Qual a responsabilidade da clínica de reprodução humana assistida sobre o material disponibilizado? Reflexões a partir do documentário "Pai Nosso"
quinta-feira, 3 de novembro de 2022
Atualizado às 07:39
No começo de 2022, foi lançado o documentário "Pai Nosso?" no Netflix1, que trata da história do médico Donald Cline. Cline foi um especialista em reprodução humana assistida muito famoso nos anos de 1970. Ele realizou diversos procedimentos de RHA, sempre alegando que estava utilizando material genético de um doador ou do próprio casal, como de praxe nesta modalidade de prestação de serviços.
Entretanto, anos depois, por meio de teste de ancestralidade e utilização de um site, diversas pessoas começaram a encontrar meio-irmãos desconhecidos. Ao longo do documentário, descobre-se que espantosamente o médico utilizava o próprio material genético na inseminação das mulheres, sem qualquer consentimento ou informação prévia, tendo gerado uma "legião" de "meio-irmãos", muitos deles convivendo, estabelecendo laços de amizade ou vínculos de trabalho sem ter ideia da origem genética comum. O documentário relata de forma sensível as reações emocionais dos envolvidos, bem como a "saga" em busca de sua punição.
Devido às leis norte-americanas da época, o ato cometido pelo médico não se caracterizou como crime. Ele respondeu por obstrução de justiça, tendo permanecido um ano em liberdade condicional, além do pagamento da multa. Um ano após a multa, o médico entregou sua licença para o Conselho Médico e foi decidido que ele jamais poderia se inscrever novamente nem poderia ter sua licença restituída.
Em 2019, em Indiana, foi aprovada a lei que tornava crime a "fraude na fertilização". Assim, caso outro médico viesse a realizar a mesma conduta que Cline, responderia por ato ilícito no âmbito penal.
Apesar da grande discussão criminal da conduta do médico, outra esfera do direito também foi violada - o campo do Direito Civil - mais especificamente o direito contratual e a responsabilidade civil. Pensando no ordenamento jurídico brasileiro, a reprodução humana assistida é exteriorizada na forma de um contrato, que consiste em um negócio biojurídico2, porquanto reveste-se dos pressupostos de um acordo de vontades juridicamente tutelado.
Tal documento contém os termos estipulados pelas partes, segundo as diretrizes da recentíssima resolução 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina. Dessa forma, há uma responsabilidade consubstanciada na imprescindibilidade de cumprimento integral das cláusulas ali pactuadas, caso contrário é possível a discussão tal violação. Segundo Flaviana Rampazzo Soares3, a responsabilidade negocial exige um vínculo obrigacional prévio entre as partes e a ocorrência de um dano, devido ao descumprimento, total ou parcial, do negócio. Tal situação se amolda quando há um contrato de prestação de serviços relacionados à reprodução humana assistida entre a clínica e o paciente, e este acordo não é cumprido.
No Brasil, um caso de grande repercussão - amplamente divulgado pela mídia, à época - envolvendo um médico especialista em reprodução humana assistida, foi o de Roger Abdelmassih. Ele foi acusado de ter cometido diversos crimes de estupro e de manipulação genética irregular contra 74 pacientes, entre 1990 a 2008.
No âmbito da responsabilidade civil, o mencionado profissional da área da saúde foi condenado a pagar indenização no montante de R$500 mil reais a título de danos morais a um casal de irmãos gêmeos porque ele trocou o material genético durante o procedimento. Assim, foi concluído que o médico utilizou o material genético de um desconhecido sem o consentimento nem a autorização dos pais4. O termo de consentimento consiste em um documento importantíssimo para garantir que a informação foi efetivamente prestada ao paciente e que este aceitou se submeter ao procedimento ou ao tratamento. Em 2018, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu decisão em que condenou um hospital ao pagamento de R$200 mil a um paciente e seus pais, pela falta de informação sobre um procedimento cirúrgico.
No caso por último mencionado, o paciente tinha sofrido um traumatismo crânio-encefálico após um acidente e tinha tremores no braço direito. O médico sugeriu um procedimento cirúrgico para que o paciente retornasse com os seus movimentos. Entretanto, após a cirurgia, o paciente teve uma piora do seu quadro clínico, não conseguindo mais andar e tendo se tornado dependente de cuidados específicos. Segundo a perícia, embora não houvesse ocorrido erro médico, o resultado da cirurgia era um risco do paciente que não foi informado . No caso em tela, não havia Termo de Consentimento. Dessa forma, fica evidente a importância da presença desse documento.
Segundo a Resolução 2.320/2022 do Conselho Federal de Medicina, o termo de consentimento deve seguir a seguinte formalidade e conteúdo:
4.O consentimento livre e esclarecido é obrigatório para todos os pacientes submetidos às técnicas de reprodução assistida. Os aspectos médicos envolvendo a totalidade das circunstâncias da aplicação de uma técnica de RA devem ser detalhadamente expostos, bem como os resultados obtidos naquela unidade de tratamento com a técnica proposta. As informações devem também atingir dados de caráter biológico, jurídico e ético. O documento de consentimento livre e esclarecido deve ser elaborado em formulário específico e estará completo com a concordância, por escrito, obtida a partir de discussão entre as partes envolvidas nas técnicas de reprodução assistida.
Flaviana Rampazzo Soares, com muita propriedade, aponta no mesmo sentido:
O consentimento esclarecido tem, em seu núcleo, uma permissão que também é decisão proveniente de processo informativo e deliberativo delineado, percorrido e experimentado pelo paciente e, em regra, acompanhado pelo médico, em maior ou menor extensão, de acordo com as circunstâncias concretas.5
Retornando à análise sobre a troca de material genético, nos Estados Unidos, foi noticiado em 2019, que uma clínica foi processada por esse motivo. No caso em tela, um casal asiático teve dois filhos sem nenhum traço dos pais. Por meio de exame, foi comprovado que o material genético utilizado, tanto masculino como feminino, não era do casal, mas sim de outros pacientes . Apesar da manifestação de vontade do casal no sentido de permanecer com as crianças, tiveram que entregá-las aos pais biológicos. Na ação movida pelo casal contra a clínica, a alegação central foi imperícia médica, negligência, agressão, inflição intencional de sofrimento emocional e quebra de contrato6.
Ademais, é importante destacar que, no caso de procedimento de reprodução humana assistida, deve-se ressaltar dois momentos: a) Antes da realização do procedimento, a clínica é responsável por manusear e armazenar todo o material, devendo mantê-lo em condições adequadas; b ) No momento da realização do procedimento, o médico tem a responsabilidade de realizar o procedimento na forma acordada7, lembrando que não é possível acordar de forma contrária à lei nem à Resolução do Conselho Federal de Medicina.
Em caso de descumprimento de qualquer dessas etapas, é possível requerer a responsabilização civil dos envolvidos, como aconteceu no caso do médico Roger Abdelmassih.
O procedimento de reprodução humana assistida no Brasil tem sido cada vez mais popular, culminando até na "técnica" (não "assistida"- diga-se de passagem) de inseminação caseira, que não é recomendada pelas autoridades sanitárias, por razões evidentes e preocupantes. Já em relação aos procedimentos realizados em clínica, o SISEmbrio emitiu seu 13º Relatório do Sistema Nacional de produção de embriões, que constatou que 100380 embriões foram criopreservados em 2019, correspondendo a um aumento significativo do número de criopreservações.
Em decorrência desse grande número de embriões criopreservados (excedentes), é muito importante que haja a devida e efetiva fiscalização para que situações de troca ou substituição sem autorização não se concretizem. Mesmo havendo a possibilidade de resolver os casos na esfera da responsabilidade civil, além da esfera penal, a valoração pecuniária se torna a única sanção possível, apesar de incapaz de sanar os prejuízos no âmbito existencial dos envolvidos. Assim, impedir ou dificultar a ocorrência de tais casos, parece ser a melhor alternativa. De fato, a relação de confiança8 que se estabelece nos bionegócios reprodutivos reveste-se de caráter peculiar, porquanto embora se trate de uma tentativa (com o auxílio das novas tecnologias) de geração de filhos, por meio de serviço altamente especializado, o "pano de fundo" existente transcende questões patrimoniais. Ora, lida-se com sonhos compartilhados pelos contratantes e terceiros voltados à concretização de projeto parental e - para muitos - ao atingimento da felicidade e plenitude existencial. Neste sentido, Carla Froener e Marcos Catalan:
É inconteste que o avanço da biotecnologia despertou o seu interesse, em especial, por conta dos sonhos que involucra, sonhos que vão da aplicação de fármacos tonificantes ou de realização de cirurgias plásticas rejuvenescedoras at e a gestação de filhos que talvez - e apenas talvez - tragam alguma esperança a vidas que parecem despidas de sentido.9
Entretanto, para além dos motivos ensejadores da avença entre a clínica e o paciente, inconteste que o material genético criopreservado, bem como os embriões efetivamente gerados, merecem cuidado, zelo e comprometimento em relação ao seu armazenamento e utilização correta, tempestiva e responsável ética e juridicamente, a fim de que o sonho da geração de filhos por meio das biotecnologias não se transforme em pesadelo inábil a ser "apagado", ainda que com o auxílio da tutela ético-jurídica.
Referências
FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reproducao humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020.
MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016.
PAULICHI, Jaqueline da Silva; LOPES, Claudia Aparecida Costa. Responsabilidade civil oriunda da reprodução humana assistida heteróloga. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI -UFS: Biodireito. Florianópolis: CONPEDI, 2015.
SCHAEFER, Fernanda, Procedimentos médicos realizados à distância e o CDC. Curitiba: Juruá, 2006.
SOARES, Flaviana Rampazzo. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021.
SOARES, Flaviana Rampazzo. Revisando o dilema "responsabilidade contratual versus responsabilidade aquiliana". Revista IBERC, v. 4, n.2, p. IV-XIII, maio-ago/2021.
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1 Netflix. Acesso em 18.10.22.
2 MEIRELES, Rose Melo Vencelau. Negócios Biojurídicos. PONA, Éverton Willian (coord.); AMARAL, Ana Cláudia Corrêa Zuin Mattos do (coord.); MARTINS, Priscila Machado (coord.). Negócio jurídico e liberdades individuais - autonomia privada e situações jurídicas existenciais. Curitiba: Juruá, 2016.
3 SOARES, Flaviana Rampazzo. Revisando o dilema "responsabilidade contratual versus responsabilidade aquiliana". Revista IBERC, v. 4, n.2, p. IV-XIII, maio-ago/2021.
4 Disponível aqui. Acesso em 15.10.22.
5 RAMPAZZO SOARES, Flaviana. Consentimento do paciente no Direito Médico. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 246
6 Clínica dos EUA é processada por trocar embriões fertilizados in vitro. Acesso em 10.10.22
7 PAULICHI, Jaqueline da Silva; LOPES, Claudia Aparecida Costa. Responsabilidade civil oriunda da reprodução humana assistida heteróloga. XXIV Encontro Nacional do CONPEDI -UFS: Biodireito. Florianópolis: CONPEDI, 2015.
8 Neste sentido, ao mencionar os contratos de telemedicina, Fernanda Schaefer: "Destarte, o princípio da confiança e um dever necessário ser observado pelas partes contratantes, em especial por médicos e pesquisadores, face a grande vulnerabilidade técnica, cultural, física e emocional de seus pacientes ou pesquisados, pois e um dos parâmetros para a materialização do princípio da dignidade da pessoa humana em todas as suas vertentes, inclusive bioética." SCHAEFER, Fernanda, Procedimentos médicos realizados à distância e o CDC. Curitiba: Juruá, 2006.p. 144.
9 FROENER, Carla. CATALAN, Marcos. A reprodução humana assistida na sociedade de consumo. Indaiatuba, Foco: 2020, p.84.