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Da brevidade da vida à não brevidade da morte - A reparação do dano da morte: Um diálogo entre o direito ibérico e o Direito brasileiro

terça-feira, 31 de maio de 2022

Atualizado em 30 de maio de 2022 10:19

Sêneca, em "A Brevidade da Vida", estabeleceu um diálogo com Aristóteles sobre o tempo de vida do homem na terra, entendendo o segundo ser este tempo um período muito curto para o ser humano dar cabo aos projetos essenciais da vida; todavia, o filósofo estoico, ao revés, avaliou esse espaço de tempo suficiente desde que o homem canalizasse suas energias aos projetos que verdadeiramente importassem. Seja como for, a vida pode ser breve ou não, mas sempre de acordo com a perspectiva de cada ser vivente. E a morte, é breve? Ou, existindo um período mais ou menos longo de padecimentos ou sofrimentos que precede o desfecho final humano, impediria de adjetiva-la como "instantânea", sob a ótica do Direito?

A morte é um fenômeno natural e deve ser analisado sempre de acordo com a perspectiva cultural de cada povo, apresentando-se ora como um trauma ante o desligamento da pessoa falecida dos seus entes queridos, ora como algo que se deve comemorar por ter o sujeito cumprido os propósitos que lhe foram conferidos e, portanto, como o momento de desfrutar a realidade eterna e, em outras ocasiões, como algo a ser apreciado, porquanto o morto passaria a ser visto enquanto objeto de culto por seus familiares e herdeiros, a exemplo do que ocorria nas primeiras cidades antigas até a formação das polis gregas e cidades romanas tais quais foram conhecidas mais de perto, conforme relatou Fustel de Coulanges em "A Cidade Antiga".

A importância da morte se estabelece não somente na seara religiosa, mas também na econômica, sociológica, filosófica e jurídica. Sob esse último aspecto, a morte é fato jurídico desencadeador de diversos efeitos no direito obrigacional, societário, de danos, familiar e sucessório. No que pertine ao direito de danos (no plano puramente "reparatório") urge perscrutar sobre os danos que ensejam o direito de compensação, isto é, se do fato antijurídico da morte decorre apenas direito reparatório aos familiares da vítima - na ordem conferida por lei - pelos danos morais reflexos ou, lado outro, se o próprio morto adquire o direito à reparação civil pelo atingimento de sua própria vida, enquanto titular do direito personalíssimo, ainda que a morte se apresente aparentemente "instantânea".

Não restam dúvidas de que a vida é o bem integrante do patrimônio existencial da pessoa mais elevado e que merece tutela efetiva e concreta por parte do ordenamento de um Estado. Por isso, tal direito restar-se regulado desde a perspectiva do direito constitucional até a do direito penal, o qual, de sua vez, prevê tipos penais que tangenciam a proteção conferida constitucionalmente ao homem desde a vida intrauterina até a última fase do percurso existencial humano.

Inobstante isso, indaga-se: uma pessoa que sofreu ilicitamente atentado à sua vida tem direito a uma reparação, ainda que a título compensatório, pela perda da própria vida? A doutrina espanhola e a portuguesa, e com elas a jurisprudência desses países, ocuparam-se com apimentados debates acerca do tema, chegando uns a negar peremptoriamente esse direito à vítima, impondo-se óbice à reparação enquanto direito que não pode ser adquirido por quem já morreu, isto é, o direito não poderia ser adquirido ante o fato de sua própria extinção, qual seja, a morte. Outros, porém, advogavam a tese segundo a qual o direito de reparação pode ser incorporado ao patrimônio da pessoa desde que exista um lapso temporal entre a lesão e a morte propriamente dita. Contudo, existem aqueles que admitem a reparação mesmo nas situações de morte "instantânea", sob o argumento da contradição de se aceitar a reparação por lesões não provocadoras de morte e não se aceitar nas situações de lesões fatais, evidenciando tratamento satisfatório para aquele exímio matador que produziu a lesão fatal e prejudicando, em contrapartida, o matador amador.

A morte pode ser, em algum momento, considerada um fato passageiro? Existe morte instantânea? É consabido que a medicina, ao avaliar o processo de morte de alguém, regra geral, confere o estado de morto àquele que não apresenta sinais neurológicos vitais (cessação das funções do cerebelo), porém, tal argumento vem cedendo espaço no campo da filosofia médica e da bioética.

Afirma a Professora de filosofia da USP, Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, que pela diferente resistência vital das células, tecidos, órgãos e sistemas, forçoso é admitir que a morte se trata de um processo e "processo incoativo". De sua parte, o Professor de bioética Antônio Puca adverte que a morte como a cessação irreversível das funções do cérebro, parece ser incompatível com a dimensão do ser no plano filosófico, assim, a morte como um processo de cessação permanente do funcionamento do organismo humano como um todo parece mais adequado.

Nessas considerações arrima-se a fundamentação da tese ora a se construir, ou seja, não sendo a morte algo instantâneo - apenas "aparentemente instantâneo" - ela por si só não terá o condão de impedir o ingresso no patrimônio material do morto da reparação em dinheiro pelo dano da perda da própria vida e, por consequência, a transmissão aos herdeiros na ordem de vocação hereditária. Aliás, tal constatação impactará não somente a configuração do direito reparatório para o ofendido, mas também a forma de aquisição por seus familiares, se por meio de transmissão hereditária ou por direito próprio e, ainda, a função da responsabilidade civil que respaldaria a condenação do ofensor.

A legislação civil espanhola, como qualquer outra da mesma estirpe, é provida de cláusulas gerais de reparação do dano por fato próprio, de terceiros e das coisas do responsável dependentes, inexistindo um sistema de tipificação de ilícitos e de danos indenizáveis como acontece, por exemplo, na Alemanha e na Itália.

O artigo 1.092 do Código Civil espanhol dispõe: "El que por acción u omisión causa daño a otro, interviniendo culpa o negligencia, está obligado a reparar el daño causado". Santos Briz1, em 1970, escreveu que na Espanha os danos morais encontravam fundamento no Código Penal espanhol2 e em Leis esparsas, contudo, a jurisprudência, a partir da sentença de 28 de fevereiro de 1964 do Tribunal Supremo, fundada em orientação doutrinária existente na época, passou a admitir a reparação dos danos morais "puros" e os imateriais decorrentes de diversos sofrimentos e de dores causadas aos cidadãos, com fundamento no artigo 1902 do Código Civil desse país

De forma bastante genérica, dispõe o dispositivo em análise apenas os pressupostos de reparação civil e da necessidade da prova do fator de imputação culpa do dever de reparar, tratando-se de responsabilidade subjetiva, portanto.

A se considerar a legislação em análise, parte-se do raciocínio de que, em tese, nada obsta o reconhecimento da indenização do dano-morte ante a amplitude da cláusula de responsabilidade civil extracontratual em estudo, o que poderia se fazer supor que inexistem muitas divergências doutrinárias e jurisprudenciais sobre o assunto. Entretanto, não é bem isso que se estabelece no Direito espanhol.

Até 1969, escreve Santos Briz, a jurisprudência do Superior Tribunal (Sentenças de 20 de dezembro de 1930, 8 de abril de 1936, 8 de janeiro de 1946, 17 de fevereiro de 1956 e de 25 de fevereiro de 1906) trataram do tema, tendo, especificamente, a decisão de 17 de fevereiro de 1956 reconhecido o direito à indenização aos herdeiros pela morte instantânea da genitora, porém, não a título de sucessão por herança, por não ser possível - de acordo com essa visão - o valor da reparação ingressar no patrimônio do autor da herança. Existiria, em razão do argumento, direito a tais herdeiros a título direto de ação. Entretanto, as sentenças de 8 de fevereiro de 1936 e de 3 de fevereiro de 1940 excluíram os herdeiros do direito à reparação pelo dano da morte, tratando-se da reparação de danos derivada de culpa extracontratual. De seu turno, a sentença de 17 de fevereiro de 1956 fez a distinção entre os prejuízos morais e os patrimoniais, sendo estes relativos aos gastos com velório, tratamento médico e hospitalar. Assim, se a morte não tivesse ocorrido de forma "instantânea", o direito reparatório seria transmitido aos herdeiros em razão do falecimento do de cujos, ao passo que, inclusive a reparação moral, não poderia transmitir-se aos filhos, por não ter havido a incorporação ao patrimônio do falecido, mas estes poderiam reclamar por direito próprio, em caso de "morte instantânea".

O autor em referência advoga a tese segundo a qual os herdeiros sucedem ao defunto em todos os seus direitos e obrigações pelo só fato de sua morte, com espeque no artigo 651 do Código Civil, contudo, nasceria uma nova ação por direito próprio em favor dos primeiros e não ex jure hereditatis, nas hipóteses de morte instantânea, ocorrendo a sucessão quando esta não se evidenciasse a este título.

Regra geral, tal qual no Brasil, os manuais e cursos de Direito Civil e de Responsabilidade Civil na Espanha, hodiernamente, raramente tratam da indenização pelo dano da morte, sempre se referindo aos danos morais, enquanto categorias de danos imateriais, omitindo, todavia, o dano decorrente da perda da própria vida na particular catalogação.

Em Portugal, a tese da reparação do dano derivado da morte para o próprio ofendido prevaleceu tanto em doutrina quanto em jurisprudência, exsurgindo posteriormente a norma extraída da interpretação do art. 496, nº 2 do CCP no sentido de os familiares indicados em lei adquirirem, por direito próprio, a indenização. Destarte, pacificou-se a orientação acerca do tema por meio de sua doutrina e jurisprudência, tendo se estabelecido que o dano da morte tem previsão legislativa no artigo 496, nº 2 do Código Civil, vencida a posição da irressarcibilidade defendida pelo Professor José Oliveira Ascenção3.

A previsão legal do artigo 496 dispõe de quatro dispositivos, tendo o primeiro deles previsto uma cláusula geral de ressarcimento em dinheiro do dano não patrimonial, previsão esta inexistente sob a égide do Código Civil de 1967.

Estabelece o artigo 496:

1. Na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.

2. Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último aos irmãos ou sobrinhos que os representem.

3. O montante da indemnização será fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos número anterior.

Diante da previsão legal, três correntes doutrinárias se estabeleceram em torno do assunto. A primeira defende que o direito à indenização do dano da morte é devido ao de cujos e se transmite iuri hereditatis para os seus herdeiros na ordem de vocação hereditária legal; a segunda, defende a aquisição do direito pelo próprio falecido e posteriormente transmitido aos seus parentes, contudo, apenas aos familiares previstos no art. 496, nº 2 do CCP; e, por último, a terceira corrente advoga o entendimento de que a indenização pelo dano-morte é devida, mas os familiares da vítima elencados no artigo citado adquirem tal direito de forma direta, sem qualquer transmissibilidade, sendo esta última corrente a que prevaleceu entre os autores portugueses4.

No direito Brasileiro não se vem tratando o tema com a amplitude que ele merece, havendo omissão dos doutrinadores sobre o assunto ou a defesa da irreparabilidade do dano-morte, atentando poucos autores que o estudam na particular perspectiva da reparação.

De fato, inexiste no Brasil regra igual àquela do direito português, entretanto, a partir da leitura constitucional do direito civil brasileiro, evidencia-se que os artigos 1º, inciso III, e 5º, caput, ambos da CF, além dos artigos 186, 927 e 948 do CCB, conferem plausibilidade à tese da reparação civil do dano da morte por aqui, e por ela se constituir um procedimento - ainda que aparentemente "instantâneo", por mais breve que possa parecer - não tão breve se apresenta para o direito de danos a fim de ingressar a respectiva indenização (rectius: compensação) no patrimônio da vítima, e, ao desfecho final do processo incoativo, transmitir-se aos herdeiros do morto, na forma dos artigos que regulam o direito sucessório respectivo. Em resumo, da brevidade da vida enquanto objeto de foco do observador resulta a não brevidade da morte sob o ponto de vista do Direito. A vida até pode ser considerada breve, no entanto, a morte continuará a se produzir em círculos incoativos, sepultando-se as controvérsias em torno da reparação do dano derivado da morte, da sua incorporação ao patrimônio da vítima e posterior transmissão aos familiares e da função compensatória da Responsabilidade civil nessa seara.

__________

1 BRIZ, Jaime Santos. La responsabilidad civil. Derecho Sustantivo y derecho procesal. Madrid: Editorial Montecorvo, 1970, p. 165-167 e 268-270. 

2 ASCENÇÃO, José de Oliveira. DIREITO CIVIL. Sucessões. Coimbra: Cimbra editora, 1989, p. 47-51.

3 sobre o assunto: FERREIRA, Bruno Bom. Dano da morte: compensação dos danos não patrimoniais à luz da evolução da concepção de família. Coimbra: Almedina, 2019.

4 ROSENVALD, Nelson. O dano morte: experiência brasileira, portuguesa e os vindicatory damages. In. BARBOSA, Mafalda, ROSENVALD, Nelson. MUNIZ, Francisco. Responsabilidade civil e comunicação. IV jornada luso-brasileiras de responsabilidade civil. Indaiatuba - SP: Foco, 2021, p. 319-339.