A acertada imprescritibilidade reparatória ambiental e a possibilidade de extensão a outros interesses existenciais constitucionalmente assegurados
terça-feira, 29 de junho de 2021
Atualizado às 07:46
O objetivo precípuo é, a partir da relevância que se dá ao meio ambiente, refletir sobre a possibilidade de levar os argumentos da imprescritibilidade dessas ações reparatórias para outras demandas coletivas, justamente pelos interesses envolvidos nessas situações, que merecerem o mesmo destaque.
Por que é certo exigir que as vítimas tenham que agir no tempo determinado pela lei para se verem ressarcidas e não é justo que o lesante fique com seu encargo pendente até arcar com as consequências dos seus atos danosos? Então, antes deixar o devedor/lesante correndo o risco de responder por eventual demanda reparatória, do que os credores/vítimas, sem direito de exigir o ressarcimento, por não terem atendido a um prazo aleatório previsto em lei.
Partindo-se da ideia de meio ambiente como um direito fundamental, mister salientar que os direitos fundamentais são "direitos inerentes à própria noção dos direitos básicos da pessoa, que constituem a base jurídica da vida humana no seu nível atual de dignidade1." Os direitos fundamentais de terceira geração, a exemplo do meio ambiente, caracterizam-se como direitos de titularidade coletiva lato sensu, têm por destinatário principal o gênero humano e, como tal, não devem ser pleiteados exclusivamente ao Estado, ou especialmente a outras pessoas, configurando, na verdade, um direito erga omnes que traz uma solidariedade não só jurídica, como também ética2. De nada adianta a Lei Maior assegurar a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, o meio ambiente equilibrado, se não erigir a vida humana3 num desses direitos; ou seja, a tutela do meio ambiente significa proteção à vida, à sobrevivência da espécie humana4.
O direito ao meio ambiente (natural, artificial e do trabalho) ecologicamente equilibrado é intrinsecamente difuso (transindividual, de natureza indivisível e titularidade indeterminada), sendo que o conteúdo do art. 225 da CF/88 impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender o meio ambiente. Interesses juridicamente difusos5 são necessidades comuns a conjuntos indeterminados de indivíduos e que só podem ser satisfeitas numa perspectiva comunitária.
O STJ adotou a concepção ampla de dano moral ambiental: "o dano extrapatrimonial atinge direitos de personalidade do grupo ou coletividade enquanto realidade massificada, que a cada dia reclama mais soluções jurídicas para sua proteção. É evidente que uma coletividade pode sofrer ofensa à sua honra, à sua dignidade, à sua reputação, à sua história, costumes e tradições e ao seu direito a um meio ambiente salutar para si e seus descendentes. Isso não importa exigir que a coletividade sinta a dor, a repulsa, a indignação, tal qual fosse um indivíduo isolado. Essas decorrem do sentimento de participar de determinado grupo ou coletividade, relacionando a própria individualidade à ideia do coletivo"6 (Grifou-se).
Pode-se, nesse contexto, definir o dano moral coletivo, como sendo "(...) o resultado de toda ação ou omissão lesiva significante, praticada por qualquer pessoa contra o patrimônio da coletividade, considerada esta as gerações presentes e futuras, que suportam um sentimento de repulsa por um fato danoso irreversível, de difícil reparação, ou de consequências históricas"7; assim, dano moral coletivo "(...) não constitui, pois, uma soma de interesses, mas interesse único titulado por uma coletividade indeterminada de pessoas com repercussões na seara específica de cada um dos seus membros, mesmo quando indeterminados e indetermináveis, circunstância que, por isso mesmo, não afasta a sua concomitante existência e relevância individuais"8.
No que pertine à imprescritibilidade das demandas ambientais reparatórias, repise-se, justamente por se tratar de um direito fundamental, o julgamento do Recurso Extraordinário 654.8339, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes foi um dos mais relevantes do STF e fixou a tese dessa imprescritibilidade mediante a apreciação do tema 999, em repercussão geral, no ano de 2020. A origem foi o ajuizamento de uma Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal com pedido de reparação por danos materiais, morais e ambientais em decorrência da extração ilegal de madeira, por meio de invasões ocorridas entre os anos de 1981 a 1987, em área ocupada pela comunidade indígena Ashaninka-Kampa, que fica no estado do Acre.
A imprescritibilidade já tinha sido reconhecida, pelo STJ10, para danos não individuais; ou seja, para aqueles compreendidos como o resultado de uma lesão à esfera não material de uma determinada coletividade, conduta que agride, injusta e intoleravelmente, não só o ordenamento jurídico, como os valores éticos fundamentais de uma sociedade, causando repulsa e indignação de forma generalizada. Ademais, o STJ editou a Súmula 623 afirmando que a pretensão de reparação civil de dano ambiental é imprescritível e propter rem, o que permite discutir e cobrar do proprietário atual danos ambientais ocorridos em qualquer época o que, por certo, mereceria algumas críticas se não desviasse o foco.
O precípuo argumento em favor da imprescritibilidade é o fato de o meio ambiente ter uma natureza transindividual e não haver regras específicas acerca da prescrição da pretensão de reparação civil para esses direitos, forçando que se pense muito além do direito privado. Ainda que o dano ambiental possa ser futuro, e se defende que sim, já que é possível enxergar um desdobramento elástico de uma situação danosa atual, a imprescritibilidade não está somente nisso assentada, pois o cerne é, como propositadamente já enfatizado, a própria natureza fundamental do bem jurídico protegido; qual seja, um ambiente sadio e equilibrado. O mesmo julgado reforça, também, que a imprescritibilidade não dá margem para eventual impunidade diante de danos aos ecossistemas, já que ao deixar em aberto o prazo para ações ressarcitórias frente ao desmatamento ilegal, uma infeliz realidade, enfatiza o quão necessário é evitar esse e outros tipos de ilícitos ambientais.
Diferentemente, portanto, do que acontece diante da prática de racismo ou ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático (art. 5º, XLII e XLIV da CF); ou diante da obrigatoriedade de ressarcimento de valores ao erário (art. 37, §5º da CF), casos em que a prescrição, por expressa previsão constitucional, não se aplica, a imprescritibilidade das demandas ambientais, como referido, ainda não têm acento nem constitucional, nem infraconstitucional.
Há quem entenda11 como fundamento da prescrição ser ela uma pena à negligência do titular do direito que, deliberadamente, opta por não o exercer. Ocorre que diante de danos morais coletivos lato sensu essa vontade deliberada não pode ser vista como em outras situações (uma ação de cobrança, por exemplo), pois a vida das pessoas restou atingida de tal forma que, muitas vezes, não há força, nem tempo, nem vontade de se pensar em punir alguém; afora o fato de, talvez, não se saber ainda ao certo, quem é ou são os responsáveis. Os lesados, em regra pela extensão do dano, estão se sentindo enfraquecidos, sem norte, e precisam minimamente se reerguer para, depois, pensar em movimentar o Judiciário.
À punição do credor inerte, ainda como fundamento da prescrição, soma-se a presunção de renúncia do direito pelo seu titular, mas como se pode renunciar a um direito que, além de ser de todos nós, quando se fala em dano moral coletivo, é indisponível e, por sua natureza, irrenunciável. Não temos como abrir mão do que não é nosso, ou não é apenas nosso. Dessa feita, já que se está diante de um dano moral coletivo lato sensu toda a vez que houver "lesão a um interesse existencial concretamente merecedor de tutela"12, como no caso de desrespeito aos direitos do consumidor por publicidade abusiva, de vilipêndio ao patrimônio histórico e artístico, de violação à honra de determinada comunidade judaica, indígena, negra, não se pode cogitar renúncia a esse direito.
Sob esse mesmo viés há quem argumente13 que: "a inação representaria o descumprimento do dever de cooperação social, reprimido pela perda da pretensão decorrente do reconhecimento da prescrição". (Grifou-se) Como se falar, entretanto, em descumprimento do dever de cooperação social se foi exatamente o social que restou lesado? Quando se pensa na prescrição como uma forma de assegurar a ordem social há de se ter em mente que diante de danos morais coletivos a ordem social já foi desfeita.
Na mesma linha de raciocínio, para quem defende que a prescrição é um instituto de direito privado que atende ao interesse público14, a pergunta que resta ser feita é: como a prescrição irá atender a um interesse público, se ele próprio restou maculado diante do dano moral coletivo sofrido? Como uma situação que vai retirar ainda mais direitos dos (indeterminados) lesados pode, nesse caso, atender a um interesse público? Não há como se concordar com essa dupla punição.
Assim, defendendo a imprescritibilidade diante de lesões a interesses constitucionalmente protegidos de uma coletividade, mister enfatizar o fato de a pretensão do autor ser uma faculdade atribuída aos titulares e o seu não exercício não significa, portanto, infringência a qualquer dever legal ou contratual, não se podendo falar em punição pela prescrição. Ou seja, se a inércia do credor não configura nenhuma antijuridicidade, não poderá ser objeto de sanção15, até porque não há punição maior do que o dano já sofrido.
Dessa feita, ainda que a lei pretenda continuar punindo a inércia de credores, em busca de uma tal segurança jurídica, o que é uma escolha do legislador, há de se raciocinar que, se reprovável é a inação do credor, não menos condenável é a conduta do devedor que, diante de um dano e do dever de ressarci-lo, consciente e voluntariamente, não o faz, não devendo subsistir razão para se recompensar a inércia do devedor, lesante, e punir aquela imputada ao credor16, representado pela sociedade lesada. Nesse sentir, quando se imagina que a prescrição faz com que o devedor dê o assunto por acabado e se sinta liberado da obrigação, é importante ter em mente que há determinadas circunstâncias que não podem ser encerradas, se não por outra razão, pelo menos porque não terão como sair da vida e da lembrança da coletividade em que o dano foi causado. É justo pensar que o devedor sentir-se-á liberado, e como tal agirá, enquanto os lesados muito provavelmente nunca retornarão ao status quo, uma vez que tiveram suas vidas devastadas? Por certo que não.
Ao suscitar esse tema, a autora tem plena ciência de que, alguns, entenderão a proposta como absurda, pois vai de encontro a um entendimento, crê-se, falso, de que a prescrição da pretensão traz segurança jurídica; no entanto, o que dá coragem para ousar é lembrar que a algum tempo atrás a reparação pelo dano imaterial era tida como imoral, sendo que hoje o não ressarcimento desses danos é o inimaginável. Esse é o bonito do Direito.
Referências
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MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; e CAPPELI, Sílvia. Direito ambiental. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2006.
MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais. Coimbra: Ed. Coimbra, t. IV, 1988.
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TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano Moral Coletivo - A configuração e a reparação do dano extrapatrimonial por lesão aos interesses difusos. Curitiba: Juruá, 2014.
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1 MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais. t. IV. Coimbra: Ed. Coimbra, 1988, p. 8 - 10.
2 BORGES, Roxana Cardoso. Direito ambiental e teoria jurídica no final do século XX, in VARELLA, Marcelo Dias e BORGES, Roxana (org.). O novo em direito ambiental. Belo Horizonte: Del Rey Ed., 1998, p. 21.
3 Ingo W. Sarlet afirma que os direitos fundamentais integram um sistema constitucional, sendo que esses direitos são, na verdade, concretizações do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, e o direito à proteção ambiental, desta feita, é um legítimo protetor da dignidade da pessoa humana e da dignidade da vida como um todo. Reforça, ainda, a ideia de que os direitos e garantias individuais encontram seu fundamento na dignidade da pessoa humana, mesmo que de variando o modo e a intensidade. SARLET, Ingo W. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p.73, 81 -82.
4 SILVA, José Afonso da. Fundamentos Constitucionais da Proteção do Meio-Ambiente, in: Revista de Direito Ambiental nº27 (2002), p. 54-55.
5 Nos interesses difusos há indeterminação de sujeitos, indivisibilidade de objeto, intensa litigiosidade interna e tendência à transição ou mutação no tempo e no espaço. MARCHESAN, Ana Maria Moreira; STEIGLEDER, Annelise Monteiro; e CAPPELI, Sílvia. Direito ambiental. Porto Alegre: Ed. Verbo Jurídico, 2006, p. 24.
6 REsp nº 1.269.494/MG, 2ª Turma, j. 24.09.2013, rel. Min. Eliana Calmon. De acordo com a Min. Eliana Calmon, o dano imaterial coletivo, em qualquer das suas modalidades, independe da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, o que é clássico na esfera individual, porém inaplicável aos interesses difusos e coletivos, como bem consta no REsp 1.057.274/RS.
7 ROSENVALD, Nelson. Fundamento Normativo do Dano Moral Coletivo. In Dano Moral Coletivo. Organizado por Nelson Rosenvald e Felipe Teixeira Neto. Indaiatuba: Editora Foco, 2018, p. 99/100.
8 TEIXEIRA NETO, Felipe. Dano Moral Coletivo - A configuração e a reparação do dano extrapatrimonial por lesão aos interesses difusos. Curitiba: Juruá, 2014, p. 143.
9 Disponível aqui.
10 REsp 647.493/SC, de relatoria do Ministro João Otávio de Noronha; REsp 1.644.195/SC e REsp 1.559.396/MG, de relatoria do Ministro Herman Benjamim.
11 SAAB, Rachel. Prescrição: função, pressupostos e termo inicial. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 22.
12 FARIAS, Cristiano Chaves de, ROSENVALD, Nelson e BRAGA NETO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil, JusPDIVM: 2014, p. 336.
13 CÂMARA LEAL, Antônio Luís da. Da prescrição e da decadência. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 17.
14 Para Giuseppe Pugliese: "Esse modo de ver está em plena harmonia com o objetivo social da prescrição, porque esta é um instituto de direito privado, mas que realiza um interesse público..." (trad. Livre). PUGLIESE, Giuseppe. La Prescrizione Estintiva. Turino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1924, p. 21. Em sentido contrário, Yussef Said Cahali defende que a prescrição é matéria de ordem pública, criada por razões de ordem social, e não no interesse das partes. CAHALI, Yussef Said. Prescrição e decadência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012, p. 24. Esclarece-se que a jurisprudência pátria firmou-se no sentido de que ela é matéria de ordem pública REsp. 890.311/SP, da 3ª T., Rel. Sidnei Beneti, ac. 10/08/2010, DJe 23/08/2010.
15 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 683.
16 PUGLIESE, Giuseppe. La Prescrizione Estintiva. Turino: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1924, p. 21.