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A adoção de tutelas específicas voltadas à educação parental como instrumento de promoção da função preventiva da Responsabilidade Civil no âmbito do Direito de Família

terça-feira, 2 de março de 2021

Atualizado às 09:36

No ano de 1989 a música que se tornaria um dos maiores sucessos do grupo Legião Urbana, "Pais e filhos", evocava as agruras da relação paterno-materno/filial, retratando expectativas quanto à performance de sujeitos que, nada obstante investidos no dever de cuidado da prole, nem sempre conseguiam dele se desincumbir. Na derradeira estrofe, a canção incitava filhos ao compartilhamento de uma visão humanizada dos genitores entoando: "Você culpa seus pais por tudo, isso é absurdo. São crianças como você. O que você vai ser quando você crescer?".

Já se reconheceu que as relações familiares não estão imunes à violação de direitos e interesses de seus protagonistas, abandonando-se a concepção de que o Direito de Família veleja por águas sacralizadas, blindadas às repercussões da Responsabilidade Civil. De fato, a família tanto pode se convolar no espaço (físico e psíquico) que produz pessoas felizes e emocionalmente competentes, quanto em ambiente que fomenta dor, trauma e desequilíbrio. De todo modo, registra Freud, o referido espaço não deve ser vislumbrado como soma de indivíduos, mas sim universo de relações1; conjunto vivo, pulsante e cambiante, onde as interações invariavelmente deflagram conflitos, falhas e excessos.

Sob o enfoque das vivências paterno-materno/filiais, partindo-se do pressuposto que o eventual déficit na atuação parental é juridicamente apreciável e que sua ocorrência configura ato ilícito, restando presentes os demais pressupostos exigidos para a configuração do dever indenizatório (culpa, dano e nexo causal), cumpre investigar sob quais critérios a reparação ocorrerá, especialmente diante das particularidades do vínculo em questão2.

Ao se analisar a evolução da Responsabilidade Civil é possível inferir que o fluxo do seu corpo teórico espelha a remodelação da função primordialmente desempenhada pelo instituto. Ou seja, a chave que conduz a movimentação pendular da Responsabilidade Civil é a função que, num dado momento histórico, prevalece em face das demais. Por essa razão, parte-se inicialmente da censura do agente ofensor - que traz consigo um escopo punitivo e persecutório, centralizado na culpa -; para, na sequência, dirigir-se à reparação do dano - lançando holofotes na ressarcibilidade da vítima, que personifica, em última instância, a pessoa humana e a sobrevalorização de sua dignidade -; alojando-se, ato contínuo, na prevenção da conduta lesiva - com o nítido propósito de resguardar o ofendido dessa própria condição.

Vale anotar que o movimento ao qual aqui se reporta, o pendular, tem por intuito conjurar simbolicamente um modelo de transição dinâmica e sem rupturas entre os vetores da Responsabilidade Civil. Significa dizer que os paradigmas de sanção, reparação e prevenção da Responsabilidade Civil não se desdobram ao longo do tempo mediante um processo disruptivo, de substituição ou conversão; não superam um ao outro, mas se associam de modo a tutelar, dentro de determinado conjunto de valores e instrumentos-padrão, o protagonismo de um e a coadjuvância de outros, sem a supressão de qualquer deles.

Nessa toada, é possível afirmar que a culpa - elemento central do modelo de Responsabilidade Civil edificado no século XIX - é revisitada segundo um critério de diligência3. Não é, portanto, desconsiderada, apenas vislumbrada por outras lentes, apartada de um conteúdo estritamente moral e conciliada a um desígnio social. De igual modo, o propósito indenizatório prossegue permeando o instituto, passando a prestigiar, porém, uma postura mais garantista e acautelatória dos interesses em xeque4. 

Nada obstante subsista uma benquista aliança entre os vetores sancionatório e indenizatório da Responsabilidade Civil, assume agora o instituto particular apreço por sua matiz preventiva5, fundada na adoção de medidas proativas e protetivas vocacionadas à não instalação ou cessação do ilícito. Rende-se, desse modo, a Responsabilidade Civil ao enaltecimento de direitos e garantias fundamentais da pessoa humana, reverenciada na integralidade de suas dimensões (patrimonial, moral, existencial). 

No campo dos ilícitos parentais, a perspectiva preventiva da Responsabilidade Civil assume destacada importância em razão de quatro aspectos: (a) a baixa eficácia restaurativa da compensação financeira dos danos oriundos da relação paterno-materno/filial - notadamente em virtude da miríade de prejuízos imateriais passíveis de verificação -; (b) a indução daqueles que estão à testa do poder familiar na falácia de que a disponibilidade de recursos financeiros autoriza a prática lesiva; (c) o risco de precificação do cuidado, cujo desempenho no plano familiar é crucial para o desenvolvimento da personalidade infante; e, por fim, (d) a particular situação da vítima (efetiva ou potencial) que, ou prosseguirá assujeitada ao risco/dano diante da permanência no núcleo familiar, ou ingressará nas fileiras do acolhimento institucional e da (sabidamente longa) espera por adoção.

Sobressai deste diagnóstico que o remédio tradicionalmente utilizado pela Responsabilidade Civil para a recomposição de danos, qual seja a tutela do equivalente pecuniário, não atende satisfatoriamente à proteção privilegiada outorgada pelo ordenamento a crianças e adolescentes, tolhendo do instituto sua operabilidade e socialidade. Logo, também no que concerne aos atos ilícitos decorrentes da relação paterno-materno/filial, deve promover a Responsabilidade Civil a transmutação de seus mecanismos de atuação, partindo da pretensão de cura do dano instalado - pela via da remediação patrimonial - para a preservação da integridade de seres humanos que se encontram sob atenção alheia em virtude da vulnerabilidade que lhes é inata.

Impor-se-ia ao pêndulo há pouco retratado um novo movimento, destinado ao reexame qualificado da postura do agente ofensor não no sentido de puni-lo ou repreendê-lo, mas para reposicionar seu comportamento, ajustando-o à regularidade.

Cumpre esclarecer que a função preventiva atribuída à Responsabilidade Civil no âmbito familiar, aqui propalada, não diz respeito àquela de cunho genérico, concernente à dissuasão social que emana da condenação e naturalmente incute no ofensor o desestímulo a novas práticas lesivas. O que se propõe é a preservação dos interesses jurídicos que se encontram em situação de risco e que, uma vez vulnerados, dificilmente serão restaurados (función de prevención especial).

Paulo Lôbo aborda a responsabilidade no âmbito familiar a partir de seu aspecto pluridimensional. Argumenta, para tanto, que as consequências decorrentes do ilícito perpetrado nesse ambiente ultrapassam os atos do passado, de índole negativa. Por essa razão - entende o autor -, a mais relevante e desafiadora tarefa que deve ser atendida é a "responsabilidade pela promoção dos outros integrantes das relações familiares e pela realização de atos que assegurem as condições de vida digna das atuais e futuras gerações, de natureza positiva"6.

Dentro desse contexto, surge como alternativa à imposição pecuniária a perfilhação de medidas voltadas à capacitação dos agentes parentais (educação parental), com lastro no art. 12, caput, do Código Civil - que prevê o deferimento de tutela específica, de natureza inibitória, capaz de obstar a violação de direitos da personalidade -, conjugado com os incisos II e IV, art. 129, do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90) - que, por sua vez, enunciam como diligência aplicável aos agentes parentais  o encaminhamento a serviços ou programas oficiais ou comunitários de proteção, apoio e promoção da família, bem como a cursos ou programas de orientação.

Uma tutela específica que tenha o escopo inserir pais e mães em programas de apoio, orientação e capacitação atua em três flancos sensíveis à Responsabilidade Civil: a) contempla as necessidades infantojuvenis no próprio habitat familiar, salvaguardando seu desenvolvimento integral (capacita para saber cuidar); b) resguarda a autonomia da família quanto às práticas de cuidado da prole (capacita para emancipar); e, por fim, c) reestabelece, sempre que possível e observando os melhores interesses de crianças e adolescentes, o cenário doméstico deficitário (capacita para fortalecer).

O instrumento em testilha otimiza a relação paterno-materno/filial e exorta a não instalação ou cessação da conduta ilícita, coibindo a verificação do dano ou propiciando sua remediação. Entrega-se, desse modo, aos titulares dos direitos em voga - aos quais resta assegurada absoluta primazia, ex vi do disposto no art. 227, caput, da Constituição de 1988 - providência específica in natura (cuidado); autêntica realização da norma protetiva à qual fazem jus.

A educação parental é definida por Paulo Durning7 como o conjunto de práticas de cunho educativo, desenvolvido no âmbito das famílias, que, conquanto tenha por objetivo assegurar o desenvolvimento das crianças, é executado junto aos adultos que as educam, capacitando-os para o desempenho exitoso de seus misteres de cuidado.

Este instrumento de formação parte do pressuposto de que as figuras parentais são adultos em processo de desenvolvimento e que, muitas vezes, necessitam de orientação externa para se desincumbir satisfatoriamente de suas funções junto à prole8. Dirige-se, pois, ao aprimoramento das competências paternas e maternas, sem olvidar da maturação das competências pessoais dos adultos envolvidos, uma vez que as duas dimensões se entrecruzam, contribuindo para o desenvolvimento infantojuvenil no cenário familiar9.

Em Portugal, a educação parental vem sendo executada em larga escala, consoante se vê de iniciativas como Anos Incríveis - Básico (Concelho Gouveia, Seia e Celorico da Beira), Clube de Pais - Projecto Direitos & Desafios (Concelho Santa Maria da Feira), Em Busca do Tesouro das Famílias (Concelho Ponta da Barca), Escola de Pais (Concelho Almada), dentre outras. No Brasil, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro desenvolve a capacitação parental no Núcleo de Escola de Pais - NEP, mediante projetos sociais (inclusive de apadrinhamento), oficinas, grupos reflexivos e avaliações individuais.

A educação parental propicia, dentro desse cenário, uma alternativa à perda do poder familiar - com a consequente cisão do núcleo doméstico originário - e à imputação civil de danos, atuando de forma sistêmica, contextualizada e, sobretudo, preventiva no âmago da célula doméstica, restaurando posturas parentais faltosas e assegurando à prole o cuidado do qual é credora.

Assim, diante da restrita eficácia restaurativa da condenação pecuniária no tocante aos danos de ordem imaterial, ocorridos no âmbito das relações familiares, a articulação de tutelas preventivas vocacionadas à capacitação parental tem o condão de, a um só tempo, reposicionar a família na condição de ambiente facilitador do desenvolvimento infantojuvenil e restaurar aos sujeitos parentais o status de cuidadores primários eficientes, autênticos agentes na formação de adultos hígidos e replicadores de modelos positivos de paternagem e maternagem para as gerações vindouras.

Recobrando as lições de João Baptista Villela10, se o que se almeja para o futuro são expressões relacionais fundadas no amor, na justiça e na dignidade, há de ser restituído ao homem "a superior liberdade de responder, ele próprio, aos deveres que decorrem da vida em sociedade", pois somente será feliz quando for livre, só será livre quando for responsável e só será responsável quando as razões que justificam sua conduta estejam dentro dele, e não fora.

Que a falha na conduta parental não se circunscreva a gatilho para repressão ou compensação pecuniária; que o próprio cuidado - função precípua da parentalidade - possa ser objeto de estímulo e fomento. Afinal, pelas mais insondáveis circunstâncias da vida, muitos pais e mães "são crianças como você", talvez "o que você vai ser quando você crescer". 

Silmara D. Araújo Amarilla é advogada, doutora em Direito pela PUC/SP e professora da Escola Superior da Magistratura de Mato Grosso do Sul - ESMAGIS. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família - IBDFAM e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil - IBERC.

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1 FREUD, Sigmund. Um caso de histeria: três ensaios sobre sexualidade e outros trabalhos (1901-1905). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Tradução de José Octávio de Aguiar Abreu e Christiano Monteiro Oiticica. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. VII.

2 AMARILLA, Silmara Domingues Araújo. Parentalidade Sustentável: o ilícito parental e a precificação do (des)afeto nas estruturas familiares contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2019.

3 FERREIRA, Keila Pacheco. Prevenção e responsabilidade civil: revisitando os aspectos teleológicos na primeira década do CC. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore; MARTINS, Fernando Rodrigues (Org.). Temas relevantes do direito civil contemporâneo: reflexões sobre os 10 anos do Código Civil. São Paulo: Atlas, 2012. p. 721-722.

4 FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe; ROSENVALD, Nelson. Novo tratado de responsabilidade civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 208-209.

5 JARAMILLO, Carlos Ignacio. Los deberes de evitación y mitigación del daño: funciones de la responsabilidad civil en el siglo XXI y trascendencia de la prevención. México: Porrúa, 2016. CASTILLA, Gustavo Ordoqui. Las funciones del derecho de daños de cara al siglo XXI. In: Realidades y tendencias del derecho en el siglo XXI. Pontificia Universidad Javeriana/Editorial Temis. t. IV, v. 2, p. 3-32.

6 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Famílias contemporâneas e as dimensões da responsabilidade. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Família e responsabilidade: teoria e prática do direito de família. Porto Alegre: Magister, 2010. p. 11-27, p. 19.

7 BOUTIN, Gérald; DURNING, Paul. Les interventions auprès des parents: innovations en protection de l'enfance et en education spécialisée. Toulouse: Éditions Privat, 1994.

8 MAIQUEZ, Maria Luisa; CAPOTE, Carmen; RODRIGO, Maria José; VERMAES, Ignace. Aprender en la vida cotidiana: un programa experiencial para padres. Madrid: Visor, 2000.

9 MARTÍN-QUINTANA, Juan Carlos; CHAVES, Maria Luisa Máiquez; LÓPEZ, Maria José Rodrigo; BYME, Sonia; RUIZ, Beatriz Rodriguez; SUÁREZ, Guacimara Rodriguez. Programas de educación parental: intervención psicosocial. Psychosocial Intervention [online], v. 18, n. 2, p. 121-133, 2009.

10 VILLELA, João Baptista. Direito, coerção & responsabilidade: por uma ordem social não violenta. Série Monografias, Belo Horizonte: Faculdade de Direito da UFMG, v. IV, n. 3, 1982. p. 32.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).