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Reações adversas pós-vacinação de covid-19 e a responsabilidade do Estado

quinta-feira, 26 de maio de 2022

Atualizado às 08:14

O protagonismo da covid-19 nos dois últimos anos exigiu uma celeridade por parte das indústrias farmacêuticas, visando a obtenção de um medicamento capaz de prevenir, tratar ou tentar erradicar essa terrível doença, que infelizmente matou milhares de pessoas ao redor do mundo.

As vacinas foram o caminho mais efetivo para minimizar as consequências devastadoras dessa doença, especialmente entre os idosos. Contudo, a segurança, requisito indissociável, só poderá ser alcançada de forma indiscutível daqui a alguns anos. Isso porque, com a não conclusão dos estudos clínicos de muitas vacinas destinadas à Covid-19, só obteremos a confirmação da real segurança alguns anos após a vacinação, haja vista a possibilidade de reações adversas serem identificadas a longo prazo, como ocorreu com o medicamento Talidomida. 

Não existe dúvida que o risco da doença poderá ser muito mais letal à algumas pessoas do que a própria vacina. No entanto, já estão sendo identificados relatos e confirmações de reações adversas desconhecidas ao tempo da introdução dos produtos e utilização pela população na Europa1, EUA2, Brasil, entre outros.

Nesse contexto, surge a indagação de quem será o responsável pelas sequelas, ou mesmo mortes, decorrentes da pós-vacinação da covid-19 no Brasil, especialmente considerando a cláusula de isenção de responsabilidade das indústrias farmacêuticas.

Entretanto, antes de analisar a responsabilidade civil aplicável, necessária a distinção entre efeitos adversos e reações adversas ao uso de medicamentos. Isso porque, muitas vezes os termos são tratados como sinônimos, mas a Farmacovigilância3 brasileira, nos apresenta conceitos diversos.

Os denominados efeitos adversos4(EA), correspondem a qualquer ocorrência médica durante o tratamento com um medicamento. Podendo citar: reação adversa, interação medicamentosa (associação de dois ou mais medicamentos; ou ainda medicamento e alimento), uso excessivo de medicamento (intencional ou não), utilização off-label e etc.

Por outro lado, as reações adversas5(RAM), correspondem a uma resposta prejudicial, indesejável e não intencional ao uso normal de um medicamento, dentro da dosagem recomendada para a faixa etária prevista na bula e para a terapêutica pesquisada. Em outras palavras, os efeitos adversos correspondem ao gênero, do qual é espécie a reação, haja vista a especificidade.

Dentre as reações adversas pós-vacina (RAPV), devemos analisar se o caso em estudo corresponde a um efeito colateral conhecido e previsível ou desconhecido e imprevisível. Isso porque os efeitos desconhecidos e/ou imprevisíveis no momento em que o produto foi colocado à disposição do paciente, poderão configurar um defeito no produto, segundo entendimento do STJ6.

Entretanto, as reações conhecidas e previsíveis, como regra, não configurarão defeito no produto, salvo se estivermos diante de uma violação do dever de informação, que deve ser observado pelo fabricante, nos termos do que estabelece expressamente o artigo 127 do CDC.

Todo medicamento traz um risco inerente, mas visando controlá-lo, há obrigatoriedade de cumprimento das normas e procedimentos impostos para o estudo clínico, regulamentado pela Farmacovigilância brasileira, que integra a ANVISA, através RDC no 9, de fevereiro de 2015.

Os medicamentos só poderão ingressar no mercado brasileiro para comercialização ou disponibilização gratuita à população a partir da fase IV dos estudos clínicos, mediante autorização provisória e constante fiscalização da Anvisa, pelo período mínimo de um ano.

Diante dos procedimentos legais, impostos para a entrada e disponibilização de um medicamento para a população brasileira, necessária a autorização da agência reguladora (ANVISA) e cumprimento dos requisitos exigidos, incluindo-se a conclusão dos estudos clínicos, na hipótese de medicamento novo. Cumpridas as exigências legais, pressupõe-se que o medicamento possui segurança mínima para utilização e circulação, mesmo com os riscos naturais.     

Contudo, a situação excepcionalíssima e inesperada vivida pela humanidade desde 2020, justificou a entrada emergencial de medicamento (vacina), sem o cumprimento das exigências impostas pela RDC no 9, de fevereiro de 2015, em relação a medicamentos novos.

Cumpre salientar que as vacinas para a covid-19, não correspondem a medicamentos experimentais, uma vez que que não estão sendo utilizados durante um estudo clínico, requisito para essa qualificação, nos termos do que estabelece expressamente a RDC no 98 de fevereiro de 2015, da Anvisa.

A vacinação compulsória para a covid-19, passou a ocorrer no Brasil a partir da vigência da lei 13.979/20.9 Entretanto, em virtude da exclusividade do Estado quanto à importação e fornecimento das vacinas para a população, inaplicável ao caso o Código de Defesa do Consumidor, diante da inexistência de relação de consumo, bem como por se tratar de objeto relacionado a prestação do serviço de saúde atribuída constitucionalmente ao Estado.10

Em que pese a importância da vacinação e a imposição como medida de saúde pública, a ser implementada pelo Estado em cumprimento aos deveres constitucionais que lhes são atribuídos, inexoravelmente o cidadão faz jus à reparação de todos os danos patrimoniais e extrapatrimoniais que sofrer em decorrência de efeitos adversos ou reações adversas da vacinação, inclusive quando realizada pelos demais entes da federação.

Nesse sentido, o sistema aplicável ao Estado, por condutas lícitas ou ilícitas, que causem dano ao cidadão, inclusive decorrente de vacinação é o da responsabilidade objetiva, baseada na teoria do risco administrativo, nos termos da previsão do art.37, § 6º da CF.11

Nesse sentido, o STJ12 já se posicionou em relação a caso semelhante: "quando o Ministério da Saúde planeja a vacinação em massa assume, com absoluta previsibilidade, que lesará alguns vacinados. Ao estabelecer programa de obrigatoriedade de vacinação chama a si a responsabilidade pelos danos emergentes das previsíveis reações adversas, ainda que em ínfima parcela dos vacinados". (grifos nossos).

Na referida decisão, o Ministro Herman Benjamin, reafirmou a responsabilidade objetiva da União pelas reações adversas experimentadas por um idoso, após a vacinação em massa, contra o vírus Influenza - Gripe, por desenvolver a Síndrome de Guillain-Barré. Não obstante a indicação específica quanto ao dever do Estado em indenizar reações previsíveis, ou seja, aquelas conhecidas pela indústria farmacêutica e indicadas na bula, como efeitos colaterais possíveis, segundo constatação nos estudos clínicos, subsiste o dever de reparar e/ou indenizar do Estado pelos danos decorrentes de reações imprevisíveis ou não conhecidas, incluindo-se as que decorram do risco do desenvolvimento.

O fundamento para a responsabilidade integral do Estado, seja por reações previsíveis ou imprevisíveis está dentro da esfera de obviedade quanto a ocorrência de algum fato danoso, quando se tratar de vacinação em massa, independente de qual vacina estejamos analisando.

Por outro lado, consta expressamente que o importador (Brasil) é responsável pela segurança, eficácia e qualidade das vacinas, conforme art. 4o, da Resolução 476/202113, motivo pelo qual tem-se mais um fundamento para a responsabilidade objetiva do Estado.

No entanto, será possível falarmos em reações adversas não conhecidas e imprevisíveis pelo uso das vacinas para a covid-19 e qualificarmos como risco do desenvolvimento?

A primeira dúvida, é se poderemos denominar como risco do desenvolvimento a identificação futura de reações, considerando a não conclusão dos estudos clínicos das vacinas para a covid-19, quando foram introduzidas para uso da população.   

Para responder é necessário lembrar que ao tratarmos do risco do desenvolvimento deve se considerar "...como aquele que não podia ser conhecido ou evitado no momento em que o medicamento foi colocado em circulação, constitui defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno."14

Nesse contexto, caso comprovado que o defeito decorre de um problema na concepção, ou seja, relacionado a fórmula do medicamento ou mesmo ocasionado com a elaboração do produto e, poderia ter sido identificado, caso concluídos os estudos no momento da inserção do produto no mercado, não estaremos diante de um risco do desenvolvimento.

A única alternativa para configurar risco do desenvolvimento é a impossibilidade técnica ou científica de identificação do defeito no momento da colocação do produto, mesmo que estivéssemos diante do exaurimento de todas as fases dos estudos clínicos.  Em outras palavras, defeitos não cognoscíveis através do mais avançado estado da ciência e da técnica, independente da conclusão ou não dos estudos.

Por fim, a última questão, diz respeito à possibilidade ou não, de um cidadão brasileiro postular indenização em face da indústria farmacêutica, diante da possível existência de cláusula contratual prevendo a isenção da responsabilidade do fabricante do medicamento (vacina para a Covid-19).

Para possibilitar a resposta, fundamental observar que o instrumento foi firmado entre o Brasil e uma indústria estrangeira privada, para permitir o fornecimento de medicamento para a população brasileira.  

Portanto, nos termos do art. 9o § 1o 15da LINDB, será aplicada a Lei brasileira, mesmo que a eleição do foro para arbitragem seja em Nova Iorque, haja vista a execução no território brasileiro.

A lei 8.666/93, observando as alterações trazidas pela lei 14.133/21, que regulamenta os contratos públicas, será o parâmetro principal, frente a participação do Estado brasileiro.

Nada obstante, "Os contratos de que trata esta lei regular-se-ão pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, e a eles serão aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado," (art. 89 da lei 14.133/21). Desse modo, passível a utilização subsidiária das normas de Direito privado.

O contrato firmado pelo Estado brasileiro, através do Ministro da Saúde, que representa um órgão da administração direta, vincula e obriga todos os brasileiros, haja vista tratar-se de matéria de Direito Público e não de Direito Privado, em que pese a possibilidade de utilização subsidiária, como exposto.

O caso é de representação válida e, como tal, vinculante aos representados, pois não se trata de mera presentação, diante do exercício do múnus público.

Motivo pelo qual todas as cláusulas integrantes do contrato assinado diretamente pelo Ministro da Saúde são erga omnes, não permitindo o afastamento sob a alegação de ter efeito relativo, pelo regramento dos contratos privados, firmados entre particulares.

Se admitirmos a não vinculação da população aos contratos firmados pelos governantes, sejam eles governadores, prefeitos ou presidente da república, bem como pelos órgãos da administração direta ou indireta, diante da previsão na lei 14.124/21, teremos uma violação direta ao princípio da segurança jurídica, expressamente previsto no art.5º da lei 14.133/21.

Entretanto, o maior ônus será atribuído à própria população, pois sofrerá diretamente se admitirmos a violação da segurança jurídica. Isso porque poderemos estar diante da recusa das indústrias farmacêuticas quanto ao fornecimento de medicamentos ao Brasil, especialmente no que se refere à vacina da covid-19.

Além disso, é imprescindível considerar que, mesmo tratando-se de matéria regida pelo Direito Público, as empresas farmacêuticas não omitiram sobre a inexistência de encerramento das pesquisas clínicas, pelo contrário, é fato notório e, a nível mundial.

Mesmo com a isenção da responsabilidade das indústrias farmacêuticas, o Estado brasileiro vislumbrava a possibilidade de risco real e efetivo a uma parcela de vacinados, sem que possa alegar desconhecimento, diante da plena ciência quanto a não conclusão dos estudos clínicos, fundamento mundial para segurança de um medicamento ser utilizado pela população.

Diante desse cenário e acompanhando o raciocínio do Ministro Herman Benjamin no citado julgado, o Estado brasileiro atraiu para si a integral responsabilidade por reações adversas conhecidas ou desconhecidas, previsíveis e imprevisíveis, inclusive as que possam ser denominadas como decorrentes do risco do desenvolvimento. Portanto, competirá ao Estado, com absoluta exclusividade, a responsabilidade integral daqueles que porventura tenham a infelicidade de sofrer reação adversa pós-vacina da covid-19.

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1 European Medicines Agency - Disponível aqui. (acesso em: 19.05.22)

2 Centers for Disease Control and Prevention - Disponível aqui (acesso em: 19.05.22)

3 BRASIL. Anvisa. "Farmacovigilância é definida como a ciência e atividades relativas à identificação, avaliação, compreensão e prevenção de efeitos adversos ou quaisquer problemas relacionados ao uso de medicamentos". Disponível aqui (acesso em: 19.05.22)

4 BRASIL. Anvisa. "O evento adverso é conceituado como qualquer ocorrência médica desfavorável que pode ocorrer durante o tratamento com um medicamento, mas que não possui, necessariamente, relação causal com esse tratamento. Tal conceito abrange uma série de problemas relacionados ao uso dos medicamentos, incluindo a reação adversa ao medicamento e a inefetividade terapêutica". Boletim de Farmacovigilância -ano 1, jul/set 2012. Disponível aqui (acesso em:19.05.22)

5 BRASIL. Anvisa. "A reação adversa ao medicamento é definida como "qualquer resposta prejudicial ou indesejável, não intencional, a um medicamento, que ocorre nas doses usualmente empregadas para profilaxia, diagnóstico ou terapia de doenças ou para a modificação de funções fisiológicas humanas". Boletim de Farmacovigilância - ano 1, jul/set 2012. Disponível aqui (acesso em: 19.05.22)

6 STJ, REsp. 1.599405-SP, Min. Marco Aurélio Bellize. Terceira Turma. J. 04.04.2017. DJe.17.04.2017. Disponível aqui (acesso em: 19.05.2022)

7 BRASIL. Lei no 8.078/90. Código de Defesa do Consumidor. Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos (grifos nossos)

8 BRASIL. Anvisa. RDC no 9 de fevereiro de 2015. Medicamento experimental - produto farmacêutico em teste, objeto do DDCM, a ser utilizado no ensaio clínico, com a finalidade de se obter informações para o seu registro ou pós-registro. Disponível aqui (acesso em:19.05.22)

9 BRASIL. Lei no 13.979/20. Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, poderão ser adotadas, entre outras, as seguintes medidas: III - determinação de realização compulsória de:...d) vacinação e outras medidas profiláticas.

10 BRASIL. Constituição Federal. Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

11 BRASIL. Constituição Federal. Art. 37, § 6º - As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.

12 STJ, REsp. 1.388.197-PR, Relator Ministro Herman Benjamin, julgado em 18.06.15, DJe. 19.04.17.

13 BRASIL. Anvisa. Resolução 476/2021. Art.4º Caberá ao importador: III - responsabilizar-se pela qualidade, eficácia e segurança do medicamento ou vacina a ser importado; Disponível aqui (acesso em 20.05.22).

14  STJ, REsp. 1.774.372-RS, Relatora Ministra Nancy Andrighi, julgado em 05.05.20, DJe. 18.05.20.

15 BRASIL. LINDB. Art. 9o Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. § 1o Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato.