao projeto de vida se estabelece, nessa situação, para além do dano tipicamente moral em razão da lesão à sua saúde e integridade física e independentemente da existência de danos emergentes e/ou lucros cessante caso existentes.
Já o dano à vida de relação, embora imponha prejuízos existenciais à pessoa, difere do dano ao projetar-se na vida pelo motivo de não abarcar um vir a ser frustrado de maneira total ou parcial; entrementes, implica no aviltamento das condições de relacionamento do "ser" em sociedade, a dizer, na sua profissão, no seu casamento, na sua vida sexual e/ou familiar etc, a ponto de desestruturar também total ou parcialmente o seu dia a dia.
O dano ao projeto de vida e à vida de relação de uma pessoa pode derivar de lesão existencial à integridade física ou à integridade psicológica, seja porque o homem não tem mais aptidão física para realizar determinado ofício - como na situação do pianista com mãos e dedos decepados -, seja porque foi acometido de um mal psíquico que o levou à depressão por um período mais ou menos longo.
Resta-se evidente que tais agressões resultam no sujeito a ruptura do seu equilíbrio psicoemocional, ou seja, a homeostase (estado livre de tensão), mas, ainda assim, não se atinge o seu estado de equilíbrio espiritual, ou seja, quando esse estado é concretamente violado, a vontade de viver perde qualquer sentido, diante de atos ultrajantes que aviltam a própria alma humana e o suporte espiritual7.
Segundo Frankl8, é nesse espaço em que a noodinâmica é atingida, e não mais a homeostase. A homeostase pode ser solapada por atos menos graves e um estado de tensão que produz a sua quebra resulta até necessário para o amadurecimento psíquico da pessoa em algumas situações. O dano resultante, portanto, da quebra noodinâmica do ser humano pode ser denominado de dano noológico.9
Gize-se como exemplo o dos judeus sobreviventes aos campos de concentração nazistas. Predicada a situação particular ao aviltamento intenso da dignidade humana, os fortes traumas desenvolvidos por eles, resultaram, para muitos, em verdadeiros danos noológicos, ante à quebra - em consideração permanente em cada vida humana - do equilíbrio do espírito e da sua correlata função noodinâmica.
Os danos existenciais podem, em apertada e ligeira síntese, ser classificados como dano ao projeto de vida, dano à vida de relação e dano noológico.
As duas primeiras espécies aparentam produzir efeitos semelhantes sobre o homem, isto é, são decorrentes de agressões aos aspectos biológico e psicológico do sujeito e podem constituir consequências limitadoras ou impeditivas do funcionamento corporal e psíquico dele, resultando prejuízos consideráveis ao constante devir humano e aos relacionamentos de vida em suas múltiplas acepções. A terceira espécie, de sua parte, é decorrente da quebra do equilíbrio noológico da pessoa humana e resulta da falta de vontade de viver por consequência do vazio existencial provocado pela lesão de tão grande magnitude, podendo-se asseverar que a sua característica mais importante - e a que o faz diferenciar sobremaneira dos demais espécimes agora catalogados - é o elemento qualitativo da lesão: a lesão que pode atingir o equilíbrio noodinâmico para além do equilíbrio homeostático.
Nessa ordem de ideias, a pessoa pode ser atingida em seu aspecto biológico e não desenvolver graves consequências sobre a sua psiquê ou sobre o seu sentido existencial de vida; pode, outrossim, desenvolver consequências sobre o seu estado psíquico sem ter sido atingido em seu campo biológico e também noético; entretanto, não pode ter seu estado espiritual atingido e não ter também sido atingido, a jusante, o seu estado psíquico, não obstante possa, na mesma situação, não ter sido atingido o seu estado biológico.
Em termos de gravidade provocada, pode se estabelecer que o dano resultante da quebra do equilíbrio noológico - que vem sempre a rebote da quebra do equilíbrio psicológico - é o de maior intensidade na vida do cidadão e, por isso mesmo, merece atenção especial do Juiz a fim de possibilitar um maior valor à título de reparação pecuniária.
Extrai-se, de pronto, a partir da categorização ora formulada, uma conclusão importante tanto para a teoria dos danos quanto para a práxis judicial: diferentemente do dano moral, o dano existencial, à guisa de sua classificação tripartite, é um dano de consequência provada, ou aquilo que em doutrina italiana se chamava de dano-consequência ou dano-prejuízo, cuja utilização foi defendida no Brasil por autores importantes10.
Silvio Neves Baptista11 compreende o dano como um fenômeno unitário e um verdadeiro fato jurídico. Para o eminente jurista brasileiro, o dano é um fato jurídico consequente decorrente de um fato jurídico antecedente que, quando entra no mundo jurídico, produz efeitos indenizativos. Portanto, os fatos antecedentes podem existir sem que sejam transformados em supostos jurídicos, quando o ordenamento não lhe atribua consequências indenizativas, a exemplo dos prejuízos não indenizáveis provenientes de fatos encobertos por excludentes de ilicitude. Logo, enxerga o dano como uma unidade pressuposta do dever de reparar.
De fato, a lesão a um interesse juridicamente tutelado pressupõe uma determinada consequência jurídica, contudo, tal efeito pode se encontrar predisposto no fato jurídico danoso (p., ex, o dano à honra de um sujeito absolutamente incapaz) ou necessitado de comprovação concreta (caso dos danos existenciais, na tipologia aqui adotada). Daí ser preferível à expressão "dano presumido" a expressão dano de consequência predisposta.
Com base nesse raciocínio, quanto aos seus efeitos ou consequências, sugere-se dizer que os danos podem ser classificados em: a) Danos de Consequência Predisposta e b) Danos de Consequência Concreta ou Provada. Assim, nesse contexto, o Dano em seu sentido jurídico, como categoria unitária, não pode nunca ser presumido, porquanto está sempre pressuposto e entretecido ao dever de reparar, isto é, havendo lesão a um interesse tutelado pelo ordenamento jurídico, também se pressupõem as suas consequências sempre jurídicas, estando estas predispostas normativamente no fato danoso ou necessitadas de comprovação concreta em cada caso particular.
O dano moral é um dano de consequência predisposta, pois decorre da simples lesão à bem personalíssimo do sujeito; enquanto o dano existencial - em qualquer de suas facetas - é uma espécie de dano extrapatrimonial de consequência concreta ou provada, cuja gradação poderá levar o Juiz a fixar a verba compensatória de acordo com a gravidade dessas mesmas consequências.
Em resumo, os danos ao projeto de vida e à vida de relação merecem um valor consideravelmente maior em sua reparação que os simples danos morais, e, entre os danos existenciais, o dano noológico merece um valor maior, a título de reparação, que os danos ao projeto de vida e à vida de relação.
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1 NOICA, Constantin. As seis doenças do espírito. Tradução de Fernando Klabin e Elena Sburlea. Beste/Bolso: Rio de janeiro, 2011, p. 19.
2 FRANKL, Victor. A vontade de sentido. Fundamentos e aplicações da logoterapia. Tradução de Ivo Studart Pereira. São Paulo: Paulus, 2011, p. 27-32.
3 FRANKL, Victor. A falta de sentido. Um desafio para a psicoterapia e a filosofifia. Tradução de Bruno Alexander. Campinas-SP: Auster, 2021, p. 45 e ss.
4 SOARES, Flaviana Rampazzo. Responsabilidade civil por dano existencial. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 144 e 145.
5 SESSAREGO, Carlos Fernandez. El daño al proyecto de vida. Disponível em
6 BURGOS, Osvaldo R. Daños al proyecto de vida. Buenos Aires: Astrea, 2012, p. 137-138.
7 FRANKL, Victor. Sobre o sentido da vida. Tradução de Vilmar Schneider. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022, p. 111.
8 FRANKL, Viktor E. Em busca de sentido. Trad. de Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline. São Leopoldo: Sindonal; Petrópolis: Vozes, 2019, p. 126 e 128.
9 Nomenclatura criada por este articulista.
10 FLUMIGNAN, Silvano José Gomes. DANO-EVENTO E DANO-PREJUÍZO. Tese: Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2009.
11 BAPTISTA, Silvio Neves. Teoria geral do dano. São Paulo: Atlas, 2003, p. 65 e 76.