Uma crítica ao PL 2856/2002: o tempo como bem jurídico passível de lesão
quinta-feira, 1 de dezembro de 2022
Atualizado às 07:48
Resenha: Este artigo apresenta críticas ao PL 2856/2022, do Senado Federal, que propõe incluir no CDC a regulamentação do "desvio produtivo do consumidor". O texto dialoga criticamente com a obra de Marcos Dessaune, autor da "teoria do desvio produtivo do consumidor", e aponta uma série de falhas do projeto, esperando assim contribuir para seu aperfeiçoamento.
Tive minha atenção recentemente chamada para um projeto de lei que está em trâmite no Congresso Nacional: o PL 2.856/2022, apresentado pelo Senador Fabiano Contarato. Segundo sua epígrafe, o projeto propõe alterar o Código de Defesa do Consumidor, "para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor". Li o projeto e o considerei muito ruim. Daí esse breve trabalho, destinado a apresentar minhas críticas ao texto projetado.1
Inicio descrevendo o projeto, que é composto de três artigos, sendo o primeiro para determinar seu objeto ("Esta Lei altera a Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), para dispor sobre o tempo como um bem jurídico, aperfeiçoar a reparação integral dos danos e prevenir o desvio produtivo do consumidor") e o terceiro para estabelecer que a lei, caso aprovada, entrará em vigor na data da publicação. A inovação normativa, portanto, viria do art. 2º do projeto, que propõe a inserção, no Código de Defesa do Consumidor, de uma nova Seção ("Da Responsabilidade pelo Desvio Produtivo do Consumidor"), formada pelos arts. 25-A até 25-F).
Pois já tenho, aqui, uma crítica, de ordem terminológica: fala o texto do projeto em "desvio produtivo do consumidor". E essa expressão é equivocada. Vale registrar, porém - e antes de tudo - que a expressão só aparece na epígrafe da Seção que se pretende acrescentar ao texto do Código de Defesa do Consumidor, não sendo empregada em nenhum dos artigos projetados.
A expressão "desvio produtivo" tem sido empregada para fazer alusão à lesão sofrida por alguém que tem de gastar parte de seu tempo para resolver (ou tentar resolver) um problema causado por outro sujeito de uma relação jurídica, especialmente em relações de consumo. O autor da expressão assim se refere ao fenômeno: "evento danoso que acarreta lesão ao tempo existencial e à vida digna da pessoa consumidora, que sofre necessariamente um dano extrapatrimonial de natureza existencial, que é indenizável in re ipsa".2 E sobre a expressão, diz Dessaune:
"Inicialmente, denominei o fenômeno socioeconômico em análise "desvio dos recursos produtivos do consumidor", por ser um nome mais completo e autoexplicativo. Porém, a necessidade de dispor de um nome menor e mais simples, tanto para o título do livro quanto para as inúmeras citações ao longo da obra, levou-me a simplificá-lo e a reduzi-lo para "desvio produtivo do consumidor". Note-se, contudo, que nessa nova expressão cunhada não empreguei o adjetivo "produtivo" para qualificar o desvio do consumidor como sendo um ato "producente" ou "improducente". Diversamente, utilizei tal adjetivo em sua acepção de "relativo à produção", indicando tão somente que, em situações de mau atendimento e de omissão, dificultação ou recusa de responsabilidade pelo fornecedor, o consumidor se vê forçado a desviar seus recursos "que produzem" (tempo e competências) de suas atividades geralmente existenciais, objetivando enfrentar os mais variados problemas de consumo".3
O fato de o criador da expressão ter de explicar que ao falar em "desvio produtivo" não emprega o adjetivo produtivo para qualificar o substantivo desvio já é suficiente para mostrar como a expressão é falha. E ainda afirma que o fez em razão de uma suposta "necessidade de dispor de um nome menor e mais simples". Com todas as vênias, mas ciência não se faz por simplificações, ainda que terminológicas. Vale, aqui, a mesma afirmação que - sobre a expressão "exceção de pré-executividade" - fez José Carlos Barbosa Moreira:
"Está claro que o ponto não interessará a quem não dê importância à terminologia - a quem suponha, digamos, que em geometria tanto faz chamar triângulo ou pentágono ao polígono de três lados, e que em anatomia dá na mesma atribuir ao fígado a denominação própria ou a de cérebro. Mas - digamos com franqueza - tampouco interessará muito o que esses pensem ou deixem de pensar".4
Mesmo depois da explicação dada pelo autor da expressão, porém, as coisas não melhoram. Diz Dessaune que usou o adjetivo produtivo no sentido de "relativo à produção", para indicar que, "em situações de mau atendimento e de omissão, dificultação ou recusa de responsabilidade pelo fornecedor, o consumidor se vê forçado a desviar seus recursos 'que produzem' (tempo e competências) de suas atividades geralmente existenciais, objetivando enfrentar os mais variados problemas de consumo".5 O que se percebe, então, é que o adjetivo produtivo estaria a qualificar o substantivo (omitido na expressão) recursos. Haveria, portanto, um desvio de recursos produtivos do consumidor, especialmente de seu tempo.
É preciso considerar, porém, que não só o tempo "produtivo" pode ser perdido quando se tenta resolver um problema como esses descritos pelo autor da expressão. Aliás, para a imensa maioria da população brasileira, o tempo a ser empregado na tentativa de resolução de problemas causados por fornecedores é, exatamente, um tempo que não seria dedicado a atividades produtivas, já que as pessoas em geral não podem simplesmente dedicar parte do tempo que dedicam a suas atividades profissionais para isso. É no tempo de folga, que poderia ser dedicado a atividades nada produtivas, que em geral se pode tentar resolver esses problemas.
- Clique aqui e confira a coluna na íntegra.
__________
1 Esse texto pretende ser um diálogo com as ideias sobre o tema de Marcos Dessaune, autor da assim chamada "teoria do desvio produtivo do consumidor" e integrante da comissão responsável pela redação do anteprojeto que resultou no projeto de lei aqui criticado. Ao aludido autor, de cujas ideias divirjo, fica aqui a manifestação de meu respeito, convencido de que é pelo confronto de ideias, especialmente das divergentes, que a Ciência Jurídica pode evoluir.
2 DESSAUNE, Marcos. Teoria Aprofundada do Desvio Produtivo do Consumidor: um panorama. Revista Direito em Movimento. Rio de Janeiro: EMERJ, vol. 17, n. 1, 2019, pág. 15-16.
3 Idem, pág. 23, nota de rodapé n. 19.
4 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Exceção de Pré-Executividade: uma denominação infeliz. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de Direito Processual - Sétima Série. São Paulo: Saraiva, 2001, pág. 121.
5 DESSAUNE, op. cit., pág. 23, nota de rodapé n. 19.