Obrigação de proteção nos contratos de transporte de passageiros à luz do caso fortuito e força maior
terça-feira, 28 de setembro de 2021
Atualizado às 08:34
Por proêmio, como é cediço, com espeque no iter evolutivo da responsabilidade civil, o risco passou a ser uma opção e não um destino inelutável como outrora, engendrando relevantes repercussões na seara da responsabilidade objetiva do transportador, designadamente no que concerne à dinamização da função preventiva, atrelada à figura do prognóstico retrospectivo e do constante aperfeiçoamento do estado da técnica na ampla miríade de modalidades de transportes existentes.
Nesse contexto, deve-se analisar a denominada obrigação de proteção, que se autonomizou e cujo amplo espectro de situações possibilitará o exame das excludentes do transportador sob novos paradigmas. A evolução doutrinária e jurisprudencial trouxe novas perspectivas sobre o tema, na medida em que, conforme preconizam Geneviève Viney e Patrice Jourdain, houve mudança da ordem pública de direção para a ordem pública de proteção1.
Com efeito, com a proeminência do papel central exercido pela pessoa humana, a força normativa constitucional correlata, designadamente após a 2ª Guerra Mundial, e a consequente expansão do direito geral de personalidade, emergiu nova valoração para fins de reparação, o que permitiu divisar maior densidade dos princípios sociais nas denominadas relações jurídicas existenciais, quando cotejadas com as interempresariais ou de lucro, com as repercussões correlatas nos negócios jurídicos contratuais de transporte.
Deveras, não se olvida que o contrato de transporte traz ínsita em seu bojo a denominada obrigação de segurança, sob o manto da incolumidade físico-psíquica do passageiro e da custódia da carga transportada, até o local do destino contratado. No entanto, sob os influxos expansivos da obrigação de proteção, no contrato de transporte de pessoas, ao contrário do que se observa naquele destinado às coisas, resta inconcusso tratamento diferenciado, forte nas premissas de proeminência e de papel fundamental da pessoa humana como centro de interesses. Tal cenário transcende o dualismo clássico entre as denominadas obrigações de meio e resultado, evidenciando tratamento uniforme nas searas contratual e extracontratual, com obrigação de proteção autonomizada - o que ensejou repercussões na análise das excludentes do caso fortuito e da força maior.
Com destaque para a objetivação da responsabilidade do transportador e a dinamização da função preventiva - sobretudo à luz da premissa de que o risco não é um destino, mas uma opção -, jungida à autonomização da obrigação de proteção, tem-se a análise da obrigação como processo e relação jurídica complexa. A responsabilidade civil projeta deveres anexos e laterais derivados da cláusula geral de boa-fé, que independem da inexecução involuntária da obrigação de deslocamento pactuada ínsita ao transporte e impõem efetiva releitura das excludentes clássicas do caso fortuito e força maior.
Tal entendimento é robustecido pela inequívoca evolução do estado da técnica, sendo necessária a análise dos requisitos caracterizadores da força maior extrínseca - exterioridade, inevitabilidade, irresistibilidade e impossibilidade. A imprevisibilidade insere-se como índice de eficácia e de modulação da inevitabilidade, sob perspectiva estrutural e funcional, como standards que se amoldarão à luz do estado da arte da propalada evolução. Assim se poderá aferir o caráter controlável do evento, o que evidencia a existência de novos paradigmas no direito contemporâneo.
Impõe-se, mesmo à luz da prova da força maior extrínseca, a consecução dos deveres laterais de assistência e informação, à míngua da impossibilidade do deslocamento, sem prejuízo do dever de advertência por parte do organizador da viagem quando evidenciada probabilidade substancial de eclosão de evento bélico ou risco à segurança e incolumidade do viajante consumidor2.
Outra temática que, paradoxalmente, denota atualidade coaduna-se com o advento de novas epidemias, malgrado o notável desenvolvimento da ciência, sobretudo ao lograr êxito em debelar patologias, vírus e bactérias de extrema gravidade e contágio galopante ao longo da História. Trata-se de tema que aflora em grande magnitude, normalmente tendo gênese em mutação genética que, originalmente sendo apenas transmissível entre animais, engendra, em dado momento, sua transmissão entre pessoas, o que ocorreu com a SARS em 2002-2003 e a Covid-19, emergindo, então, amplo matiz de problemáticas. Conquanto o sequenciamento genético tenha apresentado celeridade inaudita no estado da arte da ciência, verdade é que, tratando-se de novas doenças, que desenvolvem síndromes respiratórias, a descoberta científica de vacina e sua implementação eficaz não foi imediata.
Muito embora a globalização e a massificação na utilização dos transportes e a célere mobilidade dos viajantes na denominada aldeia global evidenciem enormes vantagens no âmbito econômico e no das comunicações, expõem, por outro lado, o flanco da vulnerabilidade, de modo que o contágio se espraiou em nível mundial com celeridade galopante.
Os efeitos, no âmbito dos transportes, foram inconcussos, provocando o cancelamento de voos, cruzeiros marítimos, transportes terrestres em larga escala, a imposição de quarentena a viajantes, o retorno de cidadãos que se encontravam em outros países e, por via de consequência, problemáticas acerca da responsabilidade dos transportadores e organizadores de viagens e excursões. Desvela-se, assim, ampla miríade de situações, que atingiram e têm atingido os transportes em seus diversos modais. Quid juris, então?
Em relação aos cancelamentos derivados da epidemia, em se tratando de contrato de transporte de coisas, via de regra as cláusulas contratuais preveem a referida ocorrência no rol dos eventos que poderão caracterizar circunstâncias extraordinárias, aptas a eximir a consecução do transporte, aliadas às provas dos elementos da força maior extrínseca. Tal situação resta facilitada sobremaneira, com os atos de autoridade, fixadores do cancelamento do transporte e da utilização do local de destino por parte do transportador3.
No que concerne ao transporte de pessoas, prepondera o arquétipo da obrigação de proteção, de modo que a proeminência da cláusula geral de boa-fé e os deveres laterais correlatos imporão ao transportador e ao organizador de viagem amplas informações, assistência, advertência e proteção. Os deveres abrangem, e.g., na hipótese de eclosão da epidemia durante a viagem, o retorno ao país de origem, sem custos ao usuário consumidor.
Por seu turno, à luz da figura do duty to mitigate the loss, muito embora reconhecida a hipossuficiência técnica do consumidor, tratando-se de epidemia altamente contagiosa, este deverá colaborar com as autoridades e o transportador, fazendo jus à assistência e à hospedagem em padrões de razoabilidade. Afigura-se, em regra, inexigível indenização derivada do cancelamento imposto por autoridade pública e que teve por salvaguarda a incolumidade dos demais passageiros.
Deveras, uma vez comprovado o caráter extrínseco ao círculo de atividade de risco do transporte, a inevitabilidade, a irresistibilidade e a impossibilidade de controle, malgrado a adoção das devidas precauções, a prestação de deslocamento restará inviabilizada e inexigível. O cancelamento poderá inserir-se no rol da denominada força maior extrínseca ou das circunstâncias extraordinárias, aptas a legitimá-lo, subsistindo os deveres laterais e a obrigação de proteção, que poderão comportar indenização, per se, caso inadimplidos.
Em suma, faz-se mister a análise tópica dos requisitos da força maior extrínseca adrede descritos, em cotejo com a situação fática vinda a lume e que propicia sua funcionalização, sendo inconcebível uma concepção apriorística de força maior, já que a mera abstração, dando gênese a um raciocínio a contrario sensu, sem a análise in concreto, poderá ensejar erronias de monta, sobretudo à luz da intrincada complexidade que promana da causalidade múltipla.
Com efeito, a qualidade de força maior não se encontra vinculada ao evento. Ao revés, nenhum fato se encontra previamente excluído da referida categoria, sendo o mais correto admitir que a força maior, em verdade, é uma circunstância de fato revestida de uma qualificação jurídica. Conforme preconiza, com acuidade, ANTONMATTEI4, as qualificações caso fortuito ou força maior são tão somente etiquetas sobre as quais se afigura necessário inscrever: sem garantia e objeto de verificação.
A razoabilidade e a natureza categorial do transporte efetuado serão ulterior elemento relevante para análise do hermeneuta, premissa que se reputa fundamental diante dos riscos de fragmentação advindos do novo kairós (momento decisivo na sucessão do tempo) da pós-modernidade e era do conhecimento, no plexo dos novos desafios para o século XXI, de modo a fomentar a criação de grupos de casos, para o incremento da segurança jurídica e de providências preventivas ínsitas ao mister de risco do transportador, inclusive com a formação de fundos contributivos para eventos catastróficos em escala mundial, sem descurar do dever proativo de colaboração por parte do credor, com o escopo de mitigar os danos.
Malgrado evidenciado o inconcusso estágio de desenvolvimento da técnica, com visão restritiva crescente da excludente da força maior extrínseca, inexiste risco zero no porvir da humanidade, de modo que não se antevê o crepúsculo da excludente, mas necessidade protetiva mais intensa no âmbito das relações jurídicas existenciais, sem prejuízo do imponível incremento da função preventiva. Com efeito, observa-se o surgimento de novos riscos, e.g., patologias, epidemias resultantes de mutações genéticas, mudanças climáticas, como a realidade fática desnuda, pois, muito embora possamos gerir o risco e mitigar suas consequências, não há como eliminá-lo do devir humano.
Desse modo, a proeminência do escopo protetivo à pessoa humana reverbera na seara contratual, impondo-se efetiva clivagem em relação ao transporte de coisas, em que a obrigação de custódia, conquanto relevante, poderá adequar-se à teoria da assunção dos riscos e à autorregulamentação prévia de interesses, dinamizando a circulação econômica das riquezas, na medida em que a autonomia privada e os custos de transação denotarão maior proeminência, elementos ínsitos aos negócios jurídicos contratuais interempresariais e de lucro.
No referido âmbito categorial, impor-se-á, em regra, adstrição às cláusulas pactuadas, na esfera da autorregulamentação prévia de interesses, da probabilidade prospectiva e dos mecanismos de prevenção, com eventual cobertura de seguro autônomo ou complementar.
Por outro lado, poderão surgir circunstâncias extraordinárias, incontroláveis, inevitáveis e irresistíveis, de modo a impossibilitar o adimplemento da obrigação. No entanto, em situações desse jaez, o intérprete será mais rigoroso na verificação da assunção prévia dos riscos, sentido no qual, aliás, vem se firmando a tendência dos contratos internacionais de transporte de mercadorias, com influência inconcussa da common law.
Observe-se, porém, que, no sistema brasileiro, referidas regras coadunam-se, segundo a análise realizada, com os contratos interempresariais ou de lucro, mas não com os contratos existenciais, aos quais subjazem relações não paritárias, que imprescindem de regras protetivas direcionadas à parte vulnerável, de modo que os contratos de transporte de pessoas, em seus múltiplos modais, inserem-se no denominado arquétipo contratual existencial.
Trata-se de dicotomia útil e operacional, especialmente quanto à fixação de pontos fulcrais distintivos entre as categorias de contratos de transporte, devendo-se, no entanto, ressalvar o seu caráter não exaustivo diante da complexidade da realidade contratual contemporânea5.
Marco Fábio Morsello é professor associado do Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP (FDUSP). Doutor e livre docente em Direito Civil pela FDUSP. Juiz de Direito Substituto em Segundo Grau no TJ/SP. Membro Associado Titular do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC).
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1 Cf. VINEY, Geneviève; JOURDAIN, Patrice. In: GHESTIN, Jacques (dir.). Traité de droit civil, cit., v. 2: Les conditions de la responsabilité, p. 395.
2 Nesse sentido, MIRANDA, José Miguel de Sá. O contrato de viagem organizada. Coimbra: Almedina, 2000. p. 213; BRÜNING, Mirja. Probleme des Reisevertrags und Reiseversicherungsrechts: Frist des §651g BGB, Kündigung wegen Höheren Gewalt gemäß § 651j BGB, unerwartete schwere Erkrankung und gerichtliche Zuständigkeit. Hamburg: Dr. Kovac, 2008. p. 136 e 144, elucidando, sem prejuízo da relevância informativa de órgãos governamentais acerca dos riscos de guerra, que se impõe, outrossim, mencionado dever ao organizador, na seara do denominado Hinweispflicht (dever de advertência), sobretudo à luz de probabilidade substancial de conflito bélico.
3 Nesse sentido, BRUNNER, Christoph. Force majeure and hardship under general contract principles, cit., p. 206, destacando, via de regra, a inserção dos seguintes eventos: Acts of God; catástrofes e desastres naturais, como inundações, terremotos, maremotos, incêndios, secas e epidemias; desastres industriais ou causados por obra humana; guerras, ataques terroristas, roubos, explosão ou destruição de máquinas por terceiros (tortious acts); greves gerais e prolongadas nos meios de transporte ou setores de eletricidade; intervenções governamentais, como embargos, boicotes, restrições à importação ou exportação e restrições cambiais.
4 ANTONMATTEI, Paul Henri. Contribution a` l'e'tude de la force majeure. Paris: LGDJ, 1992 (Bibliothèque de Droit Privé, t. 220), p. 11.
5 Para aprofundamento do tema, consultar: MORSELLO, Marco Fábio. Novos paradigmas do caso fortuito e da força maior à luz dos contratos de transporte. São Paulo: Thomson Reuters, 2021.