Informação, responsabilidade, abertura do mercado de combustíveis e a retórica da tutela do consumidor contra o próprio consumidor
quinta-feira, 12 de agosto de 2021
Atualizado às 08:24
Há em curso no mercado de combustíveis do Brasil pelo menos dois movimentos de abertura do setor: i) o abandono da exclusividade da comercialização nos estabelecimentos dos postos de combustíveis, abrindo-se espaço para o delivery; e ii) o fim da tutela regulatória do modelo de bandeiramento, que impõe ao revendedor que ostente a marca de uma distribuidora ("bandeira") a obrigação de adquirir combustíveis exclusivamente daquela fornecedora.
Em ambos os casos, a sistemática de tutela do consumidor, nomeadamente o direito à informação e a responsabilidade do fornecedor, tem sido posta como barreira à abertura e à inovação no setor. Há quem defenda que o delivery e a extinção do bandeiramento são ameaças ao sistema de defesa do consumidor, mas, na realidade, utiliza-se dessa retórica para se proteger um status quo que fomenta a concentração de mercado, prejudicando, ao fim e ao cabo, o próprio consumidor. É isso que discutimos nestas breves linhas.
O delivery de combustíveis foi trazido ao Brasil pela GOfit, um aplicativo pelo qual o consumidor indica o local onde deseja receber o combustível e um "minicaminhão tanque" se desloca para abastecer o veículo. O modelo de negócio logo encontraria os entraves da regulação exercida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP, cujas normas impõem um modelo de fornecimento exclusivamente nos estabelecimentos dos postos de combustíveis, e da própria concorrência, que logo lançou mão de argumentos consumeristas, ambientais e de segurança operacional como fundamentos para frear a iniciativa.
Entre liminares, permissões e proibições, a própria ANP viu no delivery uma oportunidade de abertura do mercado e instalou o chamado sandbox regulatório, uma alternativa para que a ultrarregulação do setor não se impusesse de forma tão incisiva à inovação trazida pela empresa. Basicamente, a "caixa de areia" implica na criação de um ambiente específico, destacado do ambiente geral, para o desenvolvimento de um modelo experimental.
Lá fora, a prática é bastante difundida. No Reino Unido, precursor da prática, o Financial Conduct Authority a define como uma oportunidade para que negócios testem proposições inovativas no mercado, com consumidores reais. Na Alemanha, a prática intitulada reallabore é regulada pelo Bundesministerium für Wirtschaft und Energie (Ministério da Economia e da Energia), que destaca um duplo viés desse tipo de estratégia: oportunizar a inovação e, ao mesmo tempo, aperfeiçoar a regulação por meio de uma "aprendizagem regulatória".
Assim, autorizada pela ANP e seguindo uma série de regras de segurança, inclusive mais rígidas do que as regras ordinárias, a empresa passou a operar em três bairros da cidade do Rio de Janeiro.
Mesmo assim, a Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro editou uma lei proibindo "a prestação de serviço ao consumidor que tenha como objeto o abastecimento de veículo em local diverso do posto de combustível", sujeitando o infrator a multas e até ao cancelamento da inscrição estadual. Tudo em suposta defesa do consumidor.
Como desfecho, o Supremo Tribunal Federal declarou a norma inconstitucional, por usurpação da competência privativa da União para legislar sobre energia (art. 22, IV, da Constituição Federal), e negando a prevalência do modelo de competência concorrente da União, estados e Distrito Federal para legislar sobre produção e consumo e sobre responsabilidade por dano ao consumidor (art. 24, V e VIII)1.
Quanto ao bandeiramento, tudo gira em torno da regra que impõe ao posto de combustível que desejar ostentar a marca de uma distribuidora a exclusividade na aquisição dos produtos daquela distribuidora. A questão é posta pela Resolução ANP nº 41, de 2013, que em seu art. 25, §4º, estabelece que "se o posto revendedor exibir marca comercial de distribuidor em suas instalações, o revendedor deverá adquirir, armazenar e comercializar somente combustível fornecido pelo distribuidor do qual exiba a marca comercial".
Pela norma, ao decidir ostentar uma "bandeira", o posto deve adquirir produtos exclusivamente daquele distribuidor. Também aqui a defesa do consumidor, notadamente o direito à informação, está na base da regra, mesmo porque inserida em dispositivo cujo caput preleciona que "o revendedor varejista de combustíveis automotivos deverá informar ao consumidor, de forma clara e ostensiva, a origem do combustível automotivo comercializado".
Em audiência pública, a ANP registrou que a regra de exclusividade concentra poderes em poucos players do mercado e que o abandono dessa regra não enfraqueceria a proteção do consumidor, pois viria acompanhada de reforços informacionais e de responsabilidade do fornecedor.
Trata-se, aliás, de orientação mais consentânea com uma lógica de abertura de mercado e com a própria liberdade contratual que está na base das relações privadas e principalmente das relações empresariais.
Esses dois aspectos entraram no radar da ANP, que caminha no sentido de uma flexibilização regulatória que permitirá o delivery e extinguirá a tutela regulatória da regra de bandeiramento. Aliás, antecipando esse movimento de abertura, o Governo Federal acaba de editar (em 11 de agosto de 2021) Medida Provisória autorizando os postos a comercializarem combustíveis de outras marcas e a comprarem etanol diretamente dos produtores, justificando tal medida na ampliação da concorrência e no consequente favorecimento do consumidor, permanecendo intacto o seu direito à informação.
Ambos os tópicos trazem consigo uma primeira reflexão: a quem interessa a abertura de qualquer mercado?
A história mostra que modelos de negócio disruptivos, com os efeitos concorrenciais que lhes são peculiares, normalmente vêm acompanhados de ganhos para o mercado de consumo e, essencialmente, para os próprios consumidores, aprimorando os produtos e serviços colocados ao seu alcance, inclusive com vantagens nos preços. Assim, a inovação é um componente essencial ao desenvolvimento do mercado, que interessa a todos os agentes econômicos, inclusive aos consumidores.
Como segunda reflexão, deve-se indagar se a inovação seria incompatível com a sistemática de defesa do consumidor, principalmente no tocante ao direito à informação, à proteção da vida, saúde e segurança e à responsabilidade do fornecedor.
Obviamente, não.
O Código de Defesa do Consumidor oferece plena proteção inclusive quando se tratar de produto ou serviço potencialmente perigoso ou nocivo. Aliás, perceba-se que, a teor do art. 9º do CDC, a periculosidade ou nocividade do produto ou serviço é contrabalanceada pela ênfase no dever de informação imposto ao fornecedor. A única proibição apriorística fica por conta do fornecimento de produtos ou serviços de alta periculosidade (art. 10), assim considerados aqueles cuja periculosidade ou nocividade extrapole a normalidade e a previsibilidade, o que definitivamente não ocorre no fornecimento de combustíveis fora do posto, pois acompanhado de regras de segurança ainda mais rígidas do que as normalmente seguidas, estabelecidas pela própria ANP como condicionantes do sandbox. Assim, tratando-se de produto ou serviço de periculosidade inerente ou latente, não há falar-se em proibição prévia da atividade, mas em reforço da estrutura normativa de tutela pelas vias da informação ao consumidor e da responsabilidade do fornecedor.
Além disso, o CDC abre inegável espaço para a inovação ao consagrar o risco de desenvolvimento como eximente de responsabilidade do fornecedor. Sobre o tema, Paulo Roque Khouri consigna que o risco de desenvolvimento acaba se impondo à coletividade, "que tem inegáveis ganhos com o desenvolvimento tecnológico"2. Essa abertura à inovação é mais um mérito do CDC e a leitura que a doutrina faz sobre o tema se coaduna com um modelo protecionista, mas não paternalista.
De todo modo, principalmente em modelos de negócio disruptivos (não apenas inovadores), o desenvolvimento deve vir acompanhado do reforço das estruturas normativas de tutela do consumidor. O que não se admite é que a retórica da tutela consumerista se coloque como barreira a um movimento benéfico ao consumidor e ao mercado.
Não se pode, assim, realizar uma espécie de controle prévio de adequação de um modelo de negócio à tutela do consumidor em abstrato, pois isso implicaria paternalismo incompatível com a lógica de livre mercado. É principalmente nas situações da vida que a proteção do consumidor se impõe, não como uma falácia de tutela preventiva.
No caso do delivery de combustíveis, sobreleva-se a importância do regime de responsabilização do fornecedor pelo fato do produto ou do serviço; no caso do fim do bandeiramento, é o direito à informação que merecerá reforço. E tudo isso é plenamente concretizável sem que se altere qualquer nuance do Código ou da sua filosofia protetiva.
Agora, com o já decretado fim da tutela regulatória do bandeiramento pelo Governo Federal, é de se esperar uma reação das grandes distribuidoras e certamente o argumento da defesa do consumidor será utilizado. Mas não se pode admitir que essa retórica seja manejada contra o próprio consumidor.
A disciplina protetiva não pode funcionar como um filtro antecipado de validação de novos modelos de negócio, principalmente daqueles mais disruptivos. Concretiza-se, sim, na prática das relações de consumo. Havendo risco de confusão, haverá reforço informacional; havendo lesão ao consumidor imputável ao fornecedor, haverá o dever de indenizar, e isso permanece intacto tanto para o delivery de combustíveis quanto para a realidade "pós-bandeiramento".
*Adisson Leal é coordenador da filial Brasília do escritório Magro Advogados. Doutorando em Direito Civil pela USP. Professor e coordenador do curso de Direito da Universidade Católica de Brasília. Foi pesquisador-visitante da Ludwig-Maximilians-Universität München. Foi Assessor de ministro do STF.
**Alberto Coimbra é sócio do escritório Magro Advogados, coordenador das equipes de contencioso cível, precatórios/creditórios e regulatório. Pós-graduando em Direito Processual Civil pela PUC/SP. Graduado em Direito pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ.
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1 Trecho da ementa: "A legislação estadual impugnada com o escopo de coibir a atividade de "delivery de gasolina e etanol" exorbitou sua competência e usurpou competência privativa da União para legislar sobre energia. A matéria das normas impugnadas é regulada pela lei 9.478/1997, pela qual se definem normas gerais sobre a política energética nacional e pela resolução 41/2013 da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis - ANP, na qual estabelecidos os requisitos necessários à autorização para o exercício da atividade de revenda varejista de combustíveis automotivos. É inconstitucional norma estadual pela qual usurpada a competência privativa da União para legislar sobre energia e por ela estabelecida regulamentação paralela e contraposta à legislação federal existente, por ofensa ao que se dispõe no inc. IV do art. 22 da Constituição da República. Precedentes." (ADI 6580, rel. Min. Cármen Lúcia, julgada em 12 de maio de 2021).
2 Paulo Roque Khouri, Direito do Consumidor: contratos, responsabilidade civil e defesa do consumidor em juízo, 6 ed., Editora Atlas, ebook.