O risco na contemporaneidade: por um debate renovado sobre a caracterização das atividades perigosas
terça-feira, 4 de maio de 2021
Atualizado às 07:48
O debate acerca do risco de uma atividade para fins de imputação do dever de indenizar tem sido caracterizado por dificuldades significativas no campo da teoria do Direito, e na prática judiciária. Se por um lado a teoria o risco vem crescendo vertiginosamente no campo da responsabilidade civil, a percepção de que o seu tratamento pelo judiciário e pela doutrina vem se tornando, ao mesmo tempo, mais fluida e mais incerta, o que contribui para decisões que, se por um lado, no afã de proteger a vítima, buscam sua proteção, por outro, podem abrir espaço para uma insegurança jurídica o que, em última instância, poderia levar a uma completa responsabilização.
A questão ganha contornos ainda mais dramáticos diante da pandemia do novo coronavírus (COVID-19) que, mais uma vez, alerta a todos nós dos riscos globais a que estamos submetidos. Não apenas quanto aos riscos inerentes à própria doença, que vem devastando vidas e sistemas públicos e privados de saúde ao redor do mundo, mas, também, quanto às soluções aventadas pelos mais variados setores da sociedade e que trazem consigo riscos. O caso mais emblemático talvez seja sobre a imputação de danos causados pela utilização de vacinas contra a COVID-19, tida como o único caminho para pôr fim à crise sanitária mundial, mas que, ao mesmo tempo, pode produzir resultados danosos indesejados, tema que já foi enfrentado nessa coluna1.
Pretende-se com o presente texto dar contornos mais claros sobre o que risco pode significar para o campo das ciências jurídicas. A dificuldade é patente: desde a própria terminologia até a sua conceituação, não há unanimidade entre os autores2. O seu conceito ambivalente, plural e quase infindável afeta o uso metodológico e operacional do termo nas ciências naturais, biológicas e sociais.
Nesse ponto, as ciências jurídicas também não permaneceram à margem do debate, apesar de sua relativa demora em decorrência das peculiaridades que são inerentes à teoria do Direito. O desenvolvimento tecnológico veio a produzir um impacto significativo no âmbito da reparação dos danos, sobretudo na questão da responsabilidade pelo risco, cujo desenvolvimento foi intensificado em virtude do aumento exponencial dos prejuízos. Com a evolução tecnológica, as atividades humanas foram se expandindo e se tornando menos controláveis e os riscos foram se multiplicando: o prejuízo deixou de ser uma fatalidade e passou a ser uma probabilidade3. O surgimento desenfreado dos danos implicou numa mudança da consciência jurídica e humana para evitar o "cometimento de injustiças"4 e, consequentemente, o fundamento clássico da culpa tornou-se insuficiente para abarcar todas as situações desse novo mundo, pois ela abandonava a vítima e permitia que esta ficasse irreparada em inúmeras situações5.
Esse avanço construído pela jurisprudência e pela doutrina, nacional e estrangeira, foi historicamente importante para que a teoria da reparação dos danos pudesse alcançar novas funções e assegurar integralmente a reparação da vítima de uma atividade potencialmente danosa. Entretanto, não há clareza sobre o que é o risco do ponto de vista jurídico. Os textos normativos e doutrinários, em geral, costumam reconduzir a noção de risco à teoria do risco conceituando-o como um perigo especial de certas atividades que acaba por criar determinados riscos típicos, justificando a imputação do dever de indenizar àquele que domina a fonte de risco6. A partir dessa ideia, surgem inúmeras configurações do que caracteriza o risco, com especial relevância para alguns mais difundidos na cultura jurídica: o risco proveito, o risco criado, o risco profissional, o risco administrativo e o risco integral.
O risco proveito se qualifica pela ideia de que aquele que retira o proveito ou vantagem do fato de ser causador de um dano, fica obrigado a repará-lo7. A teoria do risco criado trata de uma concepção genérica que abarca um maior número de situações, pois exige, para sua configuração, o mero exercício de uma atividade perigosa8. No risco profissional a obrigação de reparar os danos decorre do desempenho de uma atividade profissional, ou laborativa. Tal risco poderia ser inserido, por exemplo, nos casos de acidentes de trabalho ou, ainda, nas hipóteses em que o empregado causa danos a terceiros9. Fala-se, ainda em risco administrativo, diretamente ligado às pessoas jurídicas de direito público. Por fim, é comum referir-se às hipóteses de risco integral: influenciada pelo campo do direito ambiental, consistiria numa obrigação de indenizar que não admite a exclusão da responsabilidade civil e, por via de consequência, obriga o sujeito a indenizar a vítima, ainda que os prejuízos sejam provenientes de causas estranhas à ação ou omissão. Trata-se de uma responsabilidade civil objetiva agravada10.
Embora as ciências jurídicas tenham se empenhado em definir um critério para explicar a teoria do risco a ponto de fazer incidir a responsabilidade definitiva, criando diversas modalidades de risco para as mais variadas situações, parece-nos que nenhuma dessas configurações se afigura adequada na realidade atual. Os modelos de risco até então presentes nas ciências jurídicas mantém um viés claramente ligado à noção de industrialização, profundamente enraizada ao final do século XIX e início do século XX. Seja o risco criado, proveito, profissional, administrativo ou integral, todos eles caminham na mesma direção: reconhecer o fenômeno da industrialização nos séculos antecedentes e, portanto, imputar a responsabilidade a quem desenvolve uma atividade perigosa. De certo que todos os modelos têm importante valor teórico e não podem ser desconsiderados, especialmente o conceito de risco criado que, de todos, é o que ainda guarda maiores aplicações no ordenamento jurídico brasileiro.
A tema é ainda mais delicado quando se tem em conta que a assunção de riscos em nossa sociedade é um elemento nuclear de uma economia dinâmica e de uma sociedade inovadora. Afinal, como lembra Anthony Giddens, é preciso ser ousado no apoio à inovação científica e outros meios de mudança, trazendo o debate dos riscos à arena política de modo mais direto11.
Nesse ponto, parece interessante a distinção traçada na década de 70 pelo Tribunal Constitucional Alemão, quando do julgamento da histórica Decisão Kalkar. O referido Tribunal buscou diferenciar o que seria risco residual ou tolerável, risco intolerável e risco. O primeiro é caracterizado como um risco que não se pode eliminar, isto é, insuprimível numa sociedade tecnológica. Consiste num risco aceito pela sociedade que aprecia o progresso e o acréscimo do bem-estar produzido pela tecnologia. O risco intolerável pode ser entendido como a possibilidade de ocorrência de danos que uma sociedade, temporalmente identificada, rejeita em razão de uma ética vigente. E, por fim, o risco tout court, correspondente à margem de incerteza relacionada com a utilização da tecnologia pela sociedade, que traz benefícios gerais, mas pode acarretar danos graves. No caso, discutia-se a constitucionalidade do art. 7, § 2º, nº 3, da Lei de Energia Atômica em decorrência da anulação judicial de uma autorização administrativa para implantação de um novo reator na central nuclear de Kalkar. O Tribunal Constitucional, considerando que compete à Administração a avaliação e a gestão do risco, definido a partir da cláusula do "estado da técnica", que operacionaliza uma "proteção dinâmica" dos direitos fundamentais, permitindo uma técnica de minimização de riscos, entendeu que o risco residual constitui um preço civilizacional e um garante da liberdade do espírito humano. Assim, consequentemente, nenhuma responsabilidade poderia advir dele. Ao seu lado, decidiu o Tribunal, contrapõe-se o risco intolerável, cuja gestão é de competência da Administração12.
Embora todas as teorias anteriormente expostas sejam louváveis, elas não fornecem instrumentos que permitam ao magistrado identificar com segurança jurídica o que efetivamente é o risco inerente a uma atividade considerada tecnicamente perigosa e quais fatos estão inseridos no "risco da atividade". Qual seria o risco tolerável e o risco intolerável? Tal fato é extremamente relevante, pois implicará na possibilidade, ou não, de exoneração do agente que explora a atividade perigosa.
O conceito de risco vem sendo alterado radicalmente e acaba sofrendo influência de aspectos objetivos e subjetivos. Embora o tema do risco tenha sido tratado basicamente do ponto de vista estatístico13 e econômico, as últimas décadas foram profícuas no campo da sociologia, antropologia, psicologia e das ciências políticas. Consequentemente, visualiza-se uma nova configuração social, que traz no seu bojo a consciência de que a sociedade não tem mais como evitar o risco, mas apenas escolher quais assumir14.
O risco deve ser tratado não apenas nas perspectivas tecnocientíficas, pautadas pelo aspecto objetivo das probabilidades, mas, especialmente, nas perspectivas socioculturais, que se valem do contexto social e cultural em que o risco é entendido, vivido, concretizado e negociado. Diante desse cenário, é possível perceber que os riscos são construídos enquanto fatos sociais, na medida em que se tornam conceitos cada vez mais centrais na existência humana e que devem ser, também, gerenciados e tratados pelos seus produtores15.
O risco, portanto, não é um mero debate acidental nas sociedades, mas aspecto central, objeto de estudo, mensuração e controle, que afeta decisivamente o campo normativo. As novas definições de risco foram incorporadas pelos ordenamentos jurídicos, notadamente no campo da reparação dos danos. O contínuo desenvolvimento tecnológico trouxe a reboque das forças produtivas inúmeros riscos decorrentes desse processo de modernização, caracterizando uma ameça aos interesses juridicamente protegidos no ordenamento, o que exige uma postura ativa e crítica na análise do conceito de risco. O reconhecimento de que o homem é o produtor dos próprios desastres16 reforça a noção de que os riscos a que estamos expostos decorrem, em grande parte, da ação humana direta ou indireta.
Nesse ponto, a causalidade passa a ser profundamente afetada, exigindo um repensar sobre como identificar quais riscos se encontram na esfera jurídica do criador de uma atividade perigosa, mas que não necessariamente guardam uma conexão clara e evidente, em virtude da ausência de informação técnica suficiente para conhecer as possíveis consequências do desenvolvimento da referida atividade. O risco passa a ditar os caminhos da reparação dos danos. Percebeu-se, então, que o conceito de causalidade até então debatido pelas ciências jurídicas não eram aptas a dar conta de toda a multiplicidade de situações decorrentes dos novos riscos criados, levando ao aprofundamento da complexidade causal.
É preciso buscar o equilíbrio jurídico e a segurança, necessários aos desconhecidos e graves desafios da atualidade. O reconhecimento do risco influenciado pelas ciências sociais, poderá ajudar a superar os profundos entraves dessa cultura de irresponsabilização dos produtores de riscos. Embora importante, especialmente para fins de políticas públicas e de regulação, o cálculo probabilístico falha do ponto de vista social17, pois na análise social, todas as eventualidades restam abertas para o caso concreto e, por conta disso, no plano da reparação dos danos justifica-se um conceito de risco pautado por aspectos sociológicos que permitam depurar de forma mais adequada o conteúdo da atividade perigosa, construção essa que dependerá necessariamente de um esforço da doutrina e da jurisprudência.
*Rafael Viola é doutorando em Ciências Jurídico-Civis pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor do Curso de Direito do Ibmec/RJ.
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1 EHRHARDT JÚNIOR, Marcos. Afinal, de que responsabilidade estamos falando? Breves notas sobre a eventual imputação de danos causados pela utilização de vacinas contra a Covid-19. Disponível aqui, acesso em 01.05.2021.
2 Como lembra Caio Mário Pereira da Silva, risco "é um conceito polivalente". (SILVA, Caio Mário Pereira da. Responsabilidade civil. Atualizador Gustavo Tepedino. 10 ed. rev. atual. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 369).
3 RIPERT, Georges. A regra moral nas obrigações civis. Campinas: Bookseller, 2002, p. 213.
4 LIMA, Alvino, Culpa e Risco. 2ª edição revista e atualizada pelo Prof. Ovídio Rocha Barros Sandoval, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais: 1998, p. 114.
5 SILVA, Wilson Melo da. Responsabilidade sem culpa. 2ª Ed. São Paulo: Saraiva, 1974, p.163.
6 MONTEIRO, Jorge Sinde. Estudos sobre a responsabilidade civil. Coimbra, 1983, p. 19.
7 SILVA, Caio Mário Pereira da. Op. cit., 2012, p. 372.
8 UEDA, André Silva Rasga. Responsabilidade civil nas atividades de risco - um panorama atual a partir do código civil de 2002. São Paulo: Arte & Ciência, 2011, p. 171.
9 TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil objetiva e risco - a teoria do risco concorrente. São Paulo: Método, 2011, p. 162.
10 NORONHA, Fernando. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introdução à responsabilidade civil. 2ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 485.
11 GIDDENS, Anthony. Conversas com Anthony Giddens: o sentido da modernidade. Rio deJaneiro: Editora FGV, 2000, p. 148.
12 Sobre o tema, sugere-se a leitura de GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de proteção do ambiente. Dissertação de doutoramento em ciências jurídico-políticas da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Lisboa: Edição da Autora, 2012.
13 Nesse campo, o risco é tratado como um produto das probabilidades e consequências de um evento adverso, muito utilizado na área de seguros. Sobre o tema, v. LUPTON, Deborah. Risk. 2nd ed. London: Routledge, 2013.
14 KAPLAN, Stanley et GARRICK, B. John. On the quantitative definition of risk. In: Risk analysis. Vol. I, nº 1, 1981, p. 11.
15 LUPTON, Deborah. Op. cit., 2013, p. 37.
16 BECK, Ulrich. The brave new world of work. Cambridge: Polity Press, 2000, Ebook reader, p. 23.
17 DOUGLAS, Mary, e WILDAVSKY, Aaron. Risco e cultura: um ensaio sobre a seleção de riscos tecnológicos e ambientais. Trad. Cristiana de Assis Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 184.