Sigilo médico e violação positiva do contrato
terça-feira, 1 de novembro de 2022
Atualizado às 07:30
No âmbito da coercibilidade juspositiva do dever de boa-fé objetiva nos contratos médicos, é essencial o instituto da responsabilidade civil, em especial, a aplicação da teoria da violação dos deveres anexos, derivados do mister de lealdade, em todas as fases contratuais, também denominada de violação positiva do contrato.
Trata-se da teoria que originalmente surgiu no Direito alemão, tendo como principal expoente Karl Larenz, mas que chegou a ter desdobramentos de forma autônoma no Brasil e em Portugal. Pode ser atualmente apontada como mais um subsídio de grande valia para perseguir a observância do sigilo médico na prática clínico-hospitalar, baseando-se no dever de boa-fé objetiva, sob pena de responsabilidade civil fundamentada na violação desse princípio geral.
A responsabilidade civil contratual difere da responsabilidade extracontratual delitual. Nesta, o objeto do instituto é a reparação de um dano ilegalmente causado por uma pessoa, fora de uma relação contratual, em um cenário no qual, na maioria dos casos, a vítima e o autor são desconhecidos entre si até a ocasião do ato danoso, ao passo que a responsabilidade contratual advém das obrigações decorrentes dessa espécie de negócio jurídico, quando se configura, em tese, um inadimplemento.
Na evolução da responsabilidade contratual, merece destaque a teoria da violação dos deveres anexos ou da violação positiva do contrato, a qual defende que, mesmo ocorrendo o adimplemento de uma obrigação principal contratual, seja configure um inadimplemento, relativo ou absoluto, por terem sido transgredidos outros deveres pautados na lealdade.
Na violação positiva do contrato, tal como preceitua Menezes Cordeiro1:
A boa-fé é chamada a depor em dois níveis: no campo da determinação das prestações secundárias e da delimitação da própria prestação principal, ela age sobre as fontes, como instrumento de intepretação e de integração; no dos deveres acessórios, ela tem papel dominante na sua gênese [..].
Os deveres acessórios, reportados à boa-fé, traduzem, deste modo, uma síntese histórica, típica nos quadros da terceira sistemática e da evolução juscientífica subsequente, entre a consideração central do problema, ditada pelos estudos teoréticos da complexidade inter-obrigacional e o influxo periférico adveniente de problemas reais e concretos, veiculada pela prática da violação positiva do contrato, na parte relevante desta, para o efeito em causa.
Os deveres resultantes do princípio da boa-fé são chamados de deveres secundários, anexos, instrumentais2, ou, ainda, de deveres acessórios de lealdade. Fazem com que as partes sejam obrigadas a, na pendência contratual, não se comportar de modo que possam falsear o objetivo do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações. Da aplicação da boa-fé objetiva, surgem também deveres de atuação positiva, como o dever de sigilo em relação aos elementos obtidos por via de pendência contratual e cuja divulgação possa prejudicar a outra parte; impondo atuação com vista a preservar o objetivo e a economia contratuais.3
Pontes de Miranda4 explica que esses deveres são como deveres-meio, deveres de atitude ou conduta, que impõem a necessidade de haver diligência e compreensão recíproca, com o objetivo de que a prestação se cumpra, atinja o seu fim do melhor modo possível.
Martins-Costa5 classifica os deveres obrigacionais decorrentes da boa-fé da seguinte forma: a) deveres anexos ou instrumentais - servem para otimizar o adimplemento satisfatório, fim da relação obrigacional, não dizem respeito ao que prestar, mas como a prestação ocorre; b) deveres de proteção ou laterais - destinados a implementar uma ordem de proteção entre as partes, não se ocupam do prestar, mas do interesse de proteção; têm o fito de evitar a ocorrência de danos injustos para a contraparte da relação obrigacional.
Sabendo que a pauta da boa-fé faz referência ao resgate da confiança manifestada e posta em causa, bem como a consideração da reciprocidade entre as partes,6 apesar de serem nomeados como deveres acessórios, é possível afirmar que "os deveres derivados da boa-fé ordenam-se, assim, em graus de intensidade, dependendo da categoria dos atos jurídicos a que se ligam. Podem até constituir o próprio conteúdo dos deveres principais".7
A obediência à boa-fé deixa de configurar como mero dever reflexo, secundário, incidental, como se tivesse menos relevância que a obediência a um outro dever tido como 'principal'. A relevância desse raciocínio não se circunscreve na área teórica, volta-se para que na prática da relação obrigacional, as partes contratantes vislumbrem o dever de comportamento probo com a relevância que o princípio geral em questão demanda.
Apesar da importância da boa-fé, deve-se alertar que esse princípio não é a resposta de todos os problemas da responsabilidade civil,8 e nem se tem a pretensão de que ele seja suscitado como a dignidade da pessoa muitas vezes tem sido apontada, tanto na doutrina, quanto na jurisprudência, como se fosse uma salvação para todos os dilemas jurídicos.
O que se defende é o aproveitamento das funções principiológicas da forma mais completa e ponderada possível, utilizando a capacidade integradora, construtiva e interpretativa da boa-fé objetiva. É verdade que o princípio geral em enfoque apresenta sim a subjetividade das suas raízes morais, como já se apontou, mas deve-se atentar que, ao ser concretizado no âmbito de aplicação das relações clínicas, os parâmetros da sua observância vão se mostrando cada vez mais explícitos, palpáveis e objetivos.
Sob essa perspectiva, pode-se, com tranquilidade, asseverar que na relação clínica é possível que um médico utilize da melhor forma a técnica científica para a qual teve formação e domina, chegando a curar, diminuir os sintomas ou dar conforto paliativo ao paciente e, ainda assim, em relação à sua prestação obrigacional, seja configurado um inadimplemento, por violação positiva do contrato - em outros termos, por ter violado a boa-fé objetiva - na hipótese, por exemplo, de ter contrariado o segredo médico no curso do tratamento.
Na adoção da perspectiva de prestação obrigacional ampliada, conforme a teoria social dos contratos e a teoria da violação dos deveres anexos, pode-se frisar, pois, que o dever do médico não se limita à prática da obrigação tradicionalmente tida como principal. Sendo assim, tão ou mais importante, mostra-se a persecução da honestidade e de seus valores correlatos na prática científica da medicina. O adimplemento do contrato médico somente estará completamente concluído quando em todas as fases contratuais for observada a obediência à boa-fé objetiva.
Esclarece-se, pois, que ao lado da mora e da impossibilidade de cumprimento, a violação positiva do contrato corresponde a uma terceira espécie de descumprimento das obrigações, e abrange as hipóteses de mau cumprimento da prestação principal e da inobservância dos deveres acessórios, dentre estes, o dever de proteção, de informação e de lealdade.9
Como no âmbito da relação médico-paciente, a violação mais latente da proteção, do resguardo informacional e da lealdade se materializa no desrespeito ao sigilo médico; conclui-se que a boa-fé objetiva figura como mais um argumento de suma importância para se proteger juridicamente este que é um dos mais antigos preceitos da Ética Médica.
Como contraponto, no rol de possíveis justificativas para o afastamento do sigilo médico, pode-se apontar a teoria do incumprimento eficiente para, em sede de análise econômica do Direito, verificar a plausibilidade da sua aplicação às questões que dizem respeito à proteção dos dados clínicos.
O incumprimento eficiente, tal como explicita o Professor Fernando Araújo,10 resulta da junção de duas ideias: o contrato é mero instrumento de afetação de recursos econômicos, por meio da interdependência e das trocas. Para que se alcance a eficiência social, faz-se necessário que os ganhos de uns não impliquem em perdas dos demais, levando em conta a eficiência dos atos cujos benefícios ultrapassem, ainda que apenas marginalmente, a indenização e que evite o averbamento de perdas por qualquer das partes.
O incumprimento é tido como eficiente nas hipóteses em que o inadimplemento gera mais ganhos que os prejuízos do credor frustrado. Há o aumento de bem-estar para uma das partes, sem que enseje perda de bem-estar para outrem. Em muitos casos, o incumprimento eficiente, na verdade, deveria ser designado como ajustamento eficiente, pois consiste no reconhecimento de alternativas mais vantajosas à continuação do contrato.11
Salienta-se que eficiente "é aquilo que maximiza a finalidade das partes, é aquilo que faz justiça à intenção delas".12 Com isso, é possível vislumbrar alguns casos excepcionalíssimos, em que seria viável suscitar a teoria do incumprimento eficiente para justificar uma violação do sigilo médico, por exemplo: os casos em que há indícios relevantes de que a recusa aos tratamentos evidencia um quadro depressivo. Sendo assim, a participação da família seria de grande importância, para contribuir com a deliberação sobre qual é a melhor conduta clínica a ser utilizada.
Em razão das dificuldades existentes na prática clínica, o paciente pode esquivar do paternalismo médico, há tanto tempo sedimentado no senso comum; bem como devido aos riscos que essa teoria apresenta à construção da confiança e a sedimentação da boa-fé objetiva podendo, inclusive, fragilizar a teoria da violação positiva do contrato. Acredita-se que a adoção da teoria do incumprimento suficiente à relação médico-paciente apresenta mais probabilidade de agravar a vulnerabilidade do enfermo, que potenciais benefícios.
Julga-se, pois, ser preferível adotar construções teóricas que exaltem e consubstanciem o respeito à confiança, como princípio ético e jurídico. No exemplo suscitado acima, o problema poderia ser resolvido com base na aferição da capacidade de consentir, para legitimar ou não a vontade do enfermo, sem necessitar recorrer à teoria do incumprimento suficiente.
Nessa acepção, a coercibilidade do Direito serve para suscitar, em âmbito de responsabilidade civil, um dever de reparação, pautado na violação positiva dos contratos, embasado no entendimento de que o desrespeito ao sigilo médico caracteriza a violação da confiança e, por consequência, resulta na desobediência do princípio geral que preconiza a lealdade no âmbito contratual, a boa-fé objetiva.
Por fim, no que tange a extensão temporal do dever de sigilo médico, com base na pós-eficácia de alguns direitos da personalidade, especialmente dos que se ligam à privacidade,13 é plenamente possível afirmar que após a morte do paciente remanesce a incidência da boa-fé objetiva a ponto de haver a sobrevida do dever de sigilo profissional no âmbito clínico e hospitalar, sob pena de configurar a violação positiva do contrato.
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1 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil. Vol I., Coimbra: Almedina, 1984, p. 602.
2 SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro, FGV, 2008, p. 37.
3 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil. Vol I., Coimbra: Almedina, 1984, p. 606.
4 MIRANDA, Pontes. Tratado de Direito Privado. Tomo 26. Rio de Janeiro: Editor Borsói, 1959, p. 282.
5 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no Direito Privado: critérios para a sua aplicação. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. Ebook, p. 155-158.
6 LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1997, p. 410-411.
7 SILVA, Clóvis V. do Couto e. A obrigação como processo. Rio de Janeiro, FGV, 2008, p. 34.
8 TUNC, André. La responsabilité civile. Paris: Economica, 1989, p. 160.
9 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no Direito Civil. Vol II., Coimbra: Almedina, 1984, p. 1291.
10 ARAÚJO, Fernando. Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 735.
11 ARAÚJO, Fernando. Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 735-737.
12 ARAÚJO, Fernando. Teoria Económica do Contrato. Coimbra: Almedina, 2007, p. 241, grifos do autor.
13 MENEZES, Renata Oliveira Almeida. Direito ao sigilo médico após a morte do paciente. Curitiba: Juruá, 2022.