Ações reparatórias de danos concorrenciais: deve o administrador ser responsabilizado pela decisão injustificada de não recuperar os danos sofridos pela empresa?
terça-feira, 6 de setembro de 2022
Atualizado às 09:30
Proposto inicialmente no Senado em 2016, onde tramitava sob o no 293, o PL 11.275/2018 que hoje tramita na Câmara dos Deputados foi recentemente aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e espera-se que logo receba a sanção presidencial.
Esse projeto modifica a lei 12.529/11 (Lei de Defesa da Concorrência - "LDC") especificamente para alterar o teor de seus artigos 47 e 85, além de inserir os novos artigos 46-A e 47-A, visando dar maior robustez ao sistema brasileiro de persecução privada concorrencial. As modificações previstas tratam de temas cruciais ao desenvolvimento da indenização das vítimas de ilícitos à ordem econômica: o prazo prescricional aplicável e o termo inicial que deve ser utilizado na sua contagem; a distribuição do ônus probatório, especialmente no que se refere ao repasse dos danos ao longo da cadeia produtiva; a possibilidade de escolha do procedimento arbitral pelas vítimas contra os violadores que confessaram a conduta ilícita às autoridades (via Acordo de Leniência ou Termo de Cessação de Prática); e a indenização em dobro das perdas e danos sofridas pelas vítimas.
O Brasil vive uma fase de crescimento das ações indenizatórias por danos concorrenciais, que se desenvolveram muito a partir de 2015, caminho natural quando se observa as experiências americana e europeia. Neste sentido, espera-se que a nova lei que surgirá com a sanção do PL 11.275/2018 trará incentivo ainda maior a tal prática, na medida que proporcionará segurança jurídica a temas que antes dependiam da interpretação de normas não específicas e ainda pendiam de harmonização pelo Poder Judiciário.
Assim, pode-se dizer que a importância dessa aguardada mudança legislativa é, ao final, aumentar o enforcement privado concorrencial no Brasil. Ou seja, se hoje as ações judiciais existentes encontram dificuldades para pedir o mínimo do prejuízo experimentado pelas vítimas (com dificuldade de comprovação até mesmo do sobrepreço, que é o dano emergente mais evidente) e para avançar na marcha processual, no futuro o ressarcimento poderá ser mais abrangente e incluir também tanto o lucro cessante, quanto os demais prejuízos gerados pela deformação do ambiente comercial em razão das práticas anticoncorrenciais, além de promover mais rapidez e assertividade nas decisões judiciais.
Ora, não custa lembrar que a importância do enforcement privado é preservar o ambiente concorrencial como um todo, visto que a persecução pública dos infratores não é suficiente para coibir e prevenir novas infrações, por melhor que ela seja realizada. A punição nas esferas administrativa e criminal, por suas próprias naturezas, são sempre previsíveis ao infrator, fator que possibilita a este antever o resultado final e incluir tais eventuais perdas econômicas na conduta ilegal, aumentando ainda mais o prejuízo das vítimas. Portanto, a indenização privada não é apenas a única forma de ressarcir as vítimas por seus prejuízos como tem papel fundamental no desincentivo à violação da lei, na medida em que elimina qualquer possibilidade de lucro ao infrator.
Sabendo-se que parte relevante das vítimas são grandes corporações, prescinde de análise o impacto que a reforma legislativa promovida em relação ao sistema brasileiro de persecução de indenizações por dados concorrenciais possui sob a ótica corporativa. Indaga-se assim até onde iria a responsabilidade do administrador de uma empresa caso ela tenha sido vítima de uma infração concorrencial. Tal questionamento cresce em importância se esta empresa for uma companhia aberta e, em função disto, submetida não apenas aos regramentos trazidos pela Lei no 6.404/1976 (LSA), como também pelas normas da Comissão de Valores Mobiliários (CVM).
O fato de existir a oportunidade de ingressar com uma ação indenizatória (seja ela no âmbito concorrencial ou outro) impõe uma decisão ao administrador da empresa, o que, considerando o arcabouço legal trazido pela LSA, implica em deveres e responsabilidades à figura deste agente fiduciário. Vejamos.
Ao descrever o dever de diligência deste administrador no seu artigo 153, a LSA remete a um parâmetro de cuidado e diligência que deve ser empregado por todo homem ativo e probo no exercício da administração de seus próprios negócios. Este parâmetro direciona a análise do caso concreto ao modo de atuação deste administrador, isto é, procurando averiguar se ele cercou-se de todas as precauções necessárias à tomada de decisão1.
Trazendo ao caso concreto, o dever de diligência estaria materializado no dever do administrador de analisar todos os aspectos, sejam eles positivos ou negativos, da decisão sobre a possibilidade de ingressar ou não com a demanda reparatória, seja ela judicial ou arbitral. Neste sentido, considerando os montantes a serem ressarcidos pela companhia e as peculiaridades inauguradas pela modificação legislativa (que facilitam antigos obstáculos processuais, como a contagem do prazo prescricional e a distribuição do ônus probatório), parece-nos que desconsiderar sequer a hipótese do ingresso da demanda ou não possuir motivos racionais para tanto pode ensejar a responsabilização deste administrador por não atuar de forma diligente para com a companhia, colocando a perder montantes expressivos, que certamente contribuiriam à consecução da sua atividade empresarial ou seriam revertidos em lucros aos acionistas.
De fato, essa obrigação e reforçada pelo artigo 154 da mesma LSA, que prevê o dever de lealdade do administrador, por meio do qual ele deve sempre buscar o melhor interesse da companhia. Ainda, mesmo em nível assemblear essa preocupação com o bem comum da companhia, pois o artigo 166 da LSA estende ao acionista controlador os deveres de lealdade e diligência. Por consequência, uma decisão do controlador que freie a busca por valores de direito da companhia pode atentar aos direitos dos minoritários e configurar até mesmo abuso de poder.
Como é possível depreender a partir da orientação consolidada pelo colegiado da CVM, foge à competência do órgão a análise quanto ao resultado da conduta dos administradores, restando, porém, sob seu escrutínio, o processo de tomada de decisão. Este processo, por sua vez, consiste em verificar se o administrador, ao ser confrontado com a situação em concreto, agiu de maneira informada, refletida e desinteressada2.
Assim, para além da análise sobre o modo pelo qual atuou o administrador, sob as lentes do artigo 153 da LSA, também se faz necessário analisar se a decisão do administrador efetivamente buscou a consecução dos fins sociais da companhia. Em ambos os casos, a regra para avaliar a sua decisão negocial seguirá o padrão da Business Judgement Rule.
Ao elaborar sobre o tema, Sampaio Campos observa que
"não se exige do administrador, então, apenas uma conduta formalmente de acordo com os preceitos da LSA, mas, sim, materialmente em linha com os seus preceitos. Da mesma forma que os conceitos de discricionariedade próprios do direito administrativo têm aplicação aos administradores, permitindo a LSA larga margem de ação. Essa faixa de atuação é conferida apenas para que o administrador possa realizar o objeto social e atender ao interesse social, à medida que o poder e a liberdade dos administradores é eminentemente funcional como órgão da companhia. Se o administrador usar seu poder e mesmo sua discricionariedade para qualquer outra finalidade ou contrariamente ao interesse social incidirá em desvio de poder, conceito construído pelos administrativistas, mas que tem inteira cabida na atuação dos administradores das companhias"3 (grifo nosso)
Precedentes também recentes da CVM seguem essa interpretação legal, na medida que consideram que avaliações posteriores das decisões dos administradores devem considerar se eles teriam condições de antever a iminência do implemento de determinado risco, com base nas informações que lhe estavam disponíveis, pouco importando se efetivamente tiveram consciência do alerta4.
Ora, este "desvio de poder" e falha no cumprimento dos deveres de diligência e lealdade podem se configurar no caso das decisões sobre demandas para indenização por danos concorrenciais tanto nas hipóteses de desvio de finalidade em razão de algum tipo de conflito de interesses que possa macular a decisão de determinado administrador, quanto em situações que demonstrem sua contrariedade ao interesse social da companhia. Tal consequência surge tanto porque tal administrador age visando beneficiar outro agente econômico de interesse contrário como por ausência da devida diligência em analisar a oportunidade, porque em ambos os casos o resultado é o mesmo: colocar a perder montantes expressivos que serviriam aos interesses corporativos.
Dessa forma, conclui-se que, para o caso das Sociedades Anônimas, é pujante que a reforma legislativa em comento, ao contribuir com a viabilidade das demandas indenizatórias em questão e dobrar o valor das indenizações devidas, igualmente elevará o rigor das justificativas que precisarão ser apresentadas para justificar a recusa de seu ingresso em juízo.
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1 O dever de diligência não é circunscrito aos administradores de sociedades anônimas. Ao contrário, os administradores de outras espécies de sociedades têm o mesmo dever em razão do preceito do artigo 1.011 do Código Civil, que tem o mesmo conteúdo do artigo 153 da LSA.
2 Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2005/1443, de relatoria do Diretor Pedro Oliva Marcílio de Sousa, julgado em 21-03-2006 e Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2005/0097, de relatoria da Diretora Maria Helena de Santana, julgado em 15-03-2007.
3 SAMPAIO CAMPOS, Luiz Antonio. Orientação da Aplicação da LSA. In FILHO, Alfredo Lamy; PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Direito das Companhias, p. 1084.
4 Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2008/8046, de relatoria do Diretor Pablo Renteria, julgado em 30-10-2018 e Processo Administrativo Sancionador CVM nº RJ2014/8013, de relatoria do Diretor Pablo Renteria, julgado em 31-08-2018.