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A Business Judment Rule na responsabilidade civil

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

Atualizado às 09:17

A business judment rule (regra de exclusão da responsabilidade civil dos administradores das sociedades) não é algo novo no direito societário, tendo recebido diversos olhares dos especialistas em distintos lugares do globo. Interessa-nos aqui, entretanto, uma abordagem específica, a da Teoria dos Custos de Transação (ou TCT), que compreende que as estruturas de governança são desenhadas para conter o comportamento oportunístico das partes envolvidas nas diversas transações que configuram uma organização.1

Partimos, nesse estudo, de uma afirmação feita por Oliver Williamson: a abdicação da autoridade regulatória pelos Tribunais por meio da business judment rule pode bem ser a mais significativa contribuição da common law para a governança corporativa.2 Tal afirmação é justificada na proposta teórica construída pelo autor, que compreende que a autoridade que caracteriza, em última análise, as empresas estaria comprometida caso as desavenças existentes entre acionistas e administradores fossem adjudicadas pelos Tribunais, sem uma barreira que a preservasse.

Essa proposta é colocada em diálogo com uma outra, que traduz as reflexões contemporâneas sobre os fundamentos da responsabilidade civil. Segundo propõe Nelson Rosenvald, o objeto da responsabilidade civil desloca-se para o cuidado com o outrem, vulnerável e frágil, significando que é possível responsabilizar alguém como sujeito capaz de designar por seus próprios atos, um agente moral capaz de aceitar regras, substituindo-se a ideia de reparação pela de precaução. Ao invés da culpa e da coerção, a responsabilidade encontra novo fundamento moral no cuidado.3

Assim, uma aparente tensão pode emergir do confronto entre as duas propostas. Isso porque os administradores são agentes dos sócios - isso varia de intensidade segundo a estrutura de capital da sociedade, dispersa ou concentrada. Logo, se a regra do business judment rule pode, em sua dinâmica, preservar a hierarquia que caracteriza o modo de governança da empresa, por outro lado, pode anular os incentivos para que esses administradores atuem sob a baliza do dever de cuidado.

Os parágrafos seguintes cuidarão desse problema, valendo-se da metodologia dialógica e da empiria.

Na Comissão de Valores Mobiliários (CVM), a pesquisa restringiu-se a Processos Administrativos Sancionadores, selecionando-se, dentro dos 23 (vinte e três) resultados encontrados até o dia 20 de setembro de 2020 (busca pela expressão "business judgment rule"), aqueles que melhor desenvolviam a temática.

Importa esclarecer, ainda, que no âmbito do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro (TJRJ), do Tribunal de Justiça do Estado do Espírito Santo (TJES), do Tribunal de Justiça do Paraná (TJ/PR), do Tribunal de Justiça do Mato Grosso (TJMT), do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE) a pesquisa pelas expressões "business judgment rule", "regra da decisão negocial" ou "regra da decisão empresarial" (que são comumente usadas para referir-se ao mesmo mecanismo), não resultou em nenhuma decisão pertinente ao tema, que tratasse especificamente sobre a responsabilidade civil dos administradores e a business judgment rule.

No TJ/MG, no TJRJ e no TJES, as consultas foram finalizadas no dia 22 de setembro de 2020, enquanto no TJPR, no TJMT e no TJPE, ocorreram no dia 23 de setembro de 2020, sem resultado significativo.

No Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a consulta resultou em 13 resultados, sendo selecionados os mais recentes e importantes para o tema aqui proposto, que mais desenvolvem a questão. Foram eliminados, com isso, os seis Embargos de Declaração, que apenas faziam uma menção singela à business judgment rule, mas que não a desenvolvem, além de dois agravos internos e um agravo de instrumento, cujos objetos eram voltados à desconsideração da personalidade jurídica. Das quatro apelações cíveis encontradas, uma tratava de recuperação judicial e a outra, mais antiga, tratava de ação de cobrança em face de seguradora que se recusou a pagar o seguro à autora, mas não da responsabilidade civil de administradores, especificamente. Esses foram os resultados encontrados no TJSP até a data de 25 de setembro de 2020, quando foi finalizada a pesquisa.

Feitos esses esclarecimentos preambulares, objetivamos, neste pequeno texto, cuidar da origem estadunidense da regra, de uma ou outra discussão relevante havida por lá, e, por fim, dos problemas envolvendo a sua aplicação no Brasil, desde a discussão sobre a sua positivação em nosso Direito até a forma como é aplicada pela CVM e pelos Tribunais estatais.

A business judgment rule é uma regra que foi construída ao longo de anos nos tribunais dos EUA, que passaram a observar que os prejuízos das sociedades, em casos vários, não eram consequências de atos eivados com algum vício de comportamento ético, de tal forma que seria excessivo sancioná-los.

Tal regra foi assumindo tamanho destaque que passou a ser tratada em leis e outras disposições normativas. É, por exemplo, claramente expressa no §8.30, (a), do Model Business Corporation Act, de 19844.

O Tribunal de Delaware entende haver uma tríade de deveres fiduciários dos administradores, o dever de cuidado, que abriga a diligência e a prudência, a boa-fé e o dever de lealdade5, em que pese ser mais comumente associada ao dever de cuidado.

Na common law prevalece sobre a rule dois entendimentos. O primeiro, desenvolvido principalmente pelo professor Stephen B. Bainbridge, afirma tratar-se de uma regra de abstenção, pela qual o Tribunal se exime de analisar o mérito da decisão tomada pelo administrador. O segundo trata a regra como um standard pelo qual os julgadores podem, objetivamente, examinar o mérito das decisões dos administradores6.

Alguns autores entendem bastar que a decisão seja tomada de boa-fé, enquanto outros a entendem como um pressuposto de um julgamento racional ou, ainda, como um teste para se identificar uma negligência grosseira.

Baseando-se o governo das sociedades na authority, deve a administração ser exercida responsavelmente. Todavia, é natural que o ser humano, com suas limitações, cometa erros no processo decisório. Com isso, mecanismos para que os acionistas supervisionem a atividade dos administradores são necessários. Nesse sentido, a accountability é importante para corrigir erros, mas não pode travar a autonomia da administração na condução da companhia, sendo essencial para a empresa a prevalência da authority, que é um dos aspectos centrais do processo de tomada de decisão7.

Segundo Bainbridge, a business judgment rule justifica-se, pois, a revisão judicial das decisões ameaça a authority, de modo que o exame judicial deve ser visto como uma medida excepcional.

A teoria da abstenção explica melhor a dinâmica societária em função dos desenvolvimentos da Teoria dos Custos de Transação (TCT) porque possui o seu fundamento na necessidade, em última análise, da preservação das instâncias internas de resolução de disputas que garantem o funcionamento da hierarquia e, por assim dizer, do seu modo de governança (é mais adaptada a esse modo de governança).

No Brasil, existem correntes doutrinárias que associam a business judgment rule ao disposto no artigo 159, §6º, da lei 6.404/76 (Lei das Sociedades Anônimas), que estabelece a exclusão da responsabilidade dos administradores que agem de boa-fé e no interesse da companhia.

Outros há, como Marcelo Vieira Von Adamek, que compreendem não se tratar esse dispositivo de hipótese de exclusão de responsabilidade, mas algo semelhante a um perdão judicial8. Assim, o dispositivo propugna uma análise posterior, depois de verificadas a ilicitude e a culpabilidade do agente, a fim de afastar o dever de indenizar. "A exclusão, portanto, ocorre a posteriori: todos os elementos do suporte fático são preenchidos, dá-se a incidência da regra e surge o dever de indenizar, mas, por intervenção do juiz, o administrador é isento do dever de reparar o dano"9.

Diferentemente, Renato Ventura Ribeiro compreende estar a business judgment rule consagrada no próprio caput do artigo 158, da lei 6.404/76, quando a lei afasta a responsabilidade dos administradores em relação aos atos regulares de gestão, desde que os deveres legais e estatutários tenham sido observados10.

Por outro lado, o disposto no §6º, do artigo 159, da lei 6.404/76, tampouco traduz fielmente o que seria a business judgment rule, mas, antes, limita-se a trazer à lei brasileira alguns de seus elementos.

Ao permitir que seja afastada, pelo julgador, a responsabilidade dos administradores de boa-fé e que ajam no melhor interesse da companhia, a norma gera uma margem de discricionariedade ao juiz pela qual ele poderá realizar um juízo semelhante ao que ocorre na aplicação da business judgment rule. Não se trata, portanto, de uma verdadeira positivação do mecanismo, mas da incorporação de alguns de seus pressupostos. Somado ao caput do artigo 158 da Lei das SA, como uma abertura por meio da qual a rule pode ser aplicada, desde que conformada ao regime de responsabilidade civil dos administradores Sociedades Anônimas.

Reforça tal interpretação a edição da lei 13.874/2019, aplicável ao Direito Empresarial, que estabelece como um de seus princípios norteadores a intervenção mínima do Estado sobre o exercício das atividades econômicas, concorde o inciso III, do seu artigo 2º.

A CVM vem, já há alguns anos, reconhecendo e aplicando a business judgment rule (prevista no art. 153, da Lei das SA), compreendendo-a como uma regra que protege os administradores no exercício de sua função quando observa os deveres fiduciários a que estão submetidos, em especial o dever de diligência.

As conclusões são extraídas dos seguintes julgados: (PAS) nº RJ2005/1443, de 10.05.2006; (PAS) nº 14/05, julgado em 05.05.2009; (PAS) nº 18/08, julgado em 14.12.2010; (PAS) nº RJ2008/9574, julgado em 27.11. 2012; (PAS) nº RJ2014/5099, julgado em 12.04.2016; (PAS) CVM RJ2016/7197, julgado em 19.112019.

Merece destaque o PAS CVM nº RJ2016/7197, uma vez que nesse, o relator não analisou o mérito da decisão propriamente, deu enfoque ao processo que conduziu à decisão, especificamente perquirindo se a decisão foi informada, refletida e desinteressada. É um caso no qual a aplicação do mecanismo ocorreu de fato, já indicando um avanço no tratamento do tema no âmbito da CVM.

No âmbito do poder judiciário, apenas o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) faz alguma menção à regra.

Na apelação cível nº 1002546-43.2015.8.26.0565, de relatoria da Desembargadora Grava Brazil (julgada em 22.10.2019)11, a regra é utilizada em um conflito havido entre a sócia minoritária e a majoritária (controladora), de tal forma que não se trata de um caso de responsabilidade de administradores, mas de responsabilização da acionista controladora.

A apelação cível de nº 1002549-61.2016.8.26.0565, da mesma relatoria, julgada no mesmo dia, versa sobre caso semelhante, sendo idêntica a fundamentação e, por conseguinte, os equívocos apontados para o caso anterior[12].

Diferentemente do que ocorre na Comissão de Valores Mobiliários, o tratamento da matéria no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo (e que pode influenciar outros Tribunais brasileiros futuramente) ainda está longe de alcançar os efeitos esperados para a governança corporativa.

A inconsistência na aplicação da regra no Brasil é devida à falta de precisão normativa, somada a uma diferença na cultura jurídica existente entre nós e os EUA. Demos destaque à aparente tensão existente entre a regra e os fundamentos da responsabilidade civil porque pensamos que isso subjaz em nossa cultura, o que dificulta movimentos legislativos e jurisprudenciais.

*Fabrício de Souza Oliveira é professor de Direito Empresarial na UFJF. Doutor em Ciências Jurídico-empresariais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra.

**George Schneider Moura é bacharel em Direito pela UFJF.

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1 TEUBNER, Gunther; CASTRONOVOX, Carlo. Piercing the Contractual Veil? The Social Responsibility of Contractual Networks. 2006. Disponível aqui. Acesso em 19.1.2021.

2 WILLIAMSON, Oliver E. The mechanisms of governance. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 98.

3 ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2014. p. 15.

4 AMERICAN BAR ASSOCIATION. Model Business Corporation Act. Atualizado em 2016. Disponível aqui. Acesso em: 19 de Setembro de 2020.

5 PONTA, Adina. The Business Judgment Rule - Approach and Application. Juridical Tribune, Bucharest Academy of Economic Studies, Law Departament, Vol. 5, pag. 22-44, December, 2015.

6 BAINBRIDGE, Stephen. The Business Judgment Rule as Abstention Doctrine. 2004. UCLA School of Law. Disponível aqui. Acessado em 12 de Set. 2020.

7 BAINBRIDGE, Stephen. op. cit.

8 VON ADAMEK, Marcelo Vieira. Responsabilidade Civil dos Administradores das S/A e as Ações Correlatas. São Paulo: Saraiva, 2009.

9 VON ADAMEK, Marcelo Vieira. op. cit.

10 RIBEIRO, Renato Ventura. Dever de Diligência dos Administradores de Sociedades. São Paulo: Quartier Latin, 2006.

11 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 1002546-43.2015.8.26.0565. Relatora Des. Grava Brazil. Julgado em 22.10.2019. Disponível aqui. Acesso em: 25 de Set. de 2020.

12 SÃO PAULO. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 1002549-61.2016.8.26.0565. Relatora Des. Grava Brazil. Julgado em 22.10.2019. Disponível aqui. Acesso em: 25 de Set. de 2020.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).