Relação médico-paciente: Informação e compreensão como pressupostos fundamentais à prevenção de litígios
terça-feira, 8 de junho de 2021
Atualizado às 09:02
Atualmente, a informação e a compreensão se revelam como fundamentos essenciais à conformação adequada da relação entre médicos e pacientes. São elas dois pressupostos que devem ser minuciosamente observados se analisada parte importante das causas que sustentam o aumento das demandas judiciais relacionadas à responsabilidade civil nessa área. O dever de informação recíproca entre as partes e o ato de compreender as informações devem ser requisitos complementares, fundamentais à administração dos riscos que envolvem, naturalmente, a relação.
O rechaço ao paternalismo médico acentua a mudança da forma de se conceber historicamente a relação, na medida em que se constata maior facilidade de acesso ao conhecimento pelas pessoas em geral, a transformação cultural consciente que busca a garantia de novos direitos e a reivindicação do cumprimento de perspectivas que coadunem as diferenças identitárias, traduzidas, muitas vezes, pelas condições de vulnerabilidade. Nesse contexto, a esfera subjetiva, que envolve a capacidade de informar e a capacidade de compreender, ínsitas às relações sociais, passa a integrar o espaço da relação entre médicos e pacientes e, por vezes, torna-se elemento protagonista na aferição da medida de possível responsabilidade pela ocorrência de um resultado danoso.
A informação, enquanto uma obrigação recíproca entre as partes, não deve mais ser concebida como um dever meramente formal, exarada pragmaticamente pela assinatura de termos de consentimento padronizados. Num primeiro momento, deve-se compreender que a relação agrega o profissional como o sujeito detentor do conhecimento técnico e o paciente como sujeito vulnerável, já que desprovido da mesma condição. Disso, deve surgir a preocupação com o fato de que a informação precisa estar acompanhada de outro elemento fundamental - a compreensão.
A habilidade para compreender uma informação não pode ser atestada simplesmente pela existência de capacidade jurídica. A compreensão somente pode ser adequadamente constatada se avaliada a esfera real de autonomia do paciente, que está relacionada às suas possíveis vulnerabilidades. A informação adequada, associada à compreensão alcançada, compõe o alicerce de uma atuação profissional preventiva, na medida em que não adere à obtenção conveniente de termos de consentimento calcados em aspectos puramente obrigacionais e formais.
A vulnerabilidade, antes de tudo, deve ser apreendida como característica universal de todo ser existente. A condição de finitude e mortalidade do ser humano está diretamente relacionada à natureza vulnerável da sua existência1. Alargando o sentido de vulnerabilidade, é notório perceber que ela ganha contornos específicos (ou adjetivantes)2 quando representa a qualificação de alguns grupos de pessoas por considerar contingências e realidades.
A informação é um dos elementos que propicia o exercício adequado da autonomia, seja do paciente ou do médico. Cabe ao profissional da Medicina o dever de informação adequada ao paciente em prol da obtenção correta do consentimento, assim como cabe ao paciente informar, com detalhamento, seu histórico clínico, hábitos e estilo de vida.
As relações em saúde demandam a manifestação do consentimento, representado pela assinatura de um termo, conhecido como Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A autonomia, então, é manifestada por meio da expressão direta da vontade do paciente, que é o responsável por ler, compreender, preencher e assinar este documento3. Culturalmente, o termo é concebido como um processo de formalização para evitar conflitos jurídicos no futuro e não é resultado, em grande parte das vezes, de uma construção dialógica e esclarecida entre os sujeitos.
Nem sempre as informações foram concedidas em totalidade e nem sempre quem assina o termo de consentimento compreendeu adequadamente o conteúdo previsto no instrumento. "A não compreensão adequada do conteúdo reduzido a termo é um problema persistente no âmbito da reflexão bioético-jurídica"4, que passou a ser considerado, de maneira mais incidente, quando investigadas, com profundidade, possíveis causas que justificaram a propositura de demandas judiciais para responsabilizar profissionais de saúde.
Informação e compreensão são pressupostos contratuais relacionados a demandas que envolvem responsabilidade médica. Cabe, então, refletir sobre a questão a partir da dimensão bioética, que traz fundamentos que colaboram para a construção da tutela jurídica. Beauchamp e Childress5, autores da bioética principialista, propuseram distinção conceitual entre pessoas autônomas e ações autônomas, a fim de explicar a importância da informação, da autonomia e da capacidade de compreensão. Uma ação considerada realmente autônoma deve ser manifestamente intencional, estar livre de influências e pressupor a compreensão das informações em totalidade5.
Logo, é possível perceber o quão é necessário, dentro das relações que envolvem saúde, entender que a manifestação da autonomia de um paciente, que é, por exemplo, juridicamente capaz, precisa vir coadunada pela sua real condição de compreender as informações. A pura aferição da capacidade jurídica de um paciente não deve atestar a sua condição de autonomia.
A informação, quando fornecida pelo médico, é apta a revelar opções terapêuticas disponíveis, riscos do tratamento, ponderação quanto às vantagens e desvantagens da hospitalização ou das diversas técnicas a serem empregadas, revelação quanto aos prognósticos e ao quadro clínico e cirúrgico, bem como qualquer detalhamento relacionado à situação clínica do indivíduo. A informação, quando dada pelo paciente, também é fundamental para construção adequada das decisões e sugestões médicas, o que inclui o relato do histórico clínico, sintomas, tratamento realizados, cirurgias, bem como todas as informações de que tiver ciência relacionada às suas condições de saúde.
A articulação adequada do discurso é um dever do profissional, uma preocupação humanizante, uma conduta preventiva e profilática. A informação não pode ser concebida apenas como uma obrigação técnica a ser cumprida, precisa se revelar como uma missão pormenorizada, detalhada, conduzida por uma preocupação ética. A conscientização de que o dever de informação é um dos pilares do gerenciamento de riscos, quanto a demandas que possam envolver qualquer tipo de dano e culminar na responsabilização, é o começo para a prevenção de litígios. A tarefa da informação não pode ser concebida apenas como uma preocupação jurídica, mas, antes, como uma preocupação humanizante.
A doutrina e a jurisprudência6 nacionais já firmaram importantes conteúdos quanto à relevância do dever de informação no âmbito dessa relação. Segundo jurisprudência consolidada pelo STJ, "haverá efetivo cumprimento do dever de informação quando os esclarecimentos se relacionarem especificamente ao caso do paciente, não se mostrando suficiente a informação genérica", da mesma maneira, "para validar a informação prestada, não pode o consentimento do paciente ser genérico (blanket consent), necessitando ser claramente individualizado"6.
Importante, agora, cada vez mais, contextualizar tal dever a partir do crescimento da complexidade dessa relação, o que envolve as tecnologias disponíveis (como a telemedicina) e os tratamentos inovadores (como o uso da inteligência artificial). As novas tecnologias podem facilitar a dinâmica de atuação dos médicos, mas precisam ser observadas cuidadosamente em relação a cada paciente, já que nem todas as pessoas compreendem informações sobre recursos e elementos tecnológicos, por isso, podem precisar de orientações mais cuidadosas e pontuais.
O consentimento informado deve representar um processo gradual, que avança progressivamente, não podendo ser reduzido a um simples documento escrito padronizado. A redução do conteúdo do consentimento à forma escrita não é suficiente para comprovar que a informação foi devidamente e/ou adequadamente passada. Isto porque as vulnerabilidades funcionam como óbices ao processo de compreensão. Esse ponto tem sido importante quando se pensa em demandas judiciais relacionadas a possíveis erros médicos quanto ao não esclarecimento ou ao esclarecimento inadequado de conteúdos concernentes à relação.
A informação só tem sua finalidade alcançada se for devidamente compreendida pelo destinatário. A formulação de termos de consentimento, com a previsão de informações excessivamente técnicas, não atende à ideia do dever de informar, já que não reflete o cuidado ético com a possibilidade de compreensão. É necessário reajustar o olhar sobre os pressupostos de construção dos termos de consentimento, ainda que seja necessário reconhecer as dificuldades, como o tempo de consulta e as relações entre médicos e planos de saúde. Não há, de fato, garantia de que o profissional de saúde consiga sempre aferir a condição de compreensão de cada paciente, mas, em grande parte das vezes, é a sua conduta que fará diferença quanto a essa possibilidade de compreender. O acolhimento do profissional, revelado pela construção de um diálogo personalizado, é capaz de propiciar a compreensão necessária.
Retomando a proposta da bioética principialista, pessoas com capacidade de autogoverno podem não governar a si mesmas em razão de restrições impostas por doença, pela ignorância, pela coerção, pela fome, pala falta de conhecimento ou por condições restritivas5. É necessário almejar que a ação de consentir seja autônoma, ou seja, com intenção, entendimento ou compreensão e ausência de influências controladoras.
No Direito, questões que fundamentam a não compreensão pelo paciente estão relacionadas aos requisitos dos negócios jurídicos em geral. No entanto, no que concerne à assinatura do termo de consentimento, pode-se perceber a pouca importância dada à compreensão como elemento fundante que valida a informação escrita. Na prática, muitas vezes, a capacidade jurídica do paciente tem sido o único fator relevante para que o mesmo possa assinar o termo e o dever de informação seja concebido como cumprido.
O exercício da autonomia privada deve exigir "requisitos de validade especiais, que excepcionam ou apenas complementam os requisitos dos atos jurídicos em geral, determinados no artigo 104 do Código Civil"7. Esse é o ponto de partida para entender que outros elementos, como a informação e a compreensão adequadas, devem integrar a avaliação da manifestação correta da autonomia. Não basta "passar" a informação ao paciente, ela "deve ser construída dialogicamente e não unilateralmente", não cabendo ao profissional a simples tarefa de relatar os dados, mas a construção de uma comunicação acessível7.
Somente na esfera da vulnerabilidade, onde estão as motivações capazes de impedir a concretização da compreensão, é que se pode pensar no desenvolvimento do sentido adequado de autonomia e da legitimidade dos consentimentos escritos. A capacidade de compreensão pelo paciente precisa passar a ser uma preocupação consistente, considerando, também, o número de ações judiciais assentadas na possibilidade de negligência durante o processo de informação.
Como dito, não há como garantir a possibilidade de aferir categoricamente a condição de compreensão de cada sujeito, mas há como transformar o curso do processo de obtenção de consentimento por meio de um diálogo responsável e acolhedor, capaz de revelar a boa-fé e a confiança, que contribuem substancialmente para a prevenção de litígios.
*Ana Thereza Meirelles é pós-doutoranda em Medicina pelo programa de pós-graduação de Medicina e Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia (PPGMS/UFBA). Doutora em Relações Sociais e Novos Direitos e Mestre em Direito Privado e Econômico pela Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (PPGD/UFBA). Professora membro do Corpo permanente do Mestrado em Direitos Fundamentais e Alteridade da Universidade Católica do Salvador (PPGD/UCSal). Professora da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e da Faculdade Baiana de Direito. Coordenadora da pós-graduação em Direito Médico, da Saúde e Bioética da Faculdade Baiana de Direito. Líder do Grupo de Pesquisa JusBioMed - Direito, Bioética e Medicina.
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1 JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Tradução Marijane Lisboa e Luiz Barros Montez. Rio de Janeiro: Contraponto/Editora PUC-RJ, 2006.
2 PATRÃO NEVES, Maria do Céu. Sentidos da vulnerabilidade: características, condição e princípio. In: BARCHIFONTAINE, Christian Paul de; ZOBOLI, Elma Lourdes Campos Pavone (Org.). Bioética, Vulnerabilidade e Saúde. São Paulo: Centro Universitário São Camilo, 2007.
3 MEIRELLES, Ana Thereza; LINS-KUSTERER, Liliane. Pressupostos fundamentais da recusa a tratamento médico na assistência à saúde. Revista da AGU, Brasília-DF, v. 19, n. 04. p. 69-90, out./dez. 2020.
4 MEIRELES, Ana Thereza; AGUIAR, Mônica. Prática médica e diretivas antecipadas de vontade: uma análise ético-jurídica da conformação harmônica entre os pressupostos autonomia e alteridade. Revista Jurídica Cesumar, v. 17 n. 3, 2017: set./dez.
5 BEAUCHAMP, T.; CHILDRESS, J. Principles of Biomedical Ethics. New York: Oxford University Press, 1979.
6 STJ. Recurso Especial Nº 1.540.580 - DF (2015/0155174-9). Disponível aqui. Acesso em: 01 jun. 2021.
7 FREIRE DE SÁ, Maria de Fátima; NAVES, Bruno Torquato. Bioética e Biodireito. 4.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2018, p.108.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil