2021: uma odisseia no espaço da responsabilidade civil
quinta-feira, 16 de dezembro de 2021
Atualizado às 08:02
Lasciate ogni speranza voi ch'entrate (Deixai qualquer esperança, vós que entrais). O conhecido verso que se encontra na porta de entrada para o Inferno, a primeira parte de La Divina Commedia, obra prima de Dante Alighieri, é de ser lembrado quando se trata de responsabilidade civil. À primeira vista parece haver exagero nesta menção, visto ser o tema de há muito legislado e debatido pela doutrina e jurisprudência. Contudo, talvez só agora, no curso do século XXI, seja possível se vislumbrar melhor a dimensão, a dinamicidade, complexidade, enfim a dificuldade da matéria que já alcança contornos inimagináveis, as quais desafiam de modo constante, se não permanente, tudo que já se construiu e/ou assentou sobre a questão. Este último termo é bastante adequado quando se trata de responsabilização civil, que requer exame e suscita discussão, não raro diante de situações cotidianas.
As Migalhas de Responsabilidade Civil publicadas pelo IBERC durante o ano de 2021 são prova cabal do grau de amplitude e diversidade temática compreendido no âmbito da responsabilização civil. Uma incursão, ainda que breve, no que foi escrito naquele período revela a multiplicidade das questões existentes e a riqueza dos debates já postos, e permite identificar os diferentes caminhos que estão sendo trilhados e os que já se anunciam.
Registre-se, de início, que o ano de 2021 foi marcado, mais do que o anterior, pela pandemia de Covid-19, fato que por si só constitui um cenário de riscos e instabilidades, quando não de paralisação total ou parcial, de todas as relações sociais. A estagnação não foi absoluta graças à verdadeira "transferência" de múltiplas atividades para a internet, como se a sociedade tivesse se "transferido" para a internet, dando curso a uma intensa vida virtual, a qual certamente não retornará, pelo menos em parte, à modalidade presencial. Dezenas de Migalhas foram escritas nesse período, dentre as quais algumas serão destacadas em razão dos temas abordados, por balizarem os tortuosos e intrincados rumos da questão da responsabilidade civil.
É indispensável lembrar que as regras básicas, de caráter geral, sobre responsabilidade civil se encontram no Código Civil, que tem origem em um projeto aprovado em meados do século XX, por conseguinte elaborado por e para uma sociedade bastante distinta da existente no século XXI. Não obstante o processo de atualização a que o citado projeto foi submetido e de o Código ter sido promulgado quando já vigente a Constituição da República de 1988, os fatos atropelaram o Direito. A estonteante velocidade dos avanços tecnológicos e médico-científicos, aliados às alterações das relações sociais daí resultantes, acabam por tornar o regime de responsabilização constante do Código Civil insuficiente para solucionar os problemas que se apresentam.
Nesse sentido, observe-se que o franco acolhimento da possibilidade de reparação do dano exclusivamente moral pelo Código Civil de 2002 (art. 186 c/c 927), na esteira do preconizado pela Constituição da República (art. 5?, V), teve ares de novidade à época. Desde então se desenrolam debates especialmente sobre a liquidação desse tipo de dano.1 O próprio debate sobre o conceito de dano moral, que parecia superado, se renova especialmente em decorrência dos diversificados meios de comunicação via internet, que tem alcance mundial em poucos minutos, se não segundos. Mais complexa se torna em tais casos a quantificação dos danos.
Além das situações danosas virtuais, as aceleradas conquistas da ciência médica, especialmente as propiciadas pela tecnologia, se por um lado salvam e prolongam a vida humana em casos jamais pensados, por outro geram intrincadas situações jurídicas. Servem de exemplo as interferências em processos de nascer e morrer, durante séculos tidos como naturais, bem como a alteração de características biológicas determinantes da vinculação sexo/gênero. As técnicas de reprodução assistida, os transplantes e os procedimentos para a denominada "mudança de sexo", que se tornaram práticas cotidianas, em sua quase totalidade são carentes de regulamentação legal adequada. Assim sendo, a responsabilização pelos danos decorrentes de tais procedimentos médicos se submetem, em regra, à normativa civil a qual, não raro, não contempla de modo satisfatório sua reparação, ou melhor, sua composição, visto serem irreparáveis em muitos casos.
Não bastasse a omissão legislativa, que de todo dificulta o tratamento jurídico da matéria, constata-se que muitas das citadas situações jurídicas apresentam natureza dúplice,2 na medida em que envolvem, há um só tempo, interesses pessoais e patrimoniais. Observe-se que os procedimentos citados implicam forte interferência no corpo humano, a exigir o consentimento do paciente, muitas vezes tratada em meio à pactuação de honorários. O surgimento de embriões excedentários, fruto da técnica de fertilização in vitro, ensejou contratos de "guarda" de embriões humanos, cuja natureza jurídica está longe de ser pacificada. O descuido na guarda desses embriões, do qual resulte sua morte, é um dano moral ou configura, especialmente para os que os equiparam a pessoa, uma lesão equiparável a um homicídio culposo?
Nessa linha as indagações se acumulam e atingem as pesquisas que envolvem seres humanos, as quais somente podem ser realizadas se houver o consentimento livre e esclarecido dos participantes, que é uma autorização dada ao pesquisador responsável para que possa aplicar uma terapia não consagrada pela classe médica. No caso da pesquisa de novos fármacos se incluem as vacinas, que grande polêmica suscitam em tempos de pandemia. Quem deve responder pelos danos causados pelo uso experimental da vacina contra a Covid-19? O Estado ou os fabricantes da vacina? Quem responde pela prescrição off label3 de medicamentos contra a Covid-19? O Estado que determina seu uso e os distribui ou o médico que os prescreve? Esses danos relativos à COVID-19 são individuais ou coletivos?
Algumas situações jurídicas familiares têm ensejado discussões quanto à configuração ou não de um dano passível de ressarcimento, das quais são bons exemplos o descumprimento dos deveres conjugais e do pais com os filhos. Tais controvérsias, que não são novas, se somam às várias outras que persistem e/ou se renovam ao longo dos anos.
As novidades no que tange à responsabilização civil se encontram nas interrelações da internet com a inteligência artificial e a robótica, das quais resultam artefatos que se integram de modo quase imperceptível ao dia a dia, geralmente em caráter permanente. Embora não sejam em princípio perigosos, esses artefatos podem causar danos patrimoniais ou extrapatrimoniais. Observe-se, contudo, que o tradicional fato da coisa, sobre o qual muito já se discutiu, ganha novos contornos, visto que além de interagirem com os humanos, algumas máquinas têm certa margem da autonomia, como se verifica com a tecnologia machine learning, vinculada à inteligência artificial, que possibilita os sistemas "aprenderem" com dados a tomar certas decisões com um mínimo de intervenção humana.4
Temas como mudança climática, doação de gametas humanos, violação dos deveres conjugais, termo de consentimento e responsabilidade médica, liberdade de expressão, classificação de riscos na inteligência artificial e na robótica, prática de stalking, Estado e danos sociais, adoção, cirurgias robóticas e assédio moral digital, dentre outros de igual importância, que foram tratados pelas Migalhas demonstram bem as múltiplas faces da responsabilidade civil.
Parece evidente que as regras existentes, pelos motivos acima expostos, exigirão constante esforço interpretativo da doutrina e dos tribunais para atender tamanha diversidade de questões que não apenas abalam diversos entendimentos assentados, como envolvem situações jurídica inéditas, em especial no que respeita à "relação" homem-máquina.
Algumas constatações podem ser feitas no limiar da segunda década do século XXI em relação à reparação de danos, a saber: a) paralelamente às situações desconhecidas no mundo jurídico, há permanência de antigos debates, ainda que sob nova roupagem; b) a superação da tradicional distinção entre situações jurídicas patrimoniais e existenciais perde sua rigidez, com importantes repercussões em todo o campo obrigacional; c) a franca emergência jurídica de situações não novas, como as técnicas de reprodução assistida, presentes no Brasil dede a década de 1980; d) a célere incorporação à sociedade dos avanços tecnológicos, ao ponto de ser criada uma "vida digital".
Deve-se considerar que todos esses acontecimentos têm como pano de fundo o complexo fenômeno da globalização, que caracteriza as sociedades contemporâneas e apresenta contradições e questionamentos de diferentes ordens. Como esclarece Fermin Roland Schramm, há nessas circunstâncias novos deveres requeridos pelo "sistema-mundo", mais integrado e mais diferenciado, e em rápida transformação e crescente complexidade. Neste contexto de novos deveres requeridos pelo "sistema-mundo", há a consagração de novos valores que provocam tensões tanto conceituais como factuais próprias de um mundo globalizado e interconectado.5
Indispensável é ressaltar que diante da verificação de valores peculiares à globalização e do avassalador crescimento da tecnologia, mais do que nunca, é preciso que se cumpram os princípios constitucionais voltados para a proteção da pessoa humana, especialmente quando se trata de responsabilização civil.
*Heloisa Helena Barboza é professora Titular de Direito Civil e Diretora da Faculdade de Direito da UERJ.
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1 Sobre o assunto ver TEPEDINO, Gustavo et al. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República, 2 ed. Rio de Janeiro: Renovar, v. 1, p. 339-342.
2 TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson. Situações jurídica dúplices: continuando o debate, controvérsias sobre a nebulosa fronteira entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In Contratos, Família e Sucessões: diálogos interdisciplinares. Coordenação: Ana Carolina Brochado Teixeira e Renata de Lima Rodrigues. Foco: São Paulo, 2019.
3 Medicação off label é indicação do profissional assistente que diverge do que consta na bula. Ver aqui. Acesso: 13/12/2021.
4 LUDERMIR, Teresa Bernarda. Inteligência Artificial e Aprendizado de Máquina: estado atual e tendências. Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo. Estudos Avançados, v.35, n.101, 2021. Disponível aqui. Acesso: 02.12.2021.
5 SCHRAMM, Fermin Roland. ¿Existe el deber ciudadano de participar en la investigación? In: Medwave, año XII, nº 5, Junio, 2012, passim. Disponível aqui. Acesso em: 02.12.2021.