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Liberdade de imprensa e responsabilidade civil

terça-feira, 25 de maio de 2021

Atualizado às 08:04

Em frase que se tornou famosa e é frequentemente citada quando se trata da liberdade de imprensa, Thomas Jefferson declarou: "Se me fosse dada a decisão sobre se deveríamos ter um governo sem jornais ou jornais sem um governo eu não hesitaria um momento em preferir a última".1 A frase dá a dimensão da fundamentalidade da imprensa para a democracia. Não qualquer imprensa, mas de uma verdadeiramente livre, não submetida às pautas e aos interesses do governo.

Uma imprensa livre, juntamente com o princípio geral da liberdade de expressão, é condição necessária à existência e à manutenção de um Estado democrático, porque é, principalmente, através de notícias e matérias veiculadas nos meios de comunicação de massa que os cidadãos têm acesso a informações e opiniões sobre fatos de interesse público e sobre práticas do governo e seus agentes. Tais informações são essenciais para que os cidadãos tenham condições de realizar escolhas mais conscientes de seus representantes políticos e influir nas decisões governamentais.

O direito de informar vem acompanhado do correlato dever de prestar informações claras e verdadeiras. Do contrário não haverá informação, mas deformação.2 A liberdade de imprensa, pelo prisma amplo da liberdade de comunicação social, tem no direito à informação o seu conteúdo ou núcleo principal, compreendendo os direitos fundamentais de informar, de se informar e de ser informado.

Essa liberdade encontra seus limites na própria Constituição Federal, na proteção dos chamados direitos da personalidade, tais como a honra, o nome, a privacidade e a intimidade de terceiros, contra manifestações e publicações que violem esses direitos.

É bom lembrar que a liberdade de expressão, da qual a liberdade de imprensa é uma derivação, também se insere dentro do conjunto de direitos da personalidade, constituindo, mesmo, um dos mais importantes direitos para o desenvolvimento humano.

Os diversos direitos fundamentais, por integrarem um sistema jurídico-normativo que se pretende harmônico e coerente, limitam-se mutuamente, em uma relação dialógico-interpretativa de princípios.

Aquilo que se diz ou escreve muitas vezes pode ser desairoso ou negativo para a reputação de alguém, sem que, necessariamente, se possa falar em "violação" ou "ofensa" à honra, mas apenas em atingimento ou afetação desse direito, como consequência do exercício legítimo-constitucional da liberdade de expressão.3

Assim, por exemplo, quando a publicação tem como personagens agentes do governo, ou quando envolva temas de interesse público, é fundamental que o tema seja debatido da forma mais ampla e aberta possível, mesmo quando isso signifique atingir ou afetar a reputação alheia. O interesse coletivo, nessa hipótese, sobreleva o interesse individual.

Ao profissional de jornalismo impõe-se o dever de cautela e prudência na checagem da veracidade da notícia e da idoneidade das fontes antes da divulgação da informação. Espera-se, em todos os casos, que a informação publicada seja verdadeira.

Esse ideal de prudência, contudo, esbarra no sentido de urgência e fluidez da informação jornalística. Já se disse que o jornal de hoje é o papel para embrulhar peixe de amanhã, para fazer alusão à velocidade da notícia, que se tornou ainda mais vertiginosa na chamada era da informação por meio digital, na qual um fato muitas vezes é divulgado praticamente em tempo real pela internet, por profissionais da imprensa e por cidadãos em geral.4

Como a pressa é inimiga da perfeição, a maior velocidade da informação acaba, com frequência, levando à divulgação de notícias que, quando não inteiramente falsas ou equivocadas, contém imprecisões ou, simplesmente, não conseguem ser comprovadas.

Quando isso ocorre, jornalistas e cidadãos correm o risco de responsabilização (civil e criminal) por danos à reputação de terceiros.

É inquestionável que a publicação de notícias intencionalmente falsas deve gerar responsabilidade daqueles que a publicaram, quando causar danos. Mas e nos casos em que não há má-fé? E naqueles em que não há prova suficiente sobre a veracidade da informação, muitas vezes obtida de fonte anônima, acerca da qual a própria Constituição assegura o direito ao sigilo?

A exigência de comprovação cabal de todos os fatos noticiados acaba por impor aos jornalistas e aos veículos de comunicação um ônus pesadíssimo, praticamente impossível de atender, enfraquecendo em grande medida o princípio constitucional da liberdade de imprensa.

O receio de responsabilização civil, com o pagamento de indenizações elevadas, acaba por provocar, como consequência, a autolimitação ou autocensura da imprensa, criando uma espécie de efeito silenciador (chilling effect), com prejuízo para a própria democracia.

Buscando impedir o efeito silenciador que poderia ser provocado por condenações ao pagamento de indenizações vultosas, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, no julgamento do caso New York Times v. Sullivan, estabeleceu os standards a serem seguidos em casos de notícias falsas e lesivas à honra (defamation) de agentes públicos.

Considerou que a garantia constitucional da liberdade de expressão e de imprensa impõe o estabelecimento de uma regra limitadora do direito de indenização aos agentes públicos por declarações falsas contra sua conduta oficial. Apenas as declarações ou afirmações feitas com "malícia real" (actual malice), ou seja, com conhecimento de que eram falsas (knowledge of the falsity) ou feitas com descaso ou indiferença acerca da veracidade (reckless disregard for the truth), podem levar a uma condenação por defamation.5

Na prática, isso significa que cabe à parte autora, que alega ser vítima de defamation, o ônus da prova de que a empresa jornalística ou o jornalista que escreveu a matéria tinham ciência da falsidade da notícia ou agiram com grave negligência ao publicá-la, sem mostrar preocupação com a sua veracidade.

Em decisões posteriores, a Suprema Corte dos Estados Unidos explicitou o conceito de agente público e de conduta oficial, estendendo a aplicação da regra da actual malice para agentes privados considerados "figuras públicas", distinguindo-os das pessoas comuns ou não-públicas, em relação às quais prevalece a regra geral de que, para o reconhecimento da responsabilidade civil, basta a culpa simples do réu que publica a informação falsa e ofensiva à honra.

Esses e outros standards foram forjando os limites da liberdade de imprensa nos Estados Unidos, trazendo maior segurança jurídica para o exercício da atividade jornalística.

Para muitos, o julgamento do caso New York Times v. Sullivan foi a mais importante decisão proferida pela Suprema Corte americana acerca do alcance da Primeira Emenda da Constituição, por conferir uma robusta e necessária proteção às liberdades de expressão e de imprensa.

Além disso, é de grande importância distinguir o que é fato e o que opinião. Isso porque, embora em relação aos fatos haja o dever de veracidade, o mesmo não ocorre em relação às opiniões. Não há que falar em opiniões verdadeiras ou falsas. As opiniões podem ser boas ou más, mas não se submetem à prova da verdade, de modo que não poderiam, em linha de princípio, gerar responsabilidade civil do órgão de imprensa ou do jornalista.

Essa é a doutrina que prepondera na jurisprudência norte-americana, que admite ação por defamation apenas nos casos de declarações falsas a respeito de alguém, aptas a causar dano à honra subjetiva ou à reputação.

As opiniões, pela sua inerente subjetividade, ainda que extremamente críticas, desairosas, derrogatórias e até com o uso de expletivos e expressões insultuosas, estão especialmente resguardadas pelas garantias das liberdades de expressão e de imprensa, não dando ensejo a ação de responsabilidade civil.

A jurisprudência brasileira, em geral, não tem estabelecido diferenças entre os agentes públicos e os particulares para o fim de responsabilização civil em casos de danos à honra pela imprensa, havendo já precedentes do Superior Tribunal de Justiça que entenderam pela não aplicação no direito brasileiro da doutrina da actual malice.6

Uma pesquisa mais aprofundada na jurisprudência do STJ demonstra que notícias e manifestações críticas contra figuras públicas trazem um grande risco de condenação para empresas de comunicação, jornalistas e cidadãos em geral.7

Já o Supremo Tribunal Federal tem sinalizado no sentido de reconhecer uma proteção mais alargada e robusta das liberdades de expressão e de imprensa, com menção, em alguns julgados mais recentes, à doutrina da actual malice.8

Além disso, o STF tem se posicionado no sentido de que a liberdade de expressão, no conjunto de direitos fundamentais, constitui um "direito preferencial".9

Conferir uma posição preferencial à liberdade de expressão significa impor um ônus argumentativo mais pesado para quem deseje restringir ou suprimir essa liberdade, que, prima facie, pela sua importância para o indivíduo e para o estado democrático de direito, deve prevalecer.

De um ponto de vista jusfilosófico, essa posição preferencial se justifica pela importância da liberdade de expressão para o descobrimento da verdade, para a realização da democracia e para o próprio desenvolvimento da personalidade humana.

Pelo prisma do sistema jurídico constitucional brasileiro, a posição de destaque atribuída à liberdade de expressão decorre, dentre outras razões, da forma ampla, enfática e até redundante pela qual o texto constitucional tratou desse princípio, nos artigos art. 5º, IV e IX, e 220, os quais são expressos na rejeição de qualquer tipo de censura, prévia ou posterior.

Apesar disso, em razão da falta de parâmetros jurisprudenciais seguros e sedimentados, tem havido um crescente número de casos de jornalistas e articulistas alvos de investigação e de ações de natureza civil e penal da parte de agentes públicos, que alegam ser vítimas de ofensas à sua reputação.

Em muitos desses casos, as manifestações apontadas como ofensivas nem mesmo se referem a afirmações de fatos, constituindo apenas opiniões críticas, embora severas, muitas vezes acompanhadas de expressões hiperbólicas e adjetivos insultuosos, como os que com frequência são veiculadas na imprensa e nas redes sociais contra o presidente da república e outros agentes oficiais.

Em junho de 2020, por exemplo, o Ministro da Justiça, com base na Lei de Segurança Nacional, pediu a abertura de inquérito criminal pela publicação de uma charge crítica ao presidente da república.

Essas ações têm por objetivo calar manifestações contrárias aos atos do governo e de seus agentes, provocando um movimento de autocensura e inibição do debate em assuntos de interesse público, com graves riscos para a democracia.

As nossas cortes de justiça devem se basear em critérios objetivos e estritos acerca dos limites das liberdades de expressão e de imprensa, de modo a conferir mais segurança à atividade jornalística. Esses limites não podem depender da régua e do compasso de cada julgador.

É essencial que se crie uma cultura da liberdade de expressão e da liberdade de imprensa, com o estabelecimento de parâmetros jurisprudenciais objetivos que preservem essas liberdades, essenciais para uma democracia que se pretenda digna desse nome e não constitua uma mera promessa escrita em uma folha de papel.

*André Gustavo Corrêa de Andrade é desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, doutor em Direito pela UNESA, professor do PPGD da UNESA e da FIOCRUZ, Presidente do Fórum Permanente de Liberdade de Expressão, Liberdades Fundamentais e Democracia da EMERJ.

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1 A frase constitui trecho de carta enviada por Jefferson a Edward Carrington, em 16 de janeiro de 1787.

2 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 28. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 247.

3 Nesse sentido, MELLO, Rodrigo Gaspar de. Liberdade de Expressão, Honra e Censura Judicial. Uma defesa da incorporação da doutrina da malícia real no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2019, p. 34.

4 A era da informação digital fez surgir o chamado "jornalismo cidadão", em que a coleta, análise e disseminação de notícias e informações é feita por pessoas sem formação jornalística e sem vinculação com alguma empresa de comunicação de massa.

5 Para um resumo descritivo do caso New York Times v. Sullivan, veja-se: ANDRADE, André Gustavo Corrêa de. Liberdade de Expressão em Tempos de Cólera. Rio de Janeiro: GZ Editora. 2020, p. 29; e MELLO, Rodrigo Gaspar de. Op. cit., p. 57.

6 O STJ já se posicionou contrariamente à doutrina da malícia real nos seguintes julgados: REsp 1.408.120/DF, Resp 680.794/PR, Resp 1594865/RJ, Resp 1369571/PE e AgInt no AREsp 1120731/RJ.

7 Para uma apanhado da jurisprudência do STJ sobre o tema, veja-se MELLO, Rodrigo Gaspar de. Op. cit., p. 134.

8 Vejam-se: ADPD 601 MC; Rcl 30105; Tcl 43190 MC; Rcl 44590 MC; Rcl 44411 MC e Recl 16434 MC.

9 A posição preferencial da liberdade de expressão no direito constitucional brasileiro foi afirmada pelo STF nos julgamentos da ADPF 130, da ADPF 187/2011, da ADI 4815/2015 e da Reclamação 18.638/2018.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil