Danos sociais: caracterização, autonomia e legitimidade do MP para postular a reparação
quinta-feira, 6 de outubro de 2022
Atualizado às 09:16
O presente ensaio é uma conversão da palestra apresentada no IV Congresso Nacional do IBERC, promovido pelo Instituto Brasileiro de Estudos da Responsabilidade Civil - IBERC em parceria com a Escola Superior de Advocacia da OAB/Pará. O tema abordado são os danos sociais, razão pela qual se faz necessária a sua delimitação conceitual e a sua diferenciação quanto aos danos correlatos.
Centralidade do dano
Partimos do pressuposto de que o dano é o elemento desencadeador dos deveres de responsabilidade civil: prevenção/precaução e reparação. Isso quer dizer que não se pode cogitar de responsabilidade civil sem ao menos uma probabilidade de dano. Isso se deve ao fato de que o dano é fenomênico, pois acontece no mundo dos fatos, na relação tempo/espaço. Entre os pressupostos da responsabilidade civil, o que atinge os nossos sentidos e afeta diretamente a vida das pessoas é o fenômeno danoso.
A doutrina especializada traz diversos conceitos1, mas o certo mesmo é que o dano algo de ruim que acontece na vida da vítima. O dano é algo ruim e injusto porque a vítima não tem obrigação de tolerar. É claro que muitas coisas ruins acontecem na vida, mas não são danos. Por exemplo, pagar imposto é um sério prejuízo para o contribuinte, mas se trata de uma obrigação legal que ele tem o dever de suportar. Além disso, o dano tem que ser causado por outra pessoa porque se for causado pela própria vítima pode ser um prejuízo, mas não é dano2.
Então, o dano pode ser entendido como prejuízo injusto e heterônomo porque é causado por outra pessoa e porque a vítima não está obrigada a suportá-lo, nem por lei nem por contrato.
Principais classificações: Dano ordinário e extraordinário, dano individual e dano coletivo/difuso
O dano comporta várias classificações: dano patrimonial e extrapatrimonial, dano ao patrimônio e dano à pessoa, dano ordinário e extraordinário, dano individual e coletivo/difuso. Além disso, dependendo da abordagem, o dano moral comporta uma série de especificações: dano psíquico, dano físico, dano estético, dano existencial. Entre essas classificações, há duas que interessam diretamente à delimitação do nosso estudo: dano ordinário e extraordinário, dano individual e dano coletivo/difuso3.
A classificação dano ordinário e extraordinário nos faz pensar que existem danos comuns, que acontecem ordinariamente, o que é normal na vida em sociedade; e danos que extrapolam este senso de normalidade, aqueles que não deveriam acontecer nem em nossos piores pesadelos. Além disso, se pensarmos nas consequências do evento danoso, percebemos que alguns danos são individuais porque atingem determinada pessoa ou grupo de pessoas, ao passo que outros são coletivos porque refletem sobre a coletividade.
A combinação entre esses fatores - natureza extraordinária e consequências sobre a coletividade - é um problema que tem nos ocupado nos últimos tempos, diante das grandes tragédias que ocorreram em nosso país. Longe de se apontar para este ou aquele culpado, para esta ou aquela empresa, o que nos ocupa é a busca de soluções jurídicas para enfrentar esse tipo de situação. A observação desses fenômenos revela a existência de algumas características que são próprias do dano extraordinário ou dano enorme. Um desses aspectos é a multiplicidade ou indeterminação de suas causas. Outro aspecto é a magnitude de suas consequências. O terceiro é que provocam intensa comoção social4.
Os danos extraordinários são danos impregnados de socialidade, tanto em suas causas, como em suas consequências e em sua reflexividade, pois são relacionados com atividades necessárias ao nosso modo de vida em sociedade e suas consequências alcançam, não somente as vítimas diretas, mas também a coletividade como um todo, provocando intensa comoção social.
Aqui sobressai em importância a distinção entre danos individuais e danos coletivos. Os primeiros atingem uma pessoa ou grupo de pessoas determinadas, enquanto os segundos atingem uma coletividade ou uma categoria de pessoas indeterminadas ou indetermináveis, por exemplo, os moradores da cidade de Mariana ou os consumidores de determinado produto.
Danos sociais: características
Acontece que os danos sociais vão um pouco além desta dicotomia entre danos individuais e coletivos. Embora sejam modalidade de dano coletivo em sentido amplo, não se confundem com o denominado "dano moral coletivo", que se caracteriza pela "Ofensa a interesses extrapatrimoniais compartilhados por determinada coletividade, que pode ser uma comunidade, grupo, categoria ou classe de pessoas titular de interesses protegidos pela ordem jurídica"5. Neste passo, é de grande utilidade a conceituação fornecida por Antônio Junqueira de Azevedo acerca dos danos sociais: além dos efeitos produzidos sobre as vítimas diretas e individuais, tais danos produzem um rebaixamento na qualidade de vida da sociedade como um todo, envolvendo aspectos patrimoniais e extrapatrimoniais de maneira indistinguível6.
Por esta razão, podemos dizer que o dano social desafia a dicotomia entre dano moral e patrimonial, porque se trata de um rebaixamento da qualidade de vida de maneira global e não especificável.
Pois bem, o dano enorme ou extraordinário se identifica de imediato pela amplitude de suas consequências, podendo-se citar como exemplos o incêndio na Boate Kiss e o rompimento das barragens de minério em Mariana e Brumadinho. Percebe-se também que esses episódios estão relacionados com atividades inerentes ao modo de vida nas sociedades contemporâneas, de sorte que ninguém em sã consciência postularia o fechamento das mineradoras no Brasil ou das casas noturnas.
Os danos sociais também são dotados de socialidade em suas consequências, as quais atingem a coletividade como um todo, produzindo um rebaixamento na qualidade de vida da população. É como se fosse um dano existencial de natureza coletiva. Por exemplo, uma companhia de saneamento fornece água de péssima qualidade para a população, obrigando-a a uma vida de sofrimento e sacrifícios. Trata-se de uma situação em que as pessoas poderiam ter uma qualidade de vida melhor, se não fosse a atividade danosa desenvolvida por determinada empresa.
Então, para identificar a natureza social do dano devemos entender que: a) não é normal existir aquele tipo de situação; b) há um rebaixamento da qualidade de vida para todas as pessoas, de maneira indistinguível. Estes aspectos estão presentes no rompimento das barragens de minério de Mariana e Brumadinho. Trata-se de situações danosas anormais, que poderiam ser evitadas e cujas consequências ultrapassam o campo das vítimas individuais, alcançando a sociedade como um todo e diminuindo a qualidade de vida das pessoas.
Especificamente nestes casos, são danos impregnados de socialidade em suas causas, uma vez relacionados a atividades necessárias ao nosso modo de vida; e socialidade em suas consequências porque produzem rebaixamento na qualidade de vida da coletividade.
Autonomia dos danos sociais
Devemos ter clareza de que os danos sociais são indenizáveis por si mesmos e não como acréscimo ou extensão aos danos individuais. Ademais, esses danos não se confundem com os danos morais coletivos, cujas consequências atingem uma coletividade de maneira difusa, mas delimitada, ao passo que os danos sociais atingem a sociedade como um todo.
Diante de danos catastróficos, como são os casos de Mariana e Brumadinho, há danos para as pessoas diretamente e indiretamente atingidas e há danos para a sociedade como um todo, mediante rebaixamento na qualidade de vida da coletividade. Então, cabe indenização em favor das pessoas direta e indiretamente atingidas e cabe indenização em favor da coletividade, que é vítima desse dano social, pelo rebaixamento da qualidade de vida das pessoas em geral.
Em tema de direito do consumidor, os danos sociais têm aplicação aos casos de disponibilização de serviços de má qualidade ao público, de maneira contumaz e de forma generalizada. Por exemplo, nos casos de serviços bancários que sujeitam as pessoas em geral a golpes, mesmo que aplicados por terceiros; nos casos de serviços de internet e de telefonia com falhas e intermitências.
Nesses casos, os prejuízos individuais são pequenos, muitas vezes relegados à categoria do mero dissabor. Porém, considerados em seu conjunto, trata-se de prática danosa que atinge não somente os usuários diretos dos serviços, mas a qualidade de vida da sociedade como um todo. Nesses casos, é perfeitamente cabível a propositura de ação de indenização por dano social.
O problema da legitimidade ativa
Como a vítima do dano social é a coletividade, cabe ao Ministério Público promover a ação indenizatória com vista à reparação (LACP, art. 5º, I). Todavia, há pelos menos dois aspectos a serem explorados. O primeiro é que a Lei da Ação Civil Pública limita as hipóteses de cabimento da ação civil pública à tutela dos bens elencados no art. 1º7. Uma interpretação superficial levaria à conclusão de que somente caberia ação civil pública nas hipóteses elencadas na lei. No entanto, essa disposição contrasta com o direito fundamental de acesso à justiça (CF, art. 5º, XXXV). Logo, a melhor interpretação é aquela que admite a legitimidade do Ministério Público para promover ação civil pública com vista à reparação dos danos causados à coletividade: danos sociais.
A outra questão é saber se as associações podem promover a mesma ação indenizatória em prol da coletividade, visto que devem estar vinculadas aos seus objetivos sociais, ou seja, à defesa dos direitos e interesses de determinadas categorias de pessoas (consumidores, funcionários públicos, advogados, médicos etc.) ou de bens jurídicos (meio ambiente, o consumo, o patrimônio histórico, artístico e cultural etc.). Neste ponto, faz-se importante a distinção entre dano moral coletivo e dano social, uma vez que as associações são legitimadas a promover a defesa de interesses coletivos delimitados a determinadas categorias de pessoas ou de bens jurídicos relacionados ao seu objeto social, mas não existe associação destinada à defesa dos interesses da sociedade genericamente8. Por isso, é correto dizer que a legitimidade das associações é mais restrita que a do Ministério Público, devendo se ater à abrangência de seu objeto social.
De qualquer modo, é possível instituir uma associação com a finalidade específica de promover a reparação de danos ocorridos em determinada localidade, desde que relacionados a alguma das hipóteses descritas na lei: meio ambiente, consumidor, ordem econômica etc. (LACP, art. 5º, V, b). Neste caso, o Ministério Público atuará como litisconsorte ativo ou como custos legis, bem como poderá assumir a autoria em caso de abandono da ação (LACP, art. 5º, §§ 1º e 3º).
Ainda no tocante à legitimidade ativa, cabe lembrar que o direito brasileiro não admite a conversão da ação indenizatória individual em ação coletiva, como ocorre com as class actions do direito norte-americano, uma vez que o art. 333 do Código de Processo Civil de 2015, que previa essa possibilidade, sofreu veto presidencial. Desse modo, prevalece o entendimento doutrinário fixado no Enunciado 456 da VI Jornada de Direito Civil do CJF9.
Em sede jurisprudencial, merece menção o julgado do Superior Tribunal de Justiça, em regime de controvérsia repetitiva, que, embora reconhecendo a existência de dano social, afastou a possibilidade de fixação da reparação pelo juiz, ex-offício, em ação movida pela vítima individual da ação lesiva10.
Assim, diante de fato que caracterize dano social, além dos danos individuais causados às pessoas, cabe ao Ministério Público promover ação civil pública indenizatória. É importante destacar que: [1] não cabe à vítima individual promover ação de reparação de dano social; [2] não é possível ao juiz transformar ação individual em ação coletiva; [3] nem pode o juiz, diante de uma ação individual, determinar de ofício o pagamento de indenização por dano social.
Síntese conclusiva
Em síntese, os danos sociais são modalidade de dano coletivo, que não se confundem com os danos individuais nem com os danos morais coletivos. Sua principal característica é o rebaixamento da qualidade de vida da sociedade como um todo, de maneira indistinguível, ultrapassando a dicotomia dano patrimonial e extrapatrimonial. Esses danos são indenizáveis por si mesmos, cabendo ao Ministério Público a legitimidade para promover ação indenizatória em prol da sociedade.
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1 GOMES, Orlando. Obrigações. 6. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1981. v. II. p. 328; ALVIM, Agostinho. Da inexecução das obrigações. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 187-188; CALVO COSTA, Carlos Alberto. Daño resarcible. Buenos Aires: Hamurabi, 2005. p. 89. p. 61-97.
2 No sentido de que o dano decorre da conduta ou atividade alheia, confiram-se: DIAS, José de Aguiar. Da responsabilidade civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1950. v. II, p. 313; BUERES, Alberto J. Derecho de daños. Buenos Aires: Ed. Hammurabi, 2001. p. 483; ZANNONI, ZANNONI, Eduardo A. El daño en la responsabilidad civil. Buenos Aires: Astrea, 1982, p. 1; VARELA, João de Matos Antunes. Das obrigações em geral, v. I, p. 597; TUHR, Andreas von. Tratado de las obligaciones. Tradução do alemão de W. Roces. Direção de José Luis Monereo Pérez. Granada, Espanha: Editorial Comares, 2007, p. 47.
3 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003. v. 1, p. 555-586.
4 SANTOS, Romualdo Baptista. Responsabilidade civil por dano enorme. Curitiba: Juruá; Porto: Juruá, 2018. p. 201-214.
5 MEDEIROS NETO, Xisto Tiago de. Dano moral coletivo. São Paulo, LTr, 2004, p. 138. Ver também: TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano moral coletivo. Curitiba: Juruá, 2014, p. 178-179; BITTAR FILHO, Carlos Alberto. Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 559, 17 jan. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/6183. Acesso em: 18 fev. 2021.
6 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: Novos estudos e pareceres de direito privado. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 381-382.
7 Art. 1º: l - ao meio-ambiente; ll - ao consumidor; III - à ordem urbanística; IV - a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; V - por infração da ordem econômica e da economia popular; VI - à ordem urbanística.
8 A redação original do art. 5º, II, da LACP, era mais aberta, incluindo "qualquer outro interesse difuso ou coletivo" entre as finalidades das associações. Esta expressão foi retirada do texto pela lei 8.078/1990 (CDC).
9 Enunciado 456: A expressão 'dano' no art. 944 abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas.
10 EMENTA. RECLAMAÇÃO. ACÓRDÃO PROFERIDO POR TURMA RECURSAL DOS JUIZADOS ESPECIAIS. RESOLUÇÃO STJ N. 12/2009. QUALIDADE DE REPRESENTATIVA DE CONTROVÉRSIA, POR ANALOGIA. RITO DO ART. 543-C DO CPC. AÇÃO INDIVIDUAL DE INDENIZAÇÃO. DANOS SOCIAIS. AUSÊNCIA DE PEDIDO. CONDENAÇÃO EX OFFICIO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. CONDENAÇÃO EM FAVOR DE TERCEIRO ALHEIO À LIDE. LIMITES OBJETIVOS E SUBJETIVOS DA DEMANDA (CPC ARTS. 128 E 460). PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA. NULIDADE. PROCEDÊNCIA DA RECLAMAÇÃO. 1. Na presente reclamação a decisão impugnada condena, de ofício, em ação individual, a parte reclamante ao pagamento de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide e, nesse aspecto, extrapola os limites objetivos e subjetivos da demanda, na medida em que confere provimento jurisdicional diverso daqueles delineados pela autora da ação na exordial, bem como atinge e beneficia terceiro alheio à relação jurídica processual levada a juízo, configurando hipótese de julgamento extra petita, com violação aos arts. 128 e 460 do CPC. 2. A eg. Segunda Seção, em questão de ordem, deliberou por atribuir à presente reclamação a qualidade de representativa de controvérsia, nos termos do art. 543-C do CPC, por analogia. 3. Para fins de aplicação do art. 543-C do CPC, adota-se a seguinte tese: "É nula, por configurar julgamento extra petita, a decisão que condena a parte ré, de ofício, em ação individual, ao pagamento de indenização a título de danos sociais em favor de terceiro estranho à lide". 4. No caso concreto, reclamação julgada procedente. (STJ - 2ª Seção. Reclamação 12.062/GO. Rel. Min. RAUL ARAÚJO. J. 12/11/2014, v. u.).