Responsabilidade civil contratual: um brevíssimo ensaio à busca de um modelo
quinta-feira, 20 de outubro de 2022
Atualizado em 24 de outubro de 2022 14:42
"Os caminhos não estão feitos. É andando que cada um de nós faz
o seu próprio caminho. A estrada não está preparada para nos
receber. É preciso que sejam nossos pés a marcar o destino;
destino ou objetivo, ou que quer que seja"
José Saramago
Como anuncia o subtítulo do presente, o brevíssimo ensaio que ora vem a público é fruto de reflexões que tive oportunidade de realizar no IV Congresso Nacional de Responsabilidade Civil do IBERC, em Belém/PA, ocorrido no mês setembro de 2022. De início, registro especial agradecimento à organização do evento, o que faço nas pessoas dos Professores Pastora Leal, Alexandre Pereira Bonna, Nelson Rosenvald e Carlos Edison Monteiro do Rêgo Filho. Do mesmo modo, consigno meus cumprimentos aos ilustres colegas de Mesa, Professores Thais Pascolalotto, Marco Fábio Morsello e Bruno Brasil.
A indagação primeira que suscita a reflexão que se compartilha pode ser assim sintetizada: em tema de responsabilidade civil contratual, havendo inadimplemento ilícito, o que se deve indenizar? Mostra-se hoje ainda suficiente a solução apresentada pelo art. 389 do Código Civil para atender às exigências do Princípio da reparação integral, insculpido, dentre outras passagens, no art. 944, caput, do Código Civil do Brasil? A meu ver, a resposta for negativa: é realmente preciso ir além...
Se o art. 389 do Código Civil estabelece que "não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais litros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado", o que se deve, então, indenizar? Qual é o conteúdo da categoria jurídica perdas e danos nas hipóteses de resolução do contrato por inadimplemento culposo (ilícito)? Indeniza-se "apenas o interesse negativo? Ou também o interesse positivo, isto é, aquele que teria se o contrato tivesse sido cumprido?"1 São questões que brotam inexoráveis da própria provocação inicial.
Em certa medida, o legislador civil oferece uma solução para o problema da recomposição contratual ao disciplinar a cláusula penal compensatória, o que faz, entre outras passagens, no art. 408 do Código Civil, segundo o qual "incorre de pleno direito o devedor na cláusula penal, desde que, culposamente, deixe de cumprir a obrigação ou se constitua em mora".
Ocorre que, o próprio legislador, logo a seguir, em duas passagens, excepciona a inevitabilidade desse regime de perdas e danos contratuais. Em síntese, afirma o que é de clareza meridiana: os danos indenizáveis decorrentes do descumprimento do contrato podem ser superior ao montante da cláusula penal compensatória. podem ser superiores aos fixados a esse título. Primeiro, no art. 410 do Código Civil, estabelece que "quando se estipular a cláusula penal para o caso de total inadimplemento da obrigação, esta converter-se-á em alternativa a benefício do credor. Caso o valor do dano seja superior ao valor da cláusula penal, o inocente pode pedir indenização suplementar". Segundo, no art. 416 do mesmo diploma, afirma, no seu parágrafo único, que "ainda que o prejuízo exceda ao previsto na cláusula penal, não pode o credor exigir indenização suplementar se assim não foi convencionado. Se o tiver sido, a pena vale como mínimo da indenização, competindo ao credor provar o prejuízo excedente".
Note, portanto, que deflui do próprio regime legislativo a possibilidade de admitir-se que, diante do ilícito inadimplemento do programa contratual, outros interesses são passíveis de atenção, para realizar-se o Princípio da reparação integral.2
Nesse cenário, surge, então, a discussão da indenizabilidade dos interesses contratual positivo e negativo.3 A eles. O interesse contratual negativo (também referido como interesse da confiança), conquanto tenha gênese na investigação dos danos na fase pré-contratual, diz respeito ao dever de repor-se o contratante inocente à situação em que se encontraria caso não tivesse celebrado o contrato, isto é, como se o inocente jamais tivesse "entrado em negociações que se viram injustamente frustradas."4 De outro lado, o interesse contratual positivo (também denominado interesse de cumprimento) diz respeito àquela situação que resultaria para o credor inocente se tivesse havido o perfeito cumprimento do contrato: presta-se, portanto, resumidamente, a colocar o contratante na exata situação econômica em que estaria caso o contrato fosse sido fielmente cumprido, em perfeita atenção ao que impõe o Princípio pacta sunt servanda.
Dito de outra forma, a indenização do interesse contratual negativo (interesse de confiança ou dano negativo) assenta suas raízes na doutrina da responsabilidade civil pré-contratual e visa levar o inocente à situação em que ele estaria se jamais tivesse celebrado o contrato (ou se não tivesse iniciado negociações que se frustraram injustamente, seja pelo recesso injustificado; seja pela revelação de segredos/informações; seja pela omissão de informações relevantes para formar o contrato etc.), como exemplifica Gisela Sampaio da Cruz Guedes5, com respaldo nas lições de Judith Martins Costa.6
De outro lado, de acordo com a doutrina do interesse contratual positivo (também referido como interesse no cumprimento ou por dano positivo), deve se indenizar tendo em perspectiva a necessidade de colocar-se o inocente na mesma situação patrimonial em que ele estaria se o contrato tivesse sido cumprido corretamente. Disso decorre que se devem indenizar todos os prejuízos que brotam do não-cumprimento definitivo (ou do cumprimento tardio/defeituoso). A indenização do interesse contratual positivo, portanto, abrange o equivalente à prestação (dano emergente e lucros cessantes) somado à reparação de todos os demais prejuízos que diretamente derivam da própria inexecução do contrato: coloca-se o inocente, como referi, na mesma situação em que ele estaria se a obrigação tivesse sido perfeitamente cumprida, o que se mostra de todo razoável.
Pela tutela do interesse contratual positivo, é fácil ao leitor perceber a insuficiência de uma visão extremamente restritiva do art. 403 do Código Civil, segundo o qual "ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direto e imediato (...)". A partir da visão ampliativa da indenizabilidade de danos contratuais, por exemplo, seria possível perquirir o cabimento da teoria da responsabilidade civil (contratual) pela perda de chance no cenário celebração de um contrato com determinada pessoa, que, frustrado, fez impossível a celebração de outro contrato com o inocente, configurando-se para o inocente uma situação jurídica que lhe traria a reais chance de obter-se maiores vantagens...7
No Brasil, há salutar tendência de alargamento dos danos contratuais indenizáveis. Expandir o âmbito de danos indenizáveis por rompimento da relação contratual para melhor atender às exigências do Princípio da reparação integral é uma perspectiva que se afina às tendências contemporâneas do Direito Contratual, da Responsabilidade Civil e da correta interpretação das exigências do Princípio da reparação integral.
Enfim, o modelo dogmático que se assenta sobre as bases tradicionais do art. 389 do Código Civil não mais atende à complexidade das relações jurídicas contemporâneas, sequer quanto à função compensatória da responsabilidade civil contratual. Seguindo a mesma trilha, por exemplo, não seria demais indagar a possibilidade de reconhecer-se um plus ao valor indenitário decorrente também da ilícita violação às expectativas contratuais legítimas despertadas e da grave frustração da confiança depositada pelo inocente, em interpretação sistêmica do parágrafo único do art. 944 do Código Civil, a contrário sensu. Os conceitos, portanto, estão em construção...
O Superior Tribunal de Justiça acolhe a possibilidade de abarcar-se com maior envergadura a indenização de interesses contratuais negativos e positivos, como se colhe da
Leitura dos voto-vista lançado pela Min. Nancy Andrighi nos autos de Recurso Especial 1.641.868/SP.8
Novos tempos. Novas realidades. Novos danos indenizáveis... A insuficiência dos modelos tradicionais para atender às exigências da Responsabilidade Civil por inadimplemento ilícito do contrato exige um olhar rente à vida e ao Direito no século XXI.
As novas luzes que incidem sobre os danos contratuais permitem indagar: devem ser indenizados os lucros ilícitos (ilegítimos) que decorrem da violação de um contrato?9 A resposta é positiva. Nesse sentido é o recente entendimento do Tribunal de Contas da União: na responsabilidade civil contratual, é possível indenizar os danos decorrentes de comportamentos ilícitos parasitários fruto da conduta ilícita da parte (disgorgment).10 Em 10 de agosto de 2022, a Corte de Contas acolheu com acerto a tese de que "a restituição de lucros ilegítimos está fundamentada no princípio da vedação do enriquecimento sem causa, assim como no princípio de que ninguém pode se beneficiar da própria torpeza e ainda nos efeitos retroativos da declaração de nulidade, no sentido de que se deve buscar a restauração do status quo ante ."
Enfim, o ensaio que ora se encerra traz um convite à comunidade jurídica, que deve investigar quais são os critérios e os limites a serem respeitados para atender-se ao Princípio da reparação integral nas hipóteses de ilícito descumprimento do contrato. Não se pode descartar a indenizabilidade de interesses contratuais positivos. Não se pode afastar do inocente o direito à indenização dos lucros decorrentes do ilícito perpetrado. Se o caminho não está ainda feito e pronto para nos receber, como nos encoraja Saramago, que sejamos nós a andar, e que assim façamos o próprio caminho. "Conceitos justos, uma grande experiência e, sobretudo, muita boa vontade": são as ferramentas, com as quais nos encoraja Norberto Bobbio11, para que possamos chegar a bom porto.
1 COSTA, Judith Martins. Comentários ao novo Código Civil, vol. V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009 , p. 489, comentários ao art. 402 do Código Civil
2 Sobre o Princípio da reparação integral, ver: SANSEVERINO, Paulo de Tarso Vieira. Princípio da reparação integral. Indenização no Código Civil. São Paulo: Saraiva, 2012. GUERRA, Alexandre. Reparação integral vs. indenização tarifada: o que a lei 14.128/21 espera de nós? Disponível aqui.
3 Sobre o tema, ver: PINTO, Paulo Mota. Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo. Coimbra: Coimbra Editora. vols. 1 e 11. 2008. STEINER, Renata C. Reparação de danos: interesse positivo e interesse negativo. São Paulo: Quartier Latin, 2018. GUIMARÃES, Paulo Jorge Scartezzini. Responsabilidade civil e interesse contratual positivo e negativo (em caso de descumprimento contratual). In. GUERRA, Alexandre D. de Mello; BENACCHIO, Marcelo (coords.). Responsabilidade civil. São Paulo: Escola Paulista da
Magistratura. Disponível aqui;
GUERRA, Alexandre D. de Mello. Interesse contratual positivo e negativo: reflexões sobre o inadimplemento do contrato e indenização do interesse contratual positivo. Revista IBERC, Minas Gerais, v.2, n.2,mar.jun./2019,p. 1-23. Disponível aqui.
SILVA, Rodrigo da Guia. Interesse contratual positivo e interesse contratual negativo: influxos da distinção no âmbito da resolução do contrato por inadimplemento. Revista IBERC, Minas Gerais, v. 3, n. I ,p. I -37 ,jan./abr. 2020. Disponível aqui.
4 COSTA, Judith Martins. Comentários ao novo Código Civil, cit., p. 482.
5 GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Lucros cessantes: do bom senso ao postulado normativo da razoabilidade. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 125 ss
6 Nas palavras de Judith Martins-Costa, para delimitar as perdas e danos na resolução, encara-se o prejuízo que o lesado deixaria de ter se não tivesse confiado que o contrato teria regular eficácia. O que deixou de ganhar também é indenizado, pois o que se indeniza é o dano que resultou de se ter tornado sem efeito o que se cria que teria efeito. Logo, o que se indeniza é interesse negativo, interesse da confiança. Porém, não nos esqueçamos que o art. 402 introduz o postulado normativo da razoabilidade que contém uma das facetas da equidade. Ao aludir ao que o lesado "razoavelmente deixou de lucrar" seria équo considerar - tal qual ocorre no dano pré-contratual - as expectativas ilegitimamente frustradas, tais quais os decorrentes da perda de uma chance, pois essa poderá consistir em uma vantagem que o lesado teria obtido se não tivesse confiado que o contrato projetasse regularmente a sua eficácia" (MARTINS-COSTA, Judith. Ob. cit., p. 491).
7 Vale acentuar que o Sistema Commom Law norte-americano encontra aberturas à indenização dos danos suportados pelo inocente, como se pode verificar em FARNSWORTH, E. Allan. Legal Remedies for Breach of Contract. Columbia Law Review, vol. 70, no. 7, 1970, pp. 1145-216. JSTOR. Disponível aqui. Accessed 25 Aug. 2022; PIZZOL, Ricardo Dal. Exceção de contrato não cumprido. Indaiatuba: Foco, 2022.
8 Disponível aqui.
9 Cfr. ROSENVALD, Nelson; KUPERMAN, Bemard Korman. Restituição de ganhos ilícitos: há espaço no Brasil para o disgorgement? Revista Fórum de Direito Civil - RFDC, Belo Horizonte, ano 6, n. 14, p. 11-31, jan./abr. 2017. Disponível aqui.
ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgment e a indenização restituitória. JusPodium, 2019.
10 CAVALLARI, Odilon. TCU decide sobre a aplicação do instituto do disgorgement.
11 BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 232.