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A famigerada dupla função da responsabilidade civil e seu anacronismo com normas fundamentais do processo civil

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Atualizado às 07:38

Nos quatro rincões desse país, não há um causídico, julgador ou membro do Ministério Público que no seu mister não se depare com a seguinte expressão nas sentenças/acórdãos que versam sobre dano moral: "atendendo a dupla função da responsabilidade civil (compensatória/punitiva) fixo o valor da indenização em R$...". O dito jargão mostra seus tentáculos nas mais diversas matérias: consumidor, que teve a bagagem extraviada; trabalhador, vítima de assédio moral; administrativo, no caso de morte de detento; família, quando o/a cônjuge é traído(a) com exposição pública; direito de vizinhança, quando altas músicas incomodam o confinante; contratos, quando a obra atrasa frustrando os projetos do casal; direitos da personalidade, quando a honra é vilipendiada; lei maria da penha, quando a mulher é violentada; etc.

Contudo, por trás da ingênua e bem-intencionada expressão, escamoteiam-se violações - das graves - de diversas normas fundamentais do processo civil, notadamente da inércia, do contraditório, da fundamentação da decisão judicial e da dignidade da pessoa humana. Para demonstrar essa hipótese, serão explicados brevemente os conceitos relativos as aludidas funções da responsabilidade civil e as nomas fundamentais mencionadas, para ao final mostrar um diuturno convívio da prática jurídica da responsabilidade civil com a corrosão de pilares para um processo justo, com o objetivo de provocar uma reflexão acerca de quais caminhos a comunidade jurídica deve perquirir em matéria de direito de danos nessa zona em particular.

Um parêntese, porém, para deixar claro que a responsabilidade civil desempenha multifacetadas funções, como a restitutória de lucros ilícitos, a preventiva, a reparatória, a promocional, dentre outras1. Mas, fiel ao recorte metodológico alhures destacado, o presente texto irá se ater apenas a função compensatória e punitiva. Adiciona-se também que existem dezenas de outras normas fundamentais no processo civil - para além das sublinhadas no introito), como a igualdade, a boa-fé, a efetividade, a primazia de mérito, a eficiência, a publicidade, o respeito a ordem cronológica de conclusão etc. Contudo, de modo a tornar possível a ideia que será aqui exposada, haverá uma concentração apenas no contraditório, dignidade da pessoa humana, fundamentação da decisão judicial e inércia.

A função denominada de compensatória, com arrimo no art. 944 do CC/2002, visa a encontrar um valor indenizatório que se aproxime em maior medida possível da real magnitude do dano e do descalabro sofrido pela vítima. É a famosa busca por anular perdas imerecidas e injustas, com o diferencial que em se tratando de danos de ordem extrapatrimonial, como não é possível pôr exatamente a vítima em uma situação tal qual não tivesse ocorrido o dano, diz-se que tal função perquire amenizar as consequências danosas, sem perder de vista que apesar de impossível o retorno ao "status quo ante" o julgador deve estar comprometido com uma séria e profunda análise do valor que faça frente de forma proporcional ao mal causado. Nessa linha, diante da pergunta se haveria dinheiro que apagasse a morte de um filho ou a amputação de uma perna, Mazeaud e Tunc (1977, p. 438) ponderam:

Es ésa una razón para negarle a la víctima el abono de daños y perjuicios?  En manera alguna; porque se trata precisamente de  ponerse  de  acuerdo acerca del exacto sentido de la palabra reparar. Repararun daño no es siempre  rehacer  lo  que  se  ha  destruido;  casi  siempre  suele ser darle a la víctima la posibilidad de procurarse satisfacciones equivalentes a  lo  que  ha  perdido.  El verdadero  carácter  del  resarcimiento  de  los  daños  y perjuicios es un papel satisfactorio. Hay que reconocer que el dinero no sólo facilita un  enriquecimiento  intelectual  o  artístico,  sino  que  le  da  a  quien  lo  recibe la posibilidad de aliviar por sí mismo muchos sufrimientos. Por lo tanto, no es  chocante  permitirle  a  un  padre  o  a  una  atenuación  a  su  pena  en  el  consuelo  que  llevarán  a  niños  desventurados.  Concederles esa  posibilidad  es desde  luego  reparar  el  daño,  a  menos  en  cierta  medida.

Portanto, os critérios para a quantificação do dano moral nada mais são do que formas de identificar que a suposta vítima sofreu desequilíbrio injusto, o qual se manifesta em diversas dimensões da vida humana, sendo possível de forma exemplificativa avaliar alguns parâmetros, como o nível e a duração do sofrimento da vítima, a quantidade de bens jurídicos atingidos, a afetação na vida social e diária, o grau de ofensa ao bem jurídico, o nível de reversibilidade, a obstaculização a projetos de vida etc. A reforma trabalhista, no art. 223-G da CLT, é o dispositivo legal que mais traz bússolas para o julgador, caminhando bem em alguns pontos e pecando em outros.2

De outra ponta, a função punitiva é uma verba que tem por objetivo fixar um valor além do suficiente para compensar o dano, com o escopo de desestimular o ofensor a praticar novamente um ato marcado por alto grau de censurabilidade, que será aferida conforme a maior ou menor presença dos seguintes elementos: a) condutas ilegais reiteradas; b) aproveitamento de pessoas vulneráveis; c) indiferença com a vítima; d) práticas arquitetadas maliciosamente; e) danos físicos; f) risco de não se responsabilizar por todos os danos de ordem difusa ou coletiva etc.

Como o direito brasileiro não possui previsão legal expressa de tal função, os contornos acima têm por base a experiência norte-americana (punitive damages), com parâmetros de casos julgados pela Suprema Corte, como o BMW of North America, Inc. v. Gore (1996), State Farm Insurance v. Campbell (2003) e Philip Morris v. Williams (2007), assim como a depuração conceitual do § 908 do Restatement of Torts, elaborado pelo American Law Institute: "indenização que não a compensatória, concedida contra uma pessoa para puni-la por sua conduta ultrajante e dissuadi-la, e outras como ela, de praticarem condutas semelhantes no futuro".

Pois bem. Antes de fazer o entrelace propugnado na parte inicial do texto, resta conceituar brevemente as normas fundamentais descritas. A inércia (art. 2ª do CPC) exige que o Judiciário seja provocado para a tutela jurisdicional seja realizada e, como desdobramento disso, o juiz só pode julgar o conflito nos exatos limites do pedido (art. 492 do CPC). O contraditório (art. 9º/10º do CPC) é o direito de a parte participar ativamente do processo dentro da tríade informação-reação-influência. A fundamentação da decisão judicial (art. 11) determina que o magistrado demonstre as razões de cunho fático e jurídico que dão sustentáculo a conclusão, sem perder de vista que ao empregar conceitos indeterminados e invocar dispositivos legais sem demonstrar a sua pertinência com o caso eiva a decisão de nulidade (art. 489, § 1º, I e II). Por fim, a dignidade da pessoa humana no processo civil (art. 8º do CPC) representa a ideia de que o juiz deve estar comprometido em resguardar e promover aspectos básicos para o florescimento humano na dimensão existencial. Agora compreendamos como essas normas fundamentais são corriqueiramente vulneradas.            

Inércia

Juízes não mudam o mundo e não devem se arvorar em resolver problemas crônicos de injustiça na sociedade sem o correspondente permissivo legal, sob pena de exercício impróprio da jurisdição. Basta lembrar do embate entre os ministros Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. Este foi criticado por aquele por ter declarado inconstitucional o crime de aborto numa turma, descumprindo a reserva de plenário, gerando como resposta a famosa frase "você é uma mistura do mal com atraso, com pitadas de psicopatia".

De todo modo, se na petição inicial o advogado fundamenta apenas na finalidade compensatória, não pode o juiz, que não é a palmatória da maldade no mundo, atribuir na sentença quantificação de cunho punitivo com a nobre tarefa de "desestimular condutas nefastas", embora já tenha sido propugnado por Hans Kelsen (1979, p. 164) que a sanção civil de indenização já desempenha naturalmente o papel de prevenir danos. Se a indenização punitiva, mesmo que requerida na exordial, por si só já é extremamente criticada enquanto mecanismo de prevenção de danos sem previsão legal, imagine a sua utilização como jargão de toda e qualquer demanda envolvendo dano moral.

Ah, mas e os "repeat players", que calculam meticulosamente a prática do ilícito lucrativo, praticando em escala massificada danos a grupos de pessoas? Para isso, não esqueçamos que os direitos da personalidade possuem a tutela inibitória (art. 12 do CC/02), a Lei da Ação Civil Pública permite esse tipo de proteção para proteger grupos de pessoas. E, de forma mais aprofundada, aconselho o estudo do dano moral coletivo e da função de restituição de ganhos ilícitos, quem sabe uma saída legítima para esse imbróglio, como vem ensinando o professor Nelson Rosenvald.

Contraditório

Merece reflexão também a indevida aglutinação que os juízes e tribunais brasileiros realizam com a indenização punitiva, inserindo-a dentro da compensatória sem destacar qual o valor é punitivo qual é compensatório. Nesse caminho, não se possibilita que o jurisdicionado e a sociedade identifiquem o que é compensatório e o que é punitivo, não garantindo o direito de recorrer, por exemplo, apenas da parte punitiva, debatendo seus fundamentos. Ademais, como se não bastasse a junção das verbas, muitas vezes se tem decisão surpresa, imprimindo viés punitivo na decisão sem que tenha oportunizado a manifestação sobre este ponto. Fulmina-se, portanto, duplamente, o direito de participar ativamente do processo, pilar do contraditório.

Fundamentação da decisão judicial

A norma fundamental da fundamentação da decisão judicial possui uma dupla afetação: na indenização compensatória e na punitiva. Na compensatória, ao invocar o conceito jurídico indeterminado do art. 944 do CPC (o valor da indenização mede-se pela extensão do dano), muitos juízes deixam de ser valor de parâmetros para justificar como alcançaram o quantum, utilizando expressões como proporcionalidade, mas sem fazer o cotejo nos autos com os inúmeros parâmetros que a doutrina desenvolveu para uma justa fixação:  o nível e a duração do sofrimento da vítima, a quantidade de bens jurídicos atingidos, a afetação na vida social e diária, o grau de ofensa ao bem jurídico, o nível de reversibilidade, a obstaculização a projetos de vida etc.

É claro que juiz é e sempre será o senhor da fixação do valor indenizatório, porém, pelo próprio dever de fundamentação das decisões judiciais (art. 93, IX, CF/88) e pelo fato de que o juiz deve justificar racionalmente a interferência do Estado na esfera jurídica das pessoas, é salutar que no corpo da decisão judicial haja a busca por justificativas adequadas sobre a real magnitude das consequências danosas.

No tocante a indenização punitiva, também se convive com falhas de fundamentação. Apesar de o instituto não estar previsto expressamente, ao menos caberia aos juízes trazer elementos nos autos pertinentes aos requisitos teóricos do instituto, como o alto grau de censurabilidade da conduta e o risco de o réu não pagar por todo o mal que fez, prejudicando o dever de fundamentação da decisão judicial.

Dignidade pessoa humana

A tarefa de arbitrar a indenização por dano moral deve ser um trabalho individualizado para a vida da vítima, jamais limitado a uma prova dos autos ou a um caso já julgado, pelo que se rechaça a pré-fabricação de valores indenizatórios presentes em gabinetes de alguns juízes e desembargadores. A norma processual que cabe ao juiz, ao aplicar o ordenamento jurídico "promover a dignidade da pessoa humana", no campo da responsabilidade civil, indica que o julgador deve instruir o processo para compreender de forma fidedigna o que a vítima teve obstaculizado em sua vida após o dano, inclusive pela possibilidade de produção de provas de ofício (art. 370 do CPC).

O valor da indenização sempre será uma forma de atenuar o mal causado, sem ter o condão de restaurar integralmente o equilíbrio anteriormente existente. Contudo, mesmo a função compensatória tendo uma tarefa mais árdua no campo do dano moral, ainda assim é preciso levar à sério a dimensão normativa da vítima, no sentido de investigar tudo aquilo de interesse juridicamente protegido que lhe foi afetado.

A indenização é um remédio que visa a impor uma obrigação destinada a recompor os direitos da vítima, e, tanto quanto possível, lhe dar o equivalente aos seus direitos e interesses violados. Isso implica em mergulhar a fundo na identificação de todos os interesses jurídicos violados, e, ao mesmo tempo, na compreensão da magnitude dos danos, de modo a possibilitar não somente a caracterização de um dano como indenizável, mas também de proporcionar um valor monetário equivalente ou proporcional à total extensão normativa dos danos, da forma mais aproximativa possível.

Em verdade, se atravessa um estágio de litigação de massa na qual os magistrados tentam gerir uma quantidade de processos descomunal, mas isso não pode impedir que estude a fundo a magnitude do dano em todas as suas nuances. Aliás, em tempos de crise no bojo de uma sociedade massificada e individualista só se reforça a busca pela máxima proteção da pessoa humana e de uma responsabilidade civil levada à sério, primando por uma leitura humanista, como assevera Pietro Perlingieri, ensinando que é preciso ler o direito civil não mais sob a ótica produtivista, mas sim "'relê-lo' à luz da opção ideológico-jurídica constitucional, na qual a produção encontra limites insuperáveis no respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana. As épocas de decadência moral e civil são aquelas nas quais a justiça civil é a grande derrotada" (1997, p. 4/6).

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Para maior aprofundamento: ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil. 3ª ed. Saraiva: São Paulo, 2017.

Para mais subsídios ler: BONNA, Alexandre Pereira; LEAL, Pastora do Socorro Teixeira. A quantificação do dano moral compensatório: em busca de critérios para os incisos V e X do art. 5o da CF/88. Revista Jurídica da Presidência   Brasília   v. 21 n. 123 Fev./Maio 2019 p. 124-146.