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Saber ou dever saber? Eis a questão.

quinta-feira, 25 de março de 2021

Atualizado às 08:33

Embora o título não seja, exatamente, shakespeariano, a questão endereçada pelo mesmo também suscita reflexões profundas. Numa relação desenvolvida entre os contratantes A e B, ambos pessoas físicas, eventual contrato celebrado apresentará os direitos e deveres de cada qual. No que interessa à presente análise, A e B, por força do contrato, sabem o que devem cumprir. E.g., o empregador paga salários aos seus empregados, o locador disponibiliza o imóvel ao locatário e a construtora conclui o empreendimento imobiliário para o adquirente. Não se controverte quanto à presença do saber nesses deveres.

É que nesta espécie de relação jurídica ocupada por pessoas físicas, a imputação torna-se mais simples e, portanto, facilitadora do conhecimento dos respectivos direitos e deveres. Imagine-se que A e B sejam, ao revés, complexas sociedades anônimas, cujas administrações sejam compostas por dezenas de diretores, além de conselheiros fiscais e de administração. O saber, ou melhor, esta imputação direta, própria à relação concebida pelas pessoas físicas, apresentar-se-ia da mesma maneira?

Para responder à presente questão, deseja-se remeter o leitor a dois casos já examinados por tribunais brasileiros num passado recente e que, por sua notoriedade, ficaram marcados na história de nosso país.

O primeiro caso trata da aquisição da Refinaria de Pasadena, localizada no Golfo do México, nos Estados Unidos da América, pela Petrobrás. O negócio foi concluído em 2006 e a estatal brasileira desembolsou o equivalente a US$ 1,249 bilhões de dólares norte-americanos para tanto. Inúmeras denúncias de corrupção, de mau aproveitamento de recursos públicos, de gestão temerária da companhia, entre outros males, foram à empresa petrolífera, representada por sua alta diretoria/conselho de administração.

Para que se possa dimensionar corretamente os prejuízos causados à empresa e a seus acionistas, basta verificar que em 2019 esta mesma refinaria foi vendida à Chevron, por US$ 467 milhões de dólares norte-americanos. Fazendo um cálculo despretensioso, tem-se que a diferença entre o valor pago e o recebido pela Petrobrás foi de US$ 782 milhões de dólares norte-americanos, ou seja, um deságio enorme para a empresa e seus stakeholders.1

O Tribunal de Contas da União investigou o caso e, nesse sentido, deflagrou diversos processos administrativos contra a Petrobrás e seus diretores. A conclusão, de ampla divulgação ao público, foi no sentido de responsabilizar os membros da diretoria e do conselho de administração à época, designadamente por violação ao dever de diligência. Segundo o entendimento do relator, Ministro Vital do Rêgo, "[...] os fatos aqui narrados não se configuram em prejuízos advindos de um risco negocial, inerente à tomada de decisão pelo administrador, mas sim em desídia, na medida em que os responsáveis não se valeram do devido cuidado para garantir decisões refletidas e informadas".2

O cotidiano da administração de uma grande companhia é mesmo muito complexo. Uma miríade de informações, de pressões as mais diversas, de deveres etc. passam pela alta administração e podem vir a carecer do tratamento adequado.

À diferença da mencionada relação concebida entre A e B, pessoas físicas, na qual ambos são perfeitamente conhecedores de seus direitos e deveres - lembrando do título do presente artigo, aqui os participantes efetivamente sabem - no caso da aquisição da refinaria de Pasadena um argumento de defesa da, à época, Presidenta do Conselho de Administração da Petrobrás, Sra. Dilma Roussef, a respeito da magnitude do sobrepreço e da utilização precária pela companhia, tornou-se célebre, qual seja: "eu não sabia"3. Assim, a esfera do saber ficaria num segundo plano para, então, ceder espaço à do dever saber.

Noutras palavras, se A e B, pessoas físicas, numa hipotética relação de emprego, locação ou construção civil, não podem alegar o desconhecimento de seus deveres a fim de descumpri-los, no caso da aquisição da refinaria de Pasadena, a Presidenta do Conselho de Administração da Petrobrás, Sra. Dilma Roussef, poderia defender-se ao argumento de que não sabia? Em síntese, a alta administração de uma sociedade pode, juridicamente, não saber ou, ao contrário, o ordenamento lhe impõe um dever saber?

O segundo caso que se deseja relembrar refere-se à tragédia ocorrida em Brumadinho (Minas Gerais), que culminou com a morte de 270 pessoas, como consequência do rompimento de barragem de propriedade da Vale S.A.

Da mesma maneira que o primeiro caso objeto de nossos comentários, o presente também foi amplamente noticiado pela mídia e, mais recentemente, teve-se notícia de que a mineradora firmou um acordo com diversas autoridades responsáveis para pagar o equivalente a R$37 bilhões de Reais.4

A propósito do dever saber, os fatos pertinentes a este caso também merecem um olhar atento. É que pouco tempo antes da catástrofe, ocorrida em 25/01/2019, teve-se conhecimento de que a empresa responsável pela manutenção da barragem teria entregue à diretoria e ao conselho de administração da Vale um relatório que chamava a atenção a problemas naquela estrutura, havendo, inclusive, o risco de colapso.

Entre outros argumentos, membros do conselho de administração da Vale argumentaram que não tiveram conhecimento do mencionado relatório, que teria permanecido nas mãos de escalão inferior da governança da companhia. À alta diretoria da mineradora - diretor presidente, presidente do conselho de administração, ou até mesmo conselheiros independentes - é lícito formular defesa calcada no não saber?

A doutrina societária, ao comentar o art. 153 da lei 6.404, de 15.12.1976, é uníssona ao criticar a redação apresentada por esse dispositivo. Onde se lê: "o administrador da companhia deve empregar, no exercício de suas funções, o cuidado e diligência que todo homem ativo e probo costuma empregar na administração dos seus próprios negócios", deveria constar todo homem ativo e probo de negócios. (Grifou-se). E isto porque, de maneira lógica, o nível de qualificação exigido de administradores é bastante elevado, considerando as dificuldades próprias ao exercício de sua função.5

Respeitosamente, a diligência do dono de uma pequena mercearia de bairro não é equivalente ou comparável à diligência do presidente do conselho de administração da Vale ou da Petrobrás. Aristotelicamente, é preciso tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida em que se desigualem. Além disso, a alta qualificação e a elevada valorização dos respectivos cargos mantêm em equilíbrio o grau de exigência e profissionalismo esperado desse profissional.

A reflexão já apresentada, de viés societário, como se observou, não tem nada de novidadeira. Tanto perante o Tribunal de Contas da União, quanto perante a CVM, é fácil encontrar acórdãos no sentido de responsabilizar os administradores por violação ao dever de diligência, especificamente, ao dever de se informar de maneira adequada por ocasião da tomada de uma decisão.6

Deseja-se adicionar à reflexão societária o ingrediente civil, o que foi detidamente observado por João Baptista Villela7 e Flávio Tartuce.8 Villela inicia propondo o quanto segue:

No âmbito do direito privado, os valores envolvidos são outros. Mas o raciocínio é fundamentalmente o mesmo. Há uma ética jurídica do conhecimento. E outra ética que trabalha no espaço do não saber, para o fim de, sendo este culpável, impor deveres ou estados de sujeição a quem não o tenha buscado e obtido. Em princípio, não são necessariamente iguais, do ponto de vista moral, a responsabilidade de quem age sabendo e de que age não sabendo, mesmo devendo saber. Assumir esta diferença agravaria enormemente os custos de operação dos sistemas jurídicos. E com tanto mais ônus quanto mais refinadas fossem as diferenças reconhecidas. Daí porque é um comportamento generalizado nos sistemas de direito do Ocidente identificar o saber com o não saber culposo. Saber ou dever saber são juridicamente uma única e mesma coisa. Máxima de antiga extração já estabelecida: paria sunt scire, vel scire debere.9

E Tartuce, ao analisar a afirmação de Villela, a aprofunda e traz ao leitor diversos dispositivos constantes no Código Civil que, expressamente, impõem o mencionado dever saber:

Como leciona o próprio Villela, várias são as previsões do Código Civil Brasileiro que equiparam o saber com o dever saber, mesmo com efeitos jurídicos, o que deve atingir o seguro empresarial, pela posição econômica das partes. Destacam-se, de início, os dispositivos que tratam de anulação do negócio jurídico por dolo ou coação de terceiro, quando o negociante beneficiado sabia ou deveria saber desse vício de vontade. Consoante o art. 148 da codificação privada, pode ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário, ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e danos da parte a quem ludibriou. A coação de terceiro vicia o negócio jurídico, se dela tivesse ou devesse ter conhecimento a parte a quem aproveite, e esta responderá solidariamente com aquele por perdas e danos (art. 154 do Código Civil). [...]10

Agora observando o regramento aplicável ao direito das sociedades, o eminente civilista arremata:

 

Em matéria de sociedades, de igual modo equiparando o saber com o dever saber, estatui o art. 898 do Código Civil Brasileiro que os bens sociais respondem pelos atos de gestão praticados por qualquer dos sócios, salvo pacto expresso limitativo de poderes, que somente terá eficácia contra o terceiro que o conheça ou deva conhecer. Além disso, a distribuição de lucros ilícitos ou fictícios acarreta responsabilidade solidária dos administradores que a realizarem e dos sócios que os receberem, conhecendo ou devendo conhecer-lhes a ilegitimidade (art. 1.009 do Código Civil). Por fim, o art. 1.013 da codificação material prescreve que a administração da sociedade, anda dispondo o contrato social, compete separadamente a cada um dos sócios. Entretanto, responde por perdas e danos perante a sociedade o administrador que realizar operações, sabendo ou devendo saber que estava agindo em desacordo com a maioria (§ 2º do último comando).11 

A conjugação das análises societária e civil a respeito do saber vis à vis o dever saber revela que o administrador de sociedades, com efeito, não pode valer-se de evasivas respaldadas por um direito ao não "dever saber", simplesmente porque este direito não pode ser arguido.

Com essa assertiva em mãos, o leitor poderá pensar que o espectro de responsabilidade desses profissionais tornar-se-ia amplo demais, e, portanto, de absorção muito difícil. Ora, à luz dessa resistência, é preciso ter em mente que os dois casos relatados trataram de temas centrais à administração das duas companhias. No primeiro, lembre-se, a aquisição foi de uma refinaria avaliada em quantia superior a um bilhão de dólares norte-americanos, ao passo que o segundo caso tratou de uma das piores catástrofes ambientais da história brasileira, valendo lembrar que a derrocada da barragem de Brumadinho foi antecedida pelo também gravíssimo episódio de Mariana (Minas Gerais), com severos impactos nos Estados de Minas Gerais e Espírito Santo, no ano de 2015.

Quer-se afirmar, dessa maneira e, assim, propondo um critério, que temas relevantes à administração das sociedades não podem deixar de ser observados por suas altas diretorias/conselhos de administração. É por isso e para isso que os mesmos são investidos. Sustentar o contrário equivaleria a atribuir a esses diretores bônus relevantes, representados por suas remunerações, livres de quaisquer ônus.

Seja do ponto de vista societário ou civil, o ordenamento jurídico brasileiro efetivamente dispõe a respeito de um dever saber e, como se viu, não apenas um saber que, na arena do direito societário, poderia representar uma espécie de salvo-conduto mágico capaz de livrar os administradores de suas responsabilidades ou, o que seria ainda pior, de incentivar a adoção da presumivelmente trágica cegueira deliberada com relação a temas sensíveis, que traduzem essencialmente o que se espera daquele gestor. Afinal, é justamente em casos emblemáticos como os mencionados acima que se espera do administrador que saiba e aja em prol dos interesses dos stakeholders que nele confiam. 

Finalizando estas brevíssimas reflexões, deseja-se trazer um diálogo que se tornou célebre entre um dos mais populares super-heróis de todos nossos tempos, o Homem-Aranha, criado em 1962 por Stan Lee, e seu Tio Ben. Disse-lhe seu Tio: "Com grandes poderes vêm grandes responsabilidades".12 O saber e o dever saber, nesse sentido, possuem o mesmo significado e, logicamente, as mesmas consequências jurídicas.  

*Ilan Goldberg é advogado e parecerista. Doutor em Direito Civil pela UERJ. Mestre em Regulação e Concorrência pela Universidade Cândido Mendes - Ucam. Pós-graduado em Direito Empresarial LLM pelo Ibmec. Professor convidado da EMERJ, da Escola de Negócios e Seguros (ENS-Funenseg) e da Escola de Direito da FGV. Membro do Conselho Editorial da Revista de Direito Civil Contemporâneo - RDCC. Sócio de Chalfin, Goldberg & Vainboim Advogados Associados.

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1 O noticiário a respeito é vasto. Exemplificativamente, "Prejuízo de Pasadena foi de US$ 798 milhões ou mais de US$ 1 bi?". Disponível aqui, visitado em 9.3.2021.

2 Fonte: Tribunal de Contas da União. Relator Min. Vital do Rêgo. TC nº. 025.551/2014-0. Sessão: 11/10/2017. Acórdão nº. 2.284/2017 - Plenário.

3 Confira-se, exemplificativamente, as seguintes fontes:  clique aqui e clique aqui, visitadas em 09.03.2021.

4 O valor exato do acordo foi de R$ 37.689.767.329,00, e foi firmado pela Vale S.A. com o Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais e os Ministérios Públicos Federal e do Estado de Minas Gerais.

5 "São insuficientes os atributos de diligência, honestidade e boa vontade para qualificar as pessoas como administradores. É necessário que se acrescente a competência profissional específica, traduzida por escolaridade ou experiência e, se possível, ambas. O próprio art. 152 expressamente estabelece esses requisitos, ao falar em competência, reputação profissional e tempo de dedicação às suas funções". (MARTINS, Fran. Comentários à lei das sociedades anônimas. v 2. t. 1. Rio de Janeiro: Forense, 1978. p. 361-362).

6 A respeito do TCU, é valida a referência ao próprio processo administrativo que cuidou da aquisição da refinaria de Pasadena, pela Petrobras. (Vide a nota de rodapé nº. 2). Da CVM, refere-se ao Processo Administrativo Sancionador CVM n.º 14/2014.

7 VILLELA, João Baptista. Apontamentos sobre a cláusula 'ou deveria saber'. In Revista Trimestral de Direito Civil. Rio de Janeiro, v. 38. p. 161-178, out./dez. 2007.

8 TARTUCE, Flávio. Do contrato de seguro empresarial e algumas de suas polêmicas: natureza jurídica, boa-fé e agravamento do risco. In. Temas atuais de direito dos seguros. Coord. GOLDBERG, Ilan. JUNQUEIRA, Thiago. T. I. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. p. 530-554.   

9 Idem. p. 163.

10 TARTUCE, Flávio. op. cit. p. 543.

11 Idem. p. 544.

12 Para examinar o diálogo em Português, seja permitido referir aqui . A frase, no original em inglês - "With great power comes great responsibility", é correntemente empregada pela mídia em meios os mais variados. Referências: With great power, comes great responsibility. The Malta Independent». www.independent.com.mt.  Is CRISPR really a gene-ius discovery? The Daily Campus.; Editor, Parker Otto. Marvel Cinematic Universe evolves film itself. Northern Star Online (em inglês); Steve Ditko's Gift To All: With Great Power Comes Great Responsibility'. The Federalist. 9 de julho de 2018. Consultados em 9.3.2021.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).