Distanásia e responsabilidade civil médica*
quinta-feira, 23 de março de 2023
Atualizado às 07:44
Ao redor do mundo, os termos obstinação terapêutica, futilidade terapêutica e esforço terapêutico1 são, comumente, usados para nomear este o prolongamento artificial e indevido da vida biológica. Para fins didáticos, optou-se, neste artigo, por usar o termo distanásia posto que é o mais conhecido no Brasil.
O neologismo distanásia foi criado a partir da junção de dois radicais gregos: "dis", que denota o que é disfuncional e "thanatos", palavra grega que significa morte. Assim, a distanásia é o termo que nomeia a morte que ocorre de maneira anômala, o que, na contemporaneidade, é entendida como a morte postergada, em que suporte artificiais são usados "mesmo quando flagrantemente infrutíferos para o paciente, de maneira desproporcional, impingindo-lhe maior sofrimento ao lentificar, sem reverter, o processo de morrer já em curso."2
Em verdade, a distanásia é o oposto da eutanásia pois, enquanto nesta objetiva-se abreviar a vida biológica, naquela objetiva-se posterga-la. Assim, se na discussão da eutanásia a incurabilidade e a irreversibilidade são argumentos legítimos para que a morte seja antecipada, no que tange à distanásia, é exatamente o caráter incurável e irreversível da doença e/ou do estado clínico que deslegitima o prolongamento artificial da morte e do morrer.
A disfuncionalidade da distanásia existe exatamente porque há a compreensão de que quando não é mais possível a cura, ao paciente devem ser prestados todos os cuidados para que o desfecho de sua morte ocorra com o menor sofrimento possível para ele e seus familiares. E a distanásia não é um cuidado, ela é um não cuidado.
Os estudos comprovam que em termos de fim de vida a hora de parar de tratar é uma das mais tormentosas decisões para os profissionais de saúde3. Todavia, vem ganhando aceitação entre bioeticistas e paliativistas a ideia de que a futilidade terapêutica precisa ser combatida e que cabe ao médico a decisão de quando não investir mais no paciente4. A título de exemplo, o Código de Ética e Deontologia Médica da Organização Médica Colegial da Espanha estabelece que a prática do esforço terapêutico é infração ética, mas não há nenhuma lei punindo civil e criminalmente os médicos por essa prática5.
No Brasil, a palavra distanásia não é encontrada em nenhuma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), nem mesmo no Código de Ética Médica6, o que não significa que a prática seja permitida aos médicos brasileiros.
A resolução n. 2.156/2016 do CFM trata dos critérios de admissão do paciente em Unidade de Terapia Intensiva, evidenciando que pacientes "com doença em fase de terminalidade, ou moribundos, sem possibilidade de recuperação, não são apropriados para admissão em UTI, cabendo ao médico intensivista analisar o caso concreto e justificar em caráter excepcional."7
O artigo 35 do Código de Ética Médica veda ao médico "(...)exceder-se no número de visitas, consultas ou quaisquer outros procedimentos médicos", cabendo a interpretação a contrario sensu de que o médico que praticar o esforço terapêutico incorrerá em infração ética.
O artigo 41, muito utilizado para averiguação de condutas éticas nos cuidados com o paciente em fim de vida, dispõe:
Art. 41. Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal.
Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal.
Há nesse artigo a figura de vários institutos atribuídos à discussão do fim de vida: a) eutanásia: prática vedada pelo caput; b) ortotanásia: prática permitida na primeira parte do parágrafo único: c) distanásia: prática vedada na segunda parte do parágrafo único, quando o CFM afirma que o médico não deve "empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas".
Percebe-se assim que, apesar de o artigo 41 ser explícito quanto à proibição da eutanásia e deixar implícita a vedação da distanásia, uma interpretação conforme com a o artigo 35 permite a conclusão de que esta também é uma prática antiética.
Deve-se, neste contexto, perquirir a existência de fundamentos jurídicos para responsabilizar civilmente o médico por ter agido para prolongar a vida do paciente fora de possibilidades terapêuticas de cura. Para tanto, é preciso averiguar se: (i) se o direito à vida é também um direito/dever de ser mantido vivo a qualquer custo; (ii) a distanásia é um tratamento desumano ou degradante.
Quanto ao primeiro fundamento, Cynthia Pereira Araújo e Sandra Marques Magalhães8 afirmam que eventual reconhecimento de um direito à distanásia implicará no reconhecimento de que há direitos prejudiciais ao paciente e há salvaguardas à má prática médica, razão pela qual defendem a impossibilidade deste reconhecimento.
Quanto ao segundo, é necessário retomar o conceito de distanásia e seu propósito: Trata-se do uso desproporcional do suporte avançado causando sofrimento ao paciente com o objetivo de prolongar o processo de morrer. Ou seja, está-se diante de um tratamento desumano e degradante que distancia o paciente de seu direito à morte digna reconhecido por Flávia Piovesan9 como um direito constitucional, decorrente do "direito à liberdade, à autonomia, ao respeito e à vida, no marco de um Estado laico, no qual impera a razão pública e secular."
Historicamente, o ofensor é responsabilizado quando comprovado ato ilícito, dano, nexo de causalidade e culpa. Schreiber10 afirma que
como resultado direto da erosão dos filtros tradicionais da reparação - ou, em outras palavras, da relativa perda de importância da culpa e do nexo causal como óbices ao ressarcimento dos danos sofridos - um maior número de pretensões indenizatórias passou a ser acolhido pelo Poder Judiciário.
Diante desse cenário, a responsabilidade civil tem, cada vez mais, sido amparada no binômio dano/reparação. Nesse contexto, Rosenvald11 afirma que é preciso pensar que a responsabilização do ofensor tem a finalidade compensatória, mas também de prevenção de comportamentos. E, no caso em tela, resta claro a necessidade também prevenir o comportamento médico que - sob o pretexto de salvar a vida do paciente - acaba por prolongar danosamente o processo de morrer.
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*O presente texto trata-se de uma atualização do artigo DADALTO, Luciana. Investir ou desistir: análise da responsabilidade civil do médico na distanásia. In: Nelson Rosenvald; Marcelo Milagre. (Org.). Responsabilidade Civil: Novas Tendências. 1ed.Inddaiatuba: Foco, 2017, v. 1, p. 487-497.
1 Para aprofundamentos nessas nomenclaturas recomenda-se: AMERICAN THORACIC DOCUMENTS. An Official ATS/AACN/ACCP/ESICM/SCCM Policy Statement: Responding to Requests for Potentially Inappropriate Treatments in Intensive Care Units. In: American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine. 2015. Vol. 191, n. 11.
2 VILLAS-BÔAS, Maria Elisa. Eutanásia. In: GODINHO, Adriano Marteleto; LEITE, George Salomão; DADALTO, Luciana. Tratado Brasileiro sobre Direito Fundamental à Morte Digna. São Paulo: Almedina, 2017, p. 106.
3 WILKINSON, DJC; SAVULESCU, J. Knowing when to stop: futility in the intensive care unit. In: Current Opinion in Anaesthesiology. 2011 Apr; 24(2): 160-165.
4 AMERICAN THORACIC DOCUMENTS. An Official ATS/AACN/ACCP/ESICM/SCCM Policy Statement: Responding to Requests for Potentially Inappropriate Treatments in Intensive Care Units. In: American Journal of Respiratory and Critical Care Medicine Volume 191 Number 11 June 1 2015.
5 Disponível aqui, acesso em 13 mar. 2023.
6 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 1.931, de 17 de setembro de 2009 (Código de Ética Médica). Disponível aqui, 13 mar. 2023
7 CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução nº 2.156, de 17 de novembro de 2016. Estabelece os critérios de admissão e alta em unidade de terapia intensiva. Brasília, 2016. Disponível aqui. Acesso em: 13 mar. 2023.
8 ARAÚJO, Cynthia Pereira; MAGALHÃES, Sandra Marques. Obstinação terapêutica: um não direito. In: DADALTO, Luciana. Cuidados Paliativos: aspectos jurídicos. Indaiatuba: Foco, 2022, p.331-344.
9 PIOVESAN, Flávia. Proteção jurídica da pessoa humana e o direito à morte digna. In: DADALTO, Luciana; GODINHO, Adriano Marteleto; LEITE, George Salomão. Tratado Brasileiro sobre o Direito Fundamental à Morte Digna. São Paulo, Almedina, 2017, p. 77.
10 SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos filtros da reparação à diluição dos danos. 5 ed. São Paulo: Atlas, 2013.
11 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas, 2013, p.91.