Responsabilidade civil do Estado e danos sociais: atos e omissões que prejudicam a sociedade
quinta-feira, 18 de março de 2021
Atualizado às 08:30
Com o advento da pós-modernidade, trazendo consigo todas as suas dimensões (sociedade do risco, sociedade da informação, sociedade de consumo, sociedade pós-industrial, etc.), algumas condicionantes diferenciadoras influenciam diretamente nosso contexto social e, como não poderia ser diferente, o sistema formado pelo Direito.
Dentre essas, destaco o surgimento de riscos e danos que antes não estavam presentes em nosso cotidiano e que acabam exacerbados pela massificação do consumo e pela interconexão das pessoas em uma sociedade cada vez mais global. Agrava-se essa situação pela consequente incerteza que paira sobre o conhecimento científico, anteriormente tido como inafastável em sua racionalidade.
Nesse contexto social, econômico, cultural e jurídico, o instituto da responsabilidade civil está no front da inovação com objetivo de acompanhar as demandas que surgem dessa realidade. Como aponta Teresa Ancona Lopez1, a evolução da responsabilidade civil, com a ascensão da vítima do dano ao papel central e sua reparação integral como objetivo, caracteriza o instituto como um verdadeiro "Direito de Danos". Ou, como afirma Nelson Rosenvald2, o ordenamento jurídico ainda encontra fundamento na lógica reativa, patrimonialista e individualista, pela qual a reação a comportamentos indesejados só se verifica após a consumação do dano.
Diante da constante e necessária transformação do direito frente à dinâmica social, temos o reconhecimento de novos danos (dano estético, danos morais coletivos, danos por perda de uma chance, danos sociais), que ao lado dos danos clássicos ou tradicionais (danos materiais e danos morais) compõem o sistema de responsabilidade civil de nosso ordenamento jurídico.
Com relação à coletivização dos danos, a comissão de responsabilidade civil da V Jornada de Direito Civil, no ano de 2011, aprovou o Enunciado nº 456, com o seguinte conteúdo: "a expressão 'dano', no art. 944, abrange não só os danos individuais, materiais ou imateriais, mas também os danos sociais, difusos, coletivos e individuais homogêneos, a serem reclamados pelos legitimados para propor ações coletivas".
Para o presente ensaio, o dano que analiso é o social, considerado por Antônio Junqueira de Azevedo3, "como uma nova modalidade de dano que se caracteriza por lesões à sociedade, no seu nível de vida, tanto pelo rebaixamento de seu patrimônio moral, principalmente a respeito da segurança, quanto pela diminuição de sua qualidade de vida".
Os danos sociais são diferentes dos danos morais coletivos. Num primeiro aspecto por terem efeitos de natureza patrimonial ou extrapatrimonial, enquanto os danos morais coletivos são de natureza unicamente extrapatrimonial. O segundo aspecto diferenciador está na determinação das vítimas. Enquanto nos danos morais coletivos as vítimas são determinadas ou determináveis, nos danos sociais as vítimas são indeterminadas, padecendo toda a sociedade, de forma difusa, dos efeitos prejudiciais causados.
Partindo dessas premissas, o ensaio que apresento traz o questionamento quanto à aplicação da responsabilidade civil do Estado por atos que conduzam à causação de danos sociais. O pano de fundo da análise é a situação excepcional causada pela pandemia Covid-19 e a ineficiência de sua gestão por parte do poder executivo federal. É transparente a condição de ineficiência da administração pública federal no que se refere à alocação de recursos, criação de políticas públicas emergenciais, informação à população e adoção de medidas de combate à proliferação e contágio da doença.
Inicialmente, vale recordar que o Estado, como pessoa jurídica, é um ser imaterial que se faz presente no mundo jurídico por meio de seus agentes, pessoas naturais cuja conduta é a ele imputada.
Dessa forma, quando tratamos da responsabilidade civil do Estado, temos três sujeitos envolvidos: o Estado, o lesado e o agente do Estado. Neste quadro, o Estado é civilmente responsável pelos danos que seus agentes causarem a terceiros, devendo reparar os prejuízos causados, mediante obrigação de custear as indenizações devidas.
Com a edição do Código Civil de 2002 e seu art. 434, alinhado à previsão constitucional do art. 37, § 6º5, da Constituição Federal, se extingue a anterior controvérsia quanto à natureza da responsabilidade, fixando a teoria da responsabilidade objetiva como a adotada por nosso ordenamento jurídico como aplicável ao Estado.
Quanto aos representantes do Estado, a norma trata de agentes, termo que tem sentido amplo, como ensina José dos Santos Carvalho Filho, devendo ser considerados como agentes do Estado todas aquelas pessoas cuja vontade seja imputada ao Estado, sejam pertencentes aos mais elevados níveis hierárquicos e tenham amplo poder decisório, sejam ocupantes de cargos de menor poder e hierarquia, desde que no exercício de suas funções administrativas.
No que se refere à conduta dos agentes, estas podem ser comissivas e/ou omissivas, devendo estar presentes os elementos fato administrativo, dano e nexo causal. Com relação à situação trazida como paradigma, temos condutas comissivas caracterizadas por medidas administrativas ineficazes, orientações equivocadas, falhas administrativas. Em conjunto, temos condutas omissivas concernentes à ausência de planejamento estratégico e logístico quanto ao atendimento à população, inércia na aquisição de insumos e equipamentos e na prestação de informações que pudessem orientar os cidadãos. Vários são, portanto, os fatos administrativos verificáveis como causadores de danos à sociedade de forma difusa.
Esses danos, ditos sociais, no aspecto abordado pelo estudo, apresentam todas as características do conceito: afetam a segurança das pessoas e sua qualidade de vida, colocam em risco, de forma difusa, a saúde da população, impedem a retomada segura de atividades normais da vida cotidiana.
O nexo causal também se apresenta. Alguns liames como exemplo: a ausência de um plano de controle do contágio (omissão) permitiu que muitas pessoas fossem contagiadas em um curto espaço de tempo, levando ao colapso do sistema de saúde e a morte de muitos indivíduos que poderiam ter recebido tratamento adequado e não receberam.
Outro exemplo: o comportamento ambíguo e negacionista dos agentes estatais somado à propagação de tratamentos sem comprovação científica levou diversas pessoas a assumir comportamento idêntico, o que aumentou a propagação do vírus e ocasionou mortes e internações que poderiam ter sido evitadas.
No meu entendimento não resta dúvida da presença dos elementos caracterizadores da responsabilização civil do Estado (fato administrativo, dano e nexo causal). Mas a inquietação que ainda persiste diz respeito à possibilidade da imputação dos danos sociais no âmbito da responsabilidade civil do Estado. Pela análise realizada, por óbvio sem pretender ser exauriente, o posicionamento é pela possibilidade de imputação da responsabilidade civil do Estado pelos danos sociais causados neste momento excepcional pelo qual passamos.
Quanto à reparação pecuniária, como é da natureza dos danos sociais o valor não ser destinado às vítimas determinadas ou potenciais, este deve ser destinado ao Fundo Nacional de Saúde, instituído pelo Decreto nº 64.867, de 24 de julho de 1969. E, por fim, não se pode deixar de fiscalizar as eventuais ações regressivas em busca do ressarcimento dos valores pagos a título de indenização em face dos agentes públicos que concorreram para a efetivação dos danos, considerando a existência de culpa.
Acredito que, dessa forma, o instituto da responsabilidade civil estará atingindo seus fins sociais, bem como sua função punitiva e inibidora, conforme aponta Felipe Braga Netto6, com quem humildemente concordo. O agente público, em especial aqueles com grande poder de decisão, ocupantes dos altos cargos de gestão, devem ter em mente a busca pela eficiência bem como a atuação conforme os ditames constitucionais, pautados por subsídios técnico-científicos e compreendendo os limites de sua discricionariedade e o interesse público que, ao final, se resume à consecução da ordem constitucional quanto aos direitos e garantias fundamentais.
*Luis Miguel Barudi é doutor pela UNIOESTE. Mestre pela PUC/PR. Advogado fundador do Escritório Barudi e Barp Salgado Advogados. Professor do Centro Universitário UDC - Foz do Iguaçu/PR. Membro do IBERC - Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil. Membro do Grupo de Pesquisa Constitucionalismo e Estado Contemporâneo - UNIOESTE. Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da Subseção de Foz do Iguaçu da OAB (2019/2021).
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1 LOPEZ, Teresa Ancona. Princípio da precaução e evolução da responsabilidade civil. São Paulo: Quartier Latin, 2010 p. 76-77.
2 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p.77.
3 AZEVEDO, Antonio Junqueira de. Por uma nova categoria de dano na responsabilidade civil: o dano social. In: FILOMENO, José Geraldo Brito; WAGNER JÚNIOR, Luiz Guilherme da Costa; GONÇALVES, Renato Afonso (Coord.). O Código Civil e sua interdisciplinaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. p. 376.
4 CC - Art. 43. As pessoas jurídicas de direito público interno são civilmente responsáveis por atos dos seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.
5 CF - Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[...]
§ 6º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
6 BRAGA NETTO, Felipe. As novas funções da responsabilidade civil: A função punitiva em casos concretos. 2019. Disponível aqui. Acesso 09 fev 2021.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).