Sobre a tragédia de Capitólio e outras... até quando?
terça-feira, 1 de fevereiro de 2022
Atualizado em 31 de janeiro de 2022 16:01
Palavras iniciais
Os meses entre novembro e fevereiro são marcados por fortes chuvas região Sudeste do Brasil que, atrelado com a intervenção humana no meio ambiente, favorece a ocorrência de acidentes naturais como enchentes, transbordamentos de rios, desabamentos de prédios.1 Esse período coincide com as festas de final de ano, férias e recessos, fatores esses que favorecem a procura por viagens que possibilitam maior interação com a natureza. Desse modo, as pessoas se aventuram em regiões de matas, rios, trilhas e cachoeiras, assim como as empresas e os agentes de turismo se esforçam para atender à demanda dos consumidores, sem atentar para os riscos de danos.
É nesse cenário que surge o problema dos danos, dos riscos das atividades e da necessidade de forte atuação, com medidas de prevenção e de precaução, a fim de evitar a ocorrência de tragédias como a de Capitólio/MG.
Os cânions de Capitólio e sua formação.
Capitólio é uma cidade de 8.693 habitantes, situada no sudoeste de Minas Gerais, a 280 km de Belo Horizonte. A construção da usina de Furnas naquela região, entre as décadas de 1950 e 1960, exigiu a transposição do rio Piumhi, que desaguava no rio Grande, para o rio São Francisco, bem como a construção de um dique para evitar que as águas da represa inundassem a cidade. A formação do Lago de Furnas, que por sua magnitude foi apelidado como "o mar de Minas", ocasionou muitos prejuízos socioambientais, mas fez surgir novas paisagens que impulsionaram as atividades turísticas.2 Entre as principais atrações estão os cânions de Capitólio e suas lindas cachoeiras, que podem ser vistos a partir de um mirante ou visitados em passeios de barcos e lanchas, com possibilidade de realização de mergulho sob as cachoeiras.3
O que ocorreu no Capitólio?
No dia 8 de janeiro de 2022, ocorreu o desabamento de um enorme bloco de rocha da encosta do cânion de Capitólio, que veio a atingir embarcações de turismo que se encontravam próximas a uma das cachoeiras, arremessando os barcos e seus ocupantes a vários metros de distância, com notícia de 10 pessoas mortas e dezenas de feridas.4
Que tipo de dano é esse?
A tragédia de Capitólio se assemelha àquela ocorrida na Boate Kiss, em Santa Maria, RS, em janeiro/2013, bem como aos derramamentos de rejeitos de minério que aconteceram em Mariana e Brumadinho, MG, em novembro/2013 e janeiro/2019. Isso porque são episódios que escapam à normalidade dos danos ordinários que acontecem no dia a dia das pessoas, são episódios multicausais e que se relacionam com atividades necessárias ao nosso modo de vida nas sociedades contemporâneas.
Analisando a evolução do fenômeno danoso ao longo da modernidade, percebemos que no início havia apenas o dano culposo, causado por imprudência, negligência ou imperícia do agente, que serviu de base para a formulação da teoria da culpa. Posteriormente, surgiu o dano sem culpa, causado por alguma atividade a cargo de determinada pessoa, o qual serviu de fundamento para a teoria do risco do risco individual. Hodiernamente, há também o dano-acidente ou dano-atividade, inerente às atividades desempenhadas por entidades desindividualizadas, o qual serve de fundamento para a teoria do risco coletivo.
A tragédia de Capitólio, embora à primeira vista possa sugerir a modalidade culposa, parece reunir as principais características do dano-acidente, que está relacionado com atividades inerentes e indissociáveis do nosso modo de vida, que é multicausal e que produz consequências catastróficas sobre as vítimas diretas e sobre a coletividade.5
O que poderia ser feito para evitar tragédias como essa?
Imediatamente após o desabamento do paredão de pedra no cânion de Capitólio, o prefeito anunciou o fechamento do acesso ao Lago de Furnas, como medida emergencial, no que foi acompanhado pelos prefeitos das cidades vizinhas, após visitas técnicas de representantes da Defesa Civil.6 Também os peritos da Polícia Civil e da Polícia Federal visitaram o local e abriram investigações para apurar as causas do acidente.7 Tais providências são semelhantes àquelas adotadas em relação ao incêndio na Boate Kiss e aos derramamentos de rejeitos de minério em Mariana e Brumadinho. Depois de ocorridos esses episódios, as autoridades se apressaram em aprovar leis mais rígidas sobre autorização de funcionamento de casas noturnas e sobre o funcionamento das barragens de minério.8
É evidente o descompasso temporal entre o acidente e a adoção dessas medidas, as quais não têm nenhum efeito útil sobre o fato ocorrido. Melhor seria adotar medidas de prevenção e de precaução para evitar a ocorrência do dano, em especial o mapeamento e identificação das áreas consideradas de risco, um plano emergencial para situações de desastre, além da regulação e fiscalização das atividades exploradas no local.
De quem é a responsabilidade civil pela tragédia de Capitólio?
A ocorrência de um evento danoso dessa magnitude desencadeia uma série de consequências jurídicas de natureza civil, penal e administrativa. É evidente que os barqueiros devem responder criminalmente, de acordo com a culpabilidade de cada um, a ser apurada em processos próprios, assim como as empresas e agências de turismo podem sofrer sanções administrativas em razão do ocorrido. No que toca à responsabilidade civil, incumbe aos causadores diretos dos danos o dever de reparar, com base na culpa, no caso dos barqueiros; e com base no risco individual, com relação às empresas e agências de turismo.
No entanto, é possível entrever a possibilidade de responsabilização civil do Estado por falha nos deveres de prevenção e precaução, melhor dizendo, por falha no dever de gerenciar os riscos da atividade. De acordo com o art. 21, XVIII, da Constituição Federal, compete à União planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas. Na esteira desse dispositivo, a lei 12.608/12 dispõe sobre o Sistema Nacional de Defesa Civil, a cargo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, com o objetivo de monitorar os riscos de acidentes, adotar ações preventivas e prestar socorro às vítimas de catástrofes.9
É certo que, por força do princípio da livre inciativa privada, o exercício das atividades empresariais, como regra, independe de autorização governamental, mas a lei pode impor restrições, consoantes ao grau de risco que ofereçam à população, ao meio ambiente e à sociedade (CF/88, art. 170, parágrafo único).10 No entanto, essa disposição deve ser interpretada em consonância com outros mandamentos constitucionais atinentes aos direitos fundamentais à vida, à educação, à saúde, ao trabalho, à segurança e a um meio ambiente saudável (CF/88, arts. 5º, 6º, 7º e 225). Desse modo, apesar das recentes modificações legislativas que atribuem maior ênfase à liberdade econômica do que a valores como a segurança das pessoas e da coletividade,11 incumbe ao Estado os deveres de legislação, regulação e fiscalização das atividades empresariais, em virtude do disposto nos arts. 21, XVIII, e 174 da Constituição.
No caso da tragédia de Capitólio, não é possível estabelecer a responsabilidade civil direta do Estado, uma vez que os danos foram causados por agentes estranhos às atividades estatais.12 No entanto, é preciso considerar o dever estatal de regulamentar as atividades privadas, mediante avaliação dos riscos, impondo restrições ao seu desempenho e fiscalizando o estrito cumprimento das recomendações e das normas técnicas. Na ausência ou insuficiência de regulamentação e de fiscalização das atividades particulares pelo poder público, é de cogitar-se sobre a responsabilidade civil do Estado quanto à reparação dos danos sofridos pelas vítimas.13
Palavras finais
Em síntese, catástrofes como essa ocorrida em Capitólio são multicausais porque combinam as forças da natureza com a exposição das pessoas a situações de risco e a insuficiência de regulação e fiscalização das atividades privadas pelo poder público. Diante de um fato dessas proporções resta a sensação de insuficiência do sistema de tratamento de danos, uma vez que os danos poderiam ser evitados se fossem adotadas medidas de prevenção e de precaução.
Do fato ocorrido em Capitólio emergem consequências jurídicas de ordem civil, criminal e administrativa em relação aos agentes e empresas de turismo que são os causadores diretos dos danos. Não se pode perder de vista, porém, que a eventual omissão ou ineficiência quanto aos deveres de regulação e fiscalização das atividades privadas pode posicionar o Estado na linha de causalidade do dano, configurando a sua responsabilidade civil.
_____
4 Disponível aqui.
5 A respeito dessa modalidade de dano, consulte-se: DELMAS-MARTY, Mireille. Por um direito comum. Tradução de Maria Ermantina de Almeida Prado Galvão. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 15/16; SANTOS, Romualdo Baptista dos. Responsabilidade civil por dano enorme, Curitiba/Porto: Juruá, 2018, p. 223-230; CAVET, C. A. resenha à obra "Responsabilidade Civil por Dano Enorme": de autoria de Romualdo Baptista dos Santos (2018). Revista IBERC, v. 3, n. 3, p. 149-155, 10 dez.
6 Disponível aqui.
7 Disponível aqui.
8 Lei da Boate Kiss (lei 13.425, de 30 de março de 2017), Lei das Barragens (lei 14.066, de 30 de setembro de 2020, que altera a lei 12.334, de 20 de setembro de 2010) e Fundação Renova, instituída por Termo de Ajustamento de Conduta envolvendo diversas instituições públicas e privadas (disponível aqui).
9 A respeito da formulação Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, consulte-se: CARVALHO, Délton Winter de. As mudanças climáticas e a formação do direito dos desastres. Revista NEJ - Eletrônica, Vol. 18 - n. 3 - p. 397-415 / set-dez 2013. Sobre os sistemas de proteção e defesa civil na Europa e nos Estados Unidos, confira-se: DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. A governança dos desastres ambientais no direito comparado norte-americano e europeu. RIL Brasília a. 52 n. 208 out./dez. 2015 p. 303-319.
10 Ver também o art. 3º, I, da lei 13.874/19 e o art. 4º da lei 11.598/07, incluído pela lei 12.874/19.
11 Lei 12.874/19 (denominada "Declaração de Direitos da Liberdade Econômica") e lei 14.195/21, frutos da conversão das MP 881/19 e 1.040/21, respectivamente.
12 De acordo com o art. 37, § 6º, da Constituição, o Estado responde pelos danos causados por seus agentes.
13 Na França, por decisão do Conselho de Estado proferida em março de 2004, foi reconhecida a responsabilidade do Estado por descumprimento dos deveres de prevenção e precaução em relação aos trabalhadores vítimas de poeira de amianto (VARELLA, Marcelo Dias (Coord.). Responsabilidade e sociedade do risco/Relatório público considerações gerais, p. 123).