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A fluid recovery brasileira na atual jurisprudência do STJ e na proposta de reforma da Lei da Ação Civil Pública (PL 1641/21)

terça-feira, 4 de abril de 2023

Atualizado às 09:15

A fluid recovery no Brasil 

Instituto audacioso e ainda enigmático, a fluid recovery (reparação fluída) foi inserida em 1990 no microssistema de tutela coletiva brasileira como mecanismo voltado à efetividade da responsabilidade civil no âmbito das relações de massa.

O desenho processual originariamente previsto para as class actions no Brasil (ações coletivas de tutela de direitos individuais homogêneos) suscita duas fases. Inicialmente, os legitimados coletivos - agindo na qualidade de substitutos processuais das vítimas lesadas por uma origem comum -, requerem a fixação da responsabilidade civil do(s) réu(s) por meio de uma sentença condenatória genérica. Subsequentemente, espera-se que as próprias vítimas compareçam individualmente em juízo, demonstrando o nexo causal e o dano pessoal, objetivando liquidar os valores devidos e finalmente executá-los.

Todavia, referido modelo processual pode se revelar extremamente ineficiente, na medida em que depende da ampla informação social a respeito das demandas coletivas propostas e das condenações obtidas, assim como da disseminada acessibilidade individual das vítimas ao sistema de justiça.

Daí a enorme relevância do mecanismo previsto no art. 100 do CDC - autêntica ferramenta de fechamento do sistema de tutela coletiva -, que objetiva viabilizar a liquidação e execução das indenizações não buscadas a título individual pelas vítimas.1

A não ativação da pretensão de quantificação e execução da fluid recovery oportuniza o locupletamento ilícito dos demandados, frustrando a multifuncionalidade da responsabilidade civil no âmbito da tutela coletiva nacional.   

Natureza jurídica 

Os diversos obstáculos à plena operacionalidade da fluid recovery brasileira derivam da indefinição de sua natureza jurídica - até hoje discutida. A incompreensão do sistema de justiça a respeito do instituto acarreta reducionismo ou simplesmente inviabilização da sua realização concreta.  

 Fundamentalmente, duas correntes doutrinárias se formaram para tentar explicar o mecanismo versado pelo art. 100 do CDC, ora sustentando sua natureza reparatória residual, ora afirmando sua natureza sancionatória.

Se a quantificação do montante a ser remetido ao Fundo reparatório previsto pelo art. 13 da LACP compreender a mera soma das indenizações devidas às vítimas que não procuraram o Poder Judiciário para executar a condenação genérica, a fluid recovery assumiria, então, natureza reparatória residual.2

Por outro lado, entendendo-se que a liquidação da fluid recovery não se restringe à quantificação das lesões individuais não reclamadas judicialmente, devendo levar em consideração também a necessidade de se imprimir aos demandados punição pedagógica para a não reiteração da conduta ilícita e lesiva aos direitos metaindividuais, então sua natureza jurídica seria sancionatória.3

Ambos os caminhos sugeridos, por certo, geram perplexidades.

A tese da natureza reparatória residual da fluid recovery, por exemplo, sugeriria a necessidade da efetiva comprovação da existência e da extensão dos danos individuais não indenizados diretamente às vítimas - tarefa muitas vezes impossível ou extremamente onerosa às entidades colegitimadas à instauração do procedimento regulado pelo art. 100 do CDC.4 Para além disso, ainda que fosse viável provar e quantificar com exatidão os valores indenizatórios individuais não reclamados, sua destinação aos fundos reparatórios não se prestaria a desestimular a continuidade ou reiteração das práticas ilícitas e lesivas, ignorando, também, os lucros ilícitos auferidos pelos demandados.

A tese da natureza sancionatória da fluid recovery, por sua vez, (res)suscita toda a difícil e ainda recente discussão que o sistema de justiça brasileiro vem travando a respeito da aplicação, limites e alcance da multifuncionalidade da responsabilidade civil. Nesse sentido, a literalidade do art. 100 do CDC não satisfaz à evidente necessidade de se ativar, para muito além da clássica função reparatória, as funções precaucional, preventiva, punitivo-pedagógica e restitutória, absolutamente imprescindíveis no campo das relações de massa e da proteção dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos.     

 

A atual orientação jurisprudencial do STJ a respeito da fluid recovery 

No longo caminho já trilhado (e ainda por se trilhar) rumo à adequada compreensão e concretização da fluid recovery brasileira, o Superior Tribunal de Justiça já parametrizou importantes premissas, inclusive a respeito de sua natureza jurídica.

Recentemente, definiu o STJ que o mecanismo pode assumir, dependendo do caso concreto, tanto natureza reparatória residual como punitiva.

Em aresto relatado pela Min. Nancy Andrighi, afirmou-se: "Não é possível definir, a priori, a natureza jurídica desse instituto, que poderá variar a depender das circunstâncias da hipótese concreta. Se for viável definir a quantidade de beneficiários da sentença coletiva, bem como o montante exato do prejuízo sofrido individualmente por cada um deles, a fluid recovery terá caráter residual. De outro lado, se esses dados forem inacessíveis, a reparação fluida assumirá natureza sancionatória, evitando-se, com isso, a ineficácia da sentença e a impunidade do autor do ilícito.5

Conforme o STJ, ainda, o objetivo da fluid recovery "consiste, sobretudo, em impedir o enriquecimento sem causa daquele que praticou o ato ilícito", e que "A ausência das informações necessárias para a constatação dos prejuízos efetivos experimentados pelos beneficiários individuais da sentença coletiva não deve inviabilizar a utilização da reparação fluida. Nessa hipótese, a indenização poderá ser fixada por estimativa, podendo o juiz valer-se do princípio da cooperação insculpido no art. 6º do CPC/2015 e determinar que o executado forneça elementos para que seja possível o arbitramento de indenização adequada e proporcional."6

Dessa forma, o STJ não apenas reforçou seu entendimento a respeito da possível instrumentalização da fluid recovery para o fim de evitar o enriquecimento ilícito dos réus7 como, fundamentalmente, consagrou sua finalidade punitivo-pedagógica.    

A proposta de nova regulação da fluid recovery no PL 1641/2021

Elaborado por uma comissão de juristas designada pelo Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP), o Projeto de Lei nº 1641/2021 objetiva aprimorar o sistema processual coletivo no Brasil.8

Dentre as inovações propostas, enuncia-se expressamente que a tutela coletiva é regida pelo princípio da "efetiva precaução, prevenção e reparação integral dos danos patrimoniais e morais, individuais e coletivos" e da "responsabilidade punitivo-pedagógica e restituição integral dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas".9

Vale dizer, a multifuncionalidade da responsabilidade civil finalmente encontraria textura legislativa no ordenamento jurídico brasileiro, adequando-se seu regime jurídico às necessidades impostas pelas relações sociais do século XXI.

Para além disso, referido Projeto de Lei reforma a fluid recovery, estabelecendo, como critérios para sua quantificação, não apenas a ausência de habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano (critério atualmente disposto pelo art. 100 do CDC), mas também "os lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas".10

A inovação proposta atribui à fluid recovery a potencial função de neutralização dos ilícitos lucrativos (disgorgement), tanto cara à efetividade da tutela coletiva quanto esquecida até hoje pelo legislador brasileiro.11

Dessa forma, a partir da orientação jurisprudencial do STJ e da proposta de ressistematização da tutela coletiva engendrada pelo PL 1641/2021, extrai-se a conclusão de que o mecanismo da fluid recovery pode assumir naturezas tão diversificadas quantas forem as funções que, à luz do caso concreto, a responsabilização civil dos demandados nas ações coletivas exigir.

__________

Lei 8.078/90, art. 100 - "Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenização devida. Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o fundo criado pela Lei n.° 7.347, de 24 de julho de 1985."

2 Nesse sentido, originariamente, GRINOVER, Ada Pellegrini. Código brasileiro de defesa do consumidor (comentado pelos autores do anteprojeto). São Paulo: Editora Forense, 4ª ed., 1995, p. 565.

3 Sustentamos a necessidade de se imprimir à fluid recovery uma função sancionatória (para além da reparatória) há mais de duas décadas: "Mais do que emprestar uma tutela coletiva à defesa de direitos individuais homogeneizados, o legislador do CDC acabou por, considerando a elevada relevância social não só da facilitação da defesa processual mas também da repressão efetiva aos responsáveis pela lesão à classe, o que inegavelmente condiz com o interesse social, ao mesmo tempo não deixa-los impunes (não se lhes permitindo enriquecimento ilícito) e propiciar mais uma fonte de captação de recursos ao Fundo criado pela LACP". VENTURI, Elton. Execução da tutela coletiva. São Paulo: Editora Malheiros, 2000, p. 154. 

4 A título de exemplo, o STJ já decidiu pela necessidade de efetiva demonstração dos danos individuais para a liquidação e execução da fluid recovery: ""A simples identificação dos possíveis lesados não se mostra suficiente para a quantificação do dano individualmente suportado, elemento sem o qual não é admitida a propositura da execução, que exige liquidez e certeza, tampouco implica habilitação capaz de transformar a condenação pelos prejuízos globalmente causados em indenização pelos danos individualmente sofridos, haja vista a ausência de manifestação pessoal acerca da intenção de promover a execução do julgado" (REsp n. 1.610.932/RJ, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 27/4/2017, DJe de 22/6/2017.)

5 REsp n. 1.927.098/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 22/11/2022, DJe de 24/11/2022.

Idem.

7 O STJ já houvera afirmado que "A recuperação fluida (fluid recovery), prevista no art. 100 do CDC, constitui específica e acidental hipótese de execução coletiva de danos causados a interesses individuais homogêneos, instrumentalizada pela atribuição de legitimidade subsidiária aos substitutos processuais do art. 82 do CDC para perseguirem a indenização de prejuízos causados individualmente aos substituídos, com o objetivo de preservar a vontade da Lei e impedir o enriquecimento sem causa do fornecedor que atentou contra as normas jurídicas de caráter público, lesando os consumidores" (REsp n. 1.955.899/PR, rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 15/3/2022, DJe de 21/3/2022.)

8 Referido Projeto de Lei encontra-se atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, apensado ao PL 4441/2020.

9 Art. 2º, incisos V e VI, do PL 1641/2021.

10 PL 1641/2021 - Art. 45. Na ação civil pública para a tutela de direitos individuais homogêneos, a indenização determinada será revertida, quando esta for a solução mais adequada, às vítimas do evento. (...) §4º - Decorrido o prazo de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão proferida na ação coletiva para a execução individual sem que tenha havido habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, ou dos lucros ou vantagens obtidas ilicitamente com a prática do ilícito ou a ela conexas, poderão os legitimados à ação civil pública promover a liquidação e execução da indenização devida. Os valores resultantes da execução da indenização devida nos termos do §4º serão depositados em juízo e, após o transcurso do prazo prescricional das pretensões individuais, revertidos a um fundo ou atividade, na forma desta Lei.

§5º - Na definição da indenização prevista no § 4º, o juiz levará em consideração os valores já desembolsados pelo réu para pagamento das vítimas.

§6º - Os valores liquidados serão depositados em juízo ou revertidos a fundos reparatórios, devendo ser aplicados, ouvido o Ministério Público, na recuperação específica dos bens lesados ou em favor da comunidade afetada.

11 Conforme Nelson Rosenvald, "O reconhecimento de que o resgate de lucros ilícitos é a resposta apropriada para certos tipos de ilícitos merece suporte normativo. Trata-se da necessidade de solucionar uma questão comum a diversos sistemas jurídicos sobre como canalizar os ganhos indevidos, sem que se tenha que recorrer ao raciocínio distorcido da 'cama de Procustes' pela indevida plasticização do cálculo da compensação dos danos patrimoniais ou pela inadequada hipertrofia da avaliação do dano moral". A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021, p. 314-315.