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Empréstimo consignado, responsabilidade civil e seu enquadramento na Amostra-Grátis Sanção

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Atualizado às 13:24

O Poder Judiciário brasileiro tem sido destinatário, atualmente, de milhões de demandas decorrentes de empréstimos consignados em folha de aposentados/pensionados junto ao INSS.

A lei 10.820/2003 (art. 6º) passou a permitir que aposentados e pensionistas que recebem benefícios junto ao INSS autorizem descontos em folha de pagamento. Em 2004 (lei 10.953) o dispositivo legal foi alterado, incluindo a permissão para que "a instituição financeira na qual recebam seus benefícios retenha, para fins de amortização, valores referentes ao pagamento mensal de empréstimos, financiamentos e operações de arrendamento mercantil por ela concedidos". Por fim, com a Medida Provisória n. 681/2015 (convertida na lei 13.172/2015), abrangeu-se, no mesmo art. 6º, o rol de operações cujos débitos mensais poderiam ser admitidos em folha, incluindo-se, também, contratos de cartão de crédito.

O novo mecanismo tratado na referida lei pretendia trazer mais dignidade a uma coletividade de consumidores, com possibilidade de empréstimos consignados, que, consabidamente, por serem averbados em folha, causariam diminuição de riscos, e, portanto, de juros remuneratórios; mas, por outro lado, elasteceram problemas nas relações de consumo.

No afã de ampliar suas carteiras de negócios, bancos e seus funcionários, para os quais são diuturnamente exigidas metas na angariação de novos contratos, tem-se uma forte atuação das instituições financeiras no desejo de cada vez emprestar mais. Sem dúvida, a modalidade de empréstimo consignado é convidativa, mormente porque reduz o risco de inadimplência praticamente a zero.

Nesse ambiente, a experiência judiciária tem relatado uma série de novas questões que vem sendo objeto de milhares de demandas em todo o Brasil.

Num apanhado geral, podemos detectar conflitos entre aposentados/pensionistas e instituições bancárias nas seguintes linhas, dentre outras: a) fraudes oriundas de estelionato, com uso de documentos falseados de consumidores; b) assédio por empregados/colaboradores bancários induzindo idosos a celebrarem empréstimos; c) concessão de empréstimos em valores superiores ao realmente pretendidos; d) renovação (sem requerimento) de empréstimos anteriormente celebrados; e) concessão de empréstimo ao aposentado/pensionista sem qualquer anuência do consumidor.

Dentro do corte pretendido no presente ensaio, vamos nos ater à última hipótese, objeto de um número brutal de demandas hoje aforadas no Judiciário (mormente nos Juizados Especiais) e nos diversos PROCONs brasileiros. A reclamação é sempre a mesma: um valor é creditado na conta bancária do beneficiário do INSS, sem qualquer requerimento do consumidor, que só percebe o fato, não-raro, quando observa um desconto (parcela mensal) na sua aposentadoria ou pensão.

Há diversas nuances processuais que daí decorrem, no âmbito das demandas comumente propostas judicialmente, a exemplo de declaração de inexistência da relação contratual, imposição de tutela específica com imediata cessação dos descontos, imposição de danos morais.

Quanto ao valor efetivamente creditado ao consumidor, segundo construção clássica, no intuito de evitar o enriquecimento sem causa (boa-fé objetiva), deve ser devolvido à instituição bancária ou, pelo menos, abatido do valor da condenação judicial (obrigação de pagar quantia certa) em favor do consumidor.

No entanto, para além dessas medidas, tradicionais em nosso Direito, uma nova tese vem sendo encampada, cujo resultado é a desnecessidade de devolução, pelo consumidor, da quantia que lhe fora creditada em conta corrente, com base na regra do CDC que prevê a "amostra grátis".

Diz o CDC que "é vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentro outras práticas abusivas, enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço" (art. 39, III).

Entretanto, não obstante a clareza da regra, em se tratando de produto do tipo "dinheiro", é possível, sistematicamente, impor esse modelo de responsabilidade civil? Em outras palavras, crédito em conta bancária decorrente de empréstimo não solicitado, pode ser qualificado como "amostra grátis"? As vozes divergem.

Vários PROCONs entendem que a prática pode ser enquadrada no conceito de amostra grátis. A Comissão de Defesa do Consumidor da Câmara dos Deputados, recentemente (maio/2021), através do seu Presidente Deputado Celso Russomano (Republicanos/SP) chegou a emitir manifestação concordante com o enquadramento dos casos na tese da amostra grátis.

No entanto, a jurisprudência dos nossos tribunais caminha em direção oposta. Há decisões isoladas que reconhecem o crédito indevido como amostra grátis, como algumas extraídas da 22ª Câmara de Direito Privado do TJSP. Mas, é entendimento isolado frente às uníssonas vozes das demais Câmaras do TJ/SP, tal qual dos tribunais brasileiros em geral).

Num apanhado geral, o fundamento para desconsiderar o crédito indevido como amostra grátis é a vedação do enriquecimento sem causa. Por certo, o art. 876 do Código Civil determina que "todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir". Esse um dos preceitos legais que veda o enriquecimento sem causa. Mas, tal dispositivo deve ser lido sistematicamente.

Se aquele que remete um produto não solicitado pelo consumidor o faz sponte propria, dever de restituição não há, porque há regra legal que legitima a absorção da coisa ao patrimônio do destinatário. Situação muito semelhante se dá com a doação. O doador, mesmo nada devendo ao donatário, se lhe doa um bem, não pode, em princípio, pleitear restituição qualquer.

Um outro argumento desfavorável à caracterização do dinheiro como amostra grátis decorre do decreto 7.212/2010, que faz menção às "as amostras de produtos para distribuição gratuita, de diminuto ou nenhum valor comercial, assim considerados os fragmentos ou partes de qualquer mercadoria, em quantidade estritamente necessária a dar a conhecer a sua natureza, espécie e qualidade" (art. 54, III).

Com isso, construiu-se a interpretação que amostra grátis é aquilo que não tem valor patrimonial ou que tem valor irrisório. Nesse sentido, a razão de ser da amostra grátis é a publicidade do produto/serviço, a fim que, uma vez experimentado, sem ônus, o consumidor crie desejo pelo tipo de produto/serviço. Nessa linha de pensamento, a empresa que fornece amostra grátis, assim o faz para atrair o mercado de consumo à aquisição futura e onerosa daquele produto/serviço.

Necessário anotar que o decreto 7.212/2010 compõe a legislação tributária do IPI, cujos pressupostos de caracterização de amostra grátis não servem para o Direito Civil em geral e, muito menos, para a responsabilidade civil. Especificamente, o mencionado Decreto enquadra a amostra grátis no plano da isenção tributária. O mesmo ocorre nas leis estaduais concernentes ao ICMS.

Por isso, a legislação não tributa IPI/ICMS para esse tipo de produto industrializado/comercializado por não ter ele valor comercial relevante. Ainda, para fins tributários, a amostra grátis se caracteriza por ser fragmento de mercadoria estritamente necessária para dar conhecimento da natureza, espécie e qualidade do produto (art. 54, III, b). Mais ainda, a isenção tributária está condicionada à indicação "amostra grátis" no envoltório do produto, de modo destacado (art. 54, III, a), além de não exceder 20% do conteúdo da menor embalagem praticada comercialmente (art. 54, III, b).

De fato, a razão da isenção é o diminuto valor ou ausência de valor comercial, algo que é lógico em se tratando de política de renúncia (isenção) tributária. E, por essas razões, tais condições são estabelecidas dentro de uma lógica estritamente tributária.

Conclusivamente, se uma indústria remete a um consumidor, sem solicitação qualquer, um liquidificador de R$ 50,00, tal produto será considerado amostra grátis (civilmente), mas não será amostra grátis para fins de IPI ou ICMS. É por isso que a qualificação de amostra grátis para fins tributários não se presta ao Direito Civil.

Alocar a amostra grátis, numa relação de consumo, apenas no universo de produtos/serviços sem valor ou de diminuto valor, portanto, não possui (civilmente) qualquer guarida legal.

Porém, podemos ir ainda mais longe na linha argumentativa para distinguir dois campos de qualificação da amostra grátis.

O primeiro campo seria a amostra grátis simplesmente como produto/serviço. É a revista dada ao consumidor que apressadamente percorre o saguão do aeroporto; é o cafezinho sugestionado nas proximidades da prateleira do supermercado; é a pequena caixa de medicamento concedida pelo médico; é o brinde que, como cliente, recebemos em casa.

Esses materiais têm um condão de cordialidade/agradecimento no intuito de estreitar/manter os laços cliente-fornecedor. Ou, ainda, servem como material tipicamente publicitário.

Mas, num segundo campo, temos o que podemos nominar de amostra grátis-sanção. Observando detidamente o CDC, percebemos que ao lado de uma obrigação primária (que já impõe ao fornecedor um não-fazer - vedação de remessa de produto não solicitado), reconhecida como ilícito, o mesmo art. 39, em seu parágrafo único, traz a obrigação secundária (responsabilidade civil), que por si só decreta em desfavor do fornecedor o perdimento do bem remetido ao consumidor.

Eis a letra da lei: "Os serviços prestados e os produtos remetidos ou entregues ao consumidor, na hipótese prevista no inciso III, equiparam-se às amostras grátis, inexistindo obrigação de pagamento".

Necessário repisar que a norma do parágrafo único referido não traz à colação mero direito do consumidor; para além disso, é regra claramente punitiva, porquanto vem em complemento sancionador à violação de um direito, consistente numa obrigação de não-fazer imposta aos fornecedores em geral.

Destarte, a lei não apenas diz que é amostra grátis aquilo  que se entrega ao consumidor sem solicitação deste; mais incisivamente, diz que se o fornecedor desobedece a vedação (art. 39, III) de remeter ao consumidor aquilo que não fora requerido,  haverá perdimento da coisa em favor do destinatário. Conclusivamente, o parágrafo único é regra típica de responsabilidade civil.

Assim, é possível concluir que ao lado da amostra grátis comumente praticada no mercado de consumo (revistas, medicamentos etc), temos uma outra classe de amostra-grátis (amostra grátis-sanção), que, por ser uma categoria diferente, não está condicionada àqueles enfoques tradicionais (diminuto/nulo valor, pequena amostragem, destinação publicitária). A leitura do parágrafo único do art. 39 do CDC não estabelece limites de valor, quantidade ou qualidade.

Outro dado importante, que reforça a tese da amostra grátis, decorre de um contexto socialmente vivido. É necessário salientar que as concessões não requeridas de empréstimo consignado para aposentados/pensionistas não são casos isolados ou meros equívocos setoriais bancários.

Trata-se de uma conduta bancária diuturnamente reiterada em verdadeiro abuso de poder econômico. Não por outra razão que há uma verdadeira enxurrada de demandas no Judiciário Brasileiro. Segundo a Secretaria Nacional do Consumidor, através do relatório "Consumidor em Números 2020", entre as demandas judiciais recordistas encontramos as decorrentes do setor bancário (só perdendo para setor de telecomunicações).

No geral, esses empréstimos, já que concedidos a aposentados/pensionistas de baixa renda, são realizados em estado de proveito da fraqueza dessa classe de consumidores, normalmente idosos, menos letrados (quiçá, analfabetos), o que por si só já registraria ofensa a um outro dispositivo do CDC: "Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas: IV - prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços".

A tese da amostra grátis-sanção pode, contudo, confrontar com a ideia de contrato tácito, sobretudo se o consumidor, mesmo não tendo solicitado o empréstimo, uma vez o experimentando em sua conta bancária, utilizá-lo. Poderia, inclusive, somar-se ao contrato tácito o instituto da supressio/surrectio, cogitando-se de assumir-se o consumidor como contratante tendo em vista o decurso do tempo.

Assim, a utilização, pelo consumidor, do crédito disponibilizado não solicitado poderia, mesmo não havendo contrato escrito, sugestionar aceitação (embora dessa suposta aceitação não teríamos como impingir ao consumidor a concordância com cláusulas contratuais desconhecidas, a exemplo dos juros remuneratórios).

Contudo, parece-nos que, no quadrante normativo brasileiro, a ideia de contrato tácito deve ser expurgada com base em inexigibilidade de conduta diversa. Ora, se o CDC afirma que o produto/serviço entregue ao consumidor sem solicitação é considerado amostra grátis, assim o será independentemente do destino dado pelo consumidor. Como exigir do consumidor alguma conduta que desmonte a ideia de contrato tácito?

A incorporação do produto/serviço ao patrimônio do consumidor (em decorrência do perdimento imediato do bem remetido pelo fornecedor, sem requerimento prévio) não está sujeita a qualquer condição ou conduta posterior do adquirente. E, consequentemente, não é fato posterior (utilização do capital ou, inversamente, reclamação administrativa/judicial) que irá qualificar a amostra grátis como tal.

*Iure Pedroza Menezes é mestre (FDUL) e doutorando (UAL) em Direito. Professor da UNEB e da Escola Judicial de Pernambuco. Juiz de Direito. Membro do IBERC. Membro-fundador da ANNEP. Membro do IBDP. Membro da ABDPro.

**Valedene Leite Pedone é especialista em Direito Processual Civil. Advogada. Assessora Jurídica do PROCON do Município de Petrolina/PE. Membro do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor.

Referências

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão vai pedir punição de bancos acusados de fraude em crédito consignado. Disponível aqui. Acesso em 18.ago.2021.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA. Disponível aqui. Acesso em 17.ago.2021.