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Liberdade de expressão, agentes públicos e bullshits - Reflexões sobre as manifestações de Bolsonaro

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Atualizado às 10:45

I - Contextualizando o tema

Brasil, século XXI, ano 21. Vivemos em um país periférico e ainda distante de cumprir as promessas da modernidade. Nesse ambiente, as informações circulam em quantidade e velocidade jamais experimentadas, o que não significa qualidade, obviamente. A amplificação de opiniões proporcionada pelo mundo virtual descortinou a pós-verdade e trouxe consigo a falta de compromisso com os fatos objetivos: fake News e bullshits duelam com a liberdade de expressão promovendo muitas indagações: propagar mentiras é liberdade de expressão? Qual a relação e a tensão entre liberdade de expressão e bullshits?

No texto a seguir, sem pretensão alguma de esgotar o objeto, jogaremos luzes sobre um tema ainda pouco trabalhado no Brasil, isto é, existe um direito de falar besteiras de forma irresponsável? 

II- Significado e alcance da liberdade de expressão

Calorosos debates acerca da liberdade de expressão estão na agenda das democracias ao redor do mundo, notadamente pelo retorno de ideologias radicais que ganharam notoriedade no breve século XX, para usar uma feliz expressão de Eric Hobsbawm1. Há quem afirma que a liberdade de expressão não deve tão-somente proteger a difusão de argumentos simpáticos e comuns a todos, mas também aqueles com as quais nós não concordamos. Nesse sentido, o remédio contra as más ideias deve ser a divulgação de boas ideias e a promoção do debate, não da censura. Do outro lado, há os que pensam de forma diversa e sustentam que as manifestações de intolerância não devem ser admitidas, porque violam princípios fundamentais de convivência social, como o da dignidade humana2.

Ronald Dworkin formula duas justificações para a liberdade de expressão: uma instrumental e outra constitutiva. A primeira sustenta que a mais ampla liberdade de expressão permite a melhor escolha política, protegendo o povo contra a tirania e inibindo a corrupção. Já a constitutiva, por seu turno, apoia-se na ideia de que o Estado deve tratar seus cidadãos como agentes morais individuais e responsáveis, que devem poder ter acesso a qualquer tipo de informação ou de opinião, para, assim, tomar suas decisões. Nesse sentido diz o autor que "o Estado insulta seus cidadãos e nega a eles a sua responsabilidade moral, quando decreta que não se pode confiar neles para ouvir opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções perigosas ou ofensivas"3.

Portanto, a liberdade de expressão é direito preferencial no Estado constitucional, oxigenando a democracia e constituindo subjetividades dos sujeitos constitucionais. 

III- Existe um direito de falar besteira ou bullshits?

Bullshits são manifestações absurdas e insensatas para a maioria das pessoas. A intenção do bullshiter é convencer o seu público sobre a veracidade das irracionalidades que dissemina. Dessa forma, o que determina o potencial avassalador de uma dessas inverdades é o grau de atenção a ela dado, o que se relaciona com a forma com que o locutor é encarado socialmente.

Outra singularidade das bullshits é a de que elas podem ser demasiadamente danosas se veiculadas com a intenção subjacente de fazer ecoar um discurso político. Nesse caso, elas não são apenas estapafúrdias, mas, pelo contrário, possuem um objetivo claro: chamar atenção, engajar, angariar seguidores, obter votos, etc4.

As bullshits, em regra, não estão protegidas pela liberdade de expressão, tendo em vista dois elementos principais: (i) o disseminador de bullshits (bullshiter) pouco se importa com a verdade dos fatos e tem a intenção de persuadir o seu público5; (ii) as bullshits são tão absurdas e disparatas para seus ouvintes que, rapidamente, chamam atenção.

A título de exemplo, pouco interessaria uma reportagem produzida por renomados físicos explicando que a gravidade existe, pois é um fenômeno científico conhecido e aceito. Em contrapartida, maior seria a relevância de uma reportagem que hipoteticamente comprovasse que a teoria da gravidade é uma falácia. Desse modo, o que define a abrangência de uma bullshit é o grau de absurdidade por ela veiculado6.

Nas últimas semanas, o presidente Bolsonaro compartilhou em suas redes sociais uma live, na qual fazia relação entre as vacinas contra a Covid-19 e o desenvolvimento de Aids. Nos parece claro exemplo de bullshit. O vídeo foi retirado do ar pelo Facebook e pelo Instagram, que alegaram que suas políticas não admitem afirmações de que as vacinas contra a Covid-19 podem causar mortes ou danos graves às pessoas.

Contudo, mesmo com a tentativa da mídia e dos especialistas em provar a veracidade dos fatos - ou seja, de que as vacinas contra a Covid-19 não causam Aids -, é inegável a relevância que o presidente possui em determinada parcela da sociedade. A problemática que se coloca, então, é a da abrangência da bullshit propagada por Bolsonaro e se ela tem e qual seria seu potencial devastador.

V- A zona cinzenta entre liberdade de expressão, responsabilidade civil e bullshits

São considerados agentes públicos "todas as pessoas que integram os Poderes da República, os servidores administrativos, os agentes sem vínculo formal de trabalho, os colaboradores etc. - em resumo, todos aqueles que, de alguma forma, se encontram juridicamente vinculados ao Estado."7

O atual Presidente argumenta que as bullshits por ele propagadas encontram-se no espectro de sua liberdade de expressão, como se esta fosse mais que preferencial, quase absoluta.

Bullshits podem causar danos efetivos a terceiros, principalmente em se tratando de discursos proferidos por figuras públicas de alcance nacional, é razoável concluir que deve ocorrer a responsabilização desses agentes públicos.

Nesse ínterim, em matéria de RC, é necessário considerar que o que recebe hoje a denominação de "RC do Estado" e "RC do agente público" é resultado de uma evolução que no marco inicial tipificava apenas a responsabilidade pessoal do agente. No século XX a RC do Estado caminhou para um cenário de maior ampliação, com vistas a fornecer maiores garantias aos indivíduos que viessem a sofrer quaisquer tipos de danos causados pela Administração Pública.

Foi nesse contexto que houve um fortalecimento do instituto da RC - principalmente no que tange à consolidação da responsabilidade civil objetiva - , o que pôde ser observado na adoção da chamada teoria do risco administrativo. Essa teoria - fortemente influenciada por tal movimento de valorização da pessoa humana - introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a RC objetiva do Estado, isto é, independente de culpa, como forma de responsabilizar as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos em caso de danos a terceiros8.

Destarte, é possível afirmar que o ordenamento jurídico brasileiro passou a trazer tanto na CF/88, quanto no CC de 2002, a lógica da teoria do risco administrativo com o fito de promover a valorização da pessoa humana por meio de uma responsabilização objetiva da Administração Pública.

Em outras palavras, além da responsabilidade objetiva do Estado, foi inaugurada, no ordenamento jurídico brasileiro, a responsabilidade subjetiva do agente público por danos causados a terceiros. Em ambas as hipóteses, é imperioso que estejam presentes, simultaneamente, todos os elementos indispensáveis à configuração da responsabilidade civil: o ato ilícito, o dano e o nexo de causalidade (somados à culpa lato sensu do agente, nos casos de responsabilidade subjetiva do agente público).

Ao analisar a responsabilização desses agentes de maneira ampla, tem-se que, de suas condutas no exercício do cargo, emprego ou função, decorre RC, penal e administrativa9. Em se tratando, especificamente, de agentes políticos, também ocorre a aplicação da chamada responsabilidade política.

Analisando-se especificamente a RC dos agentes públicos, aplica-se o disposto no artigo 186 do Código Civil de 2002: "Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito."

Em outras palavras, para ocorrer a responsabilização dos agentes públicos no caso das bullshits, por exemplo, é imprescindível que haja, enquanto pressupostos inafastáveis da RC, comprovação de que há nexo de causalidade entre o ato ilícito e o dano, bem como a culpa lato sensu desse agente. No entanto, uma das principais dificuldades dessa zona cinzenta se encontra no momento em que se tenta estabelecer tal nexo de causalidade, o que traz o questionamento: como comprovar que aquela determinada conduta do agente público promoveu, efetivamente, a ocorrência do dano?

No caso da propagação de bullshits, é necessário demonstrar que aquele determinado pronunciamento do agente público foi responsável por causar um dano efetivo a terceiros, estabelecendo, assim, um nexo entre a conduta lesiva, culposa e o dano causado ao indivíduo. Trazendo essa questão para o caso concreto, como a polêmica live do Presidente, havendo o ato ilícito, o dano e a conduta culposa, como comprovar o nexo de causalidade entre esses elementos? Em outras palavras, até que ponto a contaminação da população decorre da conduta ilícita desse agente público? De fato, é aqui que se encontra a parte mais complexa da RC do agente público em caso de bullshits. Pela dificuldade em se estabelecer uma cadeia causal, muitas vezes o resultado é a não responsabilização desses agentes, não somente na esfera cível, como também nas esferas administrativa, penal e, até mesmo, política, podendo causar danos irreparáveis a um grande número de pessoas.

Ainda, é fundamental comentar a respeito do direito de regresso por parte da Administração Pública em relação aos agentes públicos que cometem ato ilícito em caso de culpa e dolo. No texto constitucional e no Código Civil é trazida não somente a responsabilidade objetiva do Estado, como também a possibilidade de direito de regresso deste em relação ao agente público causador do dano.

Entretanto, a legitimidade do agente público para compor o polo passivo da ação indenizatória também já foi tema controvertido, cujo entendimento foi pacificado pelo STF por meio do RE 1.027.633/SP. Em muitos casos, o cidadão, ao ajuizar ação indenizatória, colocava o Estado e o agente público responsável pela ocorrência do dano no polo passivo da demanda.

Contudo, foi firmado pelo STF o entendimento de que "A teor do disposto no art. 37, § 6º, da Constituição Federal, a ação por danos causados por agente público deve ser ajuizada contra o Estado ou a pessoa jurídica de direito privado prestadora de serviço público, sendo parte ilegítima para a ação o autor do ato, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Em outras palavras, o procedimento adequado destinado a esse tipo de situação não admite a colocação do agente público no polo passivo da demanda. Tão somente o Estado, por meio de ação de regresso, deve alegar culpa ou dolo por parte desse agente. A tese firmada encontra guarida na previsão do artigo 37, §6º da CF.

Por fim, vale lembrar que as imunidades conferidas ao Presidente da República pela Constituição (Art.86), acabam por se transformar em irresponsabilidades, não por outro motivo que a doutrina e a jurisprudência brasileiras adotaram por muito tempo o termo "irresponsabilidade relativa", escancarando o desvio de um instituto cujo propósito era garantir uma boa governança. As imunidades protegem o cargo e a instituição, não a pessoa. Deste modo, as irresponsabilidades verbais do Presidente Bolsonaro estão sujeitas a subsunção nas cláusulas genéricas do art.85, da CF, em conjunto com a lei 1079/50, e o art.52, também da CF/88, podendo, em nossa opinião, resultar no impedimento do mandato para o qual foi eleito (impeachment) por propagações de bullshits que tenham como resultado a violação aos direitos à saúde, á vida e à dignidade da pessoa humana.  

Conclusão

Cientes da dificuldade e do pouco tratamento jurídico do tema, concluímos que as bullshits possuem considerável efeito negativo na sociedade e não encontram proteção nas abordagens instrumental e constitutiva da liberdade de expressão. Se utilizadas em contexto de risco à saúde pública para distorcer informações cientificamente comprovadas, causando danos efetivos às pessoas, nos parece hipótese clara de responsabilidade civil do agente público aqui tratado, que parece lançar mão de forma abusiva das imunidades materiais, contando com a cumplicidade do Poder Legislativo que não tem por tradição dar andamento ao processo de impedimento previsto na Constituição.

*Bruno Stigert é professor Adjunto da Faculdade de Direito da UFJF. Coordenador da Clínica de Direitos Fundamentais e Transparência da UFJF. Mestre em Direito Público pela UERJ e Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela UFF. Associado IBERC.

**Julia Oliveira Pêssoa é graduanda em Direito pela UFJF. Bolsista da Clínica de Direitos Fundamentais e Transparência.

***Marina Coimbra de Azevedo Quelhas é graduanda em Direito pela UFJF e monitora da disciplina Teoria da Responsabilidade Civil e voluntária no NEAPID, sob orientação dos associados do IBERC Raquel Bellini e Sérgio Negri.

__________

1 O "breve século XX" começa em 1914, com a Primeira Guerra Mundial, sinalizando declínio da civilização capitalista, liberal e burguesa, ancorada no progresso técnico e científico, certos do chamado eurocentrismo. O século XX terminaria em 1991, com a queda do socialismo real no Leste Europeu e a consagração do capitalismo. Inaugura-se um novo século que surfa na onda da globalização.

2 STIGERT, Bruno. Dicionário de Filosofia política. Coord. BARRETO, Vicente de Paulo. São Leopoldo, RS: Ed. Unisinos, 2010, págs. 314 a 317.

3 DWORKIN, Ronald. Freedom's Law: The moral Reading of the American Constitution. Cambridge: Havard University Press, 1996.

4 Sobre o tema do recrutamento de extremistas, vale a leitura do texto de Rachel E. Hoffman (Determining Who is Vulnerable to Radicalization and Recruitment). Segundo ela, os indivíduos vulneráveis ao extremismo não são necessariamente ignorantes ou ingênuos. São pessoas motivas por redes sociais (família, amigos ou comunidade global) e que se sentem isoladas no interior da sociedade em que vivem. Anseiam por propósito e empolgação. São sujeitos atravessando conflitos de identidades, buscando reputação ou satisfazer uma compulsão por ação. Muitos são escolarizados, porém subutilizados, nutrindo uma falsa noção de segregados por seu status social. Sentem-se maltratados por seus pares e pelo governo.

5 MARMELSTEIN, George. O negacionismo pandêmico mata. Jota - Opinião e Análise. 22 mar. 2021. Disponível aqui. Acesso em 04 nov. 2021. Para suas reflexões, Marmelstein usa FRANKFURT, Harry G. Sobre Falar Merda. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2005.

6 CNN BRASIL. Facebook e Instagram excluem live em que Bolsonaro relaciona vacina contra Covid à Aids. 25 out. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 03 nov. 2021.

7 TEPEDINO, Gustavo; TERRA, Aline Valverde; GUEDES, Gisela Sampaio da Cruz. Fundamentos do direito civil: responsabilidade civil - 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p.300

8 CF/88, Art. 37, §6º: "As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa". Foi nesse mesmo sentido que se deu a redação do artigo 43 do Código Civil de 2002: "Art. 43: As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo".

9 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo - 34. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.