"Não tenhamos pressa, mas não percamos tempo".
José Saramago
O ano de 2020 é um ano inesquecível. Não somente no Brasil, mas em todos os sítios. Será tatuado na memória como um ano improvável; um ano tempestuoso; um ano pleno de desafios e de incertezas. Trouxe-nos tantas perplexidades e pôs à prova nossas verdades e ferramentas à solução dos conflitos. Algumas foram úteis, por certo. Outras não. Só o tempo dirá o acerto dos caminhos que decidimos trilhar1. Construímos, desconstruímos e estamos ainda a (nos) reconstruir. A solidariedade e a esperança de que dias melhores virão nutrem a dura travessia, em meio a tantas perdas2. A despeito disso, a sociedade brasileira tem algo muito especial a comemorar precisamente no mês de setembro, que há poucos dias nos deixou.
Há exatos trinta anos, em 11 de setembro de 1990, foi sancionado um dos mais relevantes diplomas legislativos da segunda metade do século XX: a lei Federal 8.078, de 1990, o Código de Defesa do Consumidor. Fruto da promessa da Carta Constitucional de 1988, o CDC ingressou no sistema jurídico pleno de expectativas e de fulgor. Desde seu nascimento, foi um diploma vocacionado a realizar o compromisso ético insculpido no inciso XXXII de seu art. 5º: "O Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor"3. Sabemos todos que o art. 48 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias exigiu explicitamente que o legislador concretizasse o ideário de defesa do consumidor. Para essa tarefa hercúlea, fixou o prazo de 120 dias, contados da promulgação da Constituição da República: "O Congresso Nacional, dentro de cento e vinte dias da promulgação da Constituição, elaborará código de defesa do consumidor".
Trinta anos depois, é preciso recordar que a promulgação do CDC significou a explícita afirmação de um novo direito fundamental: foi a concretização do direito fundamental de tutela do consumidor. Um direito fundamental imune, inclusive, a quaisquer tentações que recaiam sobre o Poder Constituinte Derivado (CF/1988, art. 60, § 4º, inc. IV). Um Direito que se fez e se faz vivo entre nós, que proveio da sabedoria e sensibilidade de um notável grupo de juristas4. Não é possível esquecer, aliás, que, todas as vezes que a Constituição Federal do Brasil alude ao termo consumidor, sempre o faz sob cariz protetivo. É o que se pode verificar com facilidade a partir da leitura dos arts. 5º, inc. XXXII; do art. 150, § 5º e do art. 170, inc. V, dentre outros.
"O presente código estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, de ordem pública e interesse social, nos termos dos arts. 5°, inciso XXXII, 170, inciso V, da Constituição Federal e art. 48 de suas Disposições Transitórias", anuncia o art. 1º do CDC a toda Nação brasileira. Muito há a comemorar na seara consumerista no ano de 2020, portanto: são três décadas de reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo e de permanente afirmação da proteção jurídica àquele que dela necessita quando em relação com o fornecedor (CDC, art. 4º, inc. I). Mas mais que brindar, é momento de reflexão para que, permanentemente, sigamos a avançar.
Verdadeiro divisor de águas no contínuo processo de (re)compreensão das relações jurídicas entre os particulares, o CDC surgiu para realizar a promessa constitucional de construção de uma sociedade livre, justa e solidária (CF/1988, art. 3º, inc. I). Uma advertência, contudo, é necessária. Os mais incautos não devem jamais se iludir: nada nos foi dado no Direito do Consumidor; tudo foi construído sonho a sonho, passo a passo, pedra a pedra. Sem dúvida, o Código Civil em vigor é um diploma normativo exemplar (assim como monumental fora, a seu tempo, o Código Civil de 1916)5. Contudo, no plano das relações contratuais, o Código Civil é vocacionado a reger conflitos dos que se encontram, ao menos por presunção, em situação de igualdade de forças e equilíbrio de poderes. A equidistância, contudo, não é o ambiente em que espraiam nas relações de consumo. Nelas, por força de regra constitucional, é preciso aceitar que todo consumidor é sempre vulnerável no mercado de consumo.
O CDC reconhece, nesse compasso, os efeitos concretos da assimetria de poderes entre o fornecedor e o consumidor. Arma aquele que se encontra em situação de inferioridade dos necessários poderes para que seja realizado o direito fundamental de igualdade na sua acepção substancial. Para tanto, e com acerto, o CDC cria mecanismos de inversão de ônus de prova (art. 6º, inc. VIII); acolhe explicitamente uma nova responsabilidade civil sem culpa (uma responsabilidade civil fundada na Teoria do Risco6 que, conquanto já existisse entre nós, ganhou intenso brilho com o advento da lei consumerista, ao tratar da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço7 - arts. 12 e 14, caput); fixa a competência do foro de domicílio do consumidor às pretensões indenizatórias por ele manejadas (art. 101, inc. I) e proclama a importante disciplina de solidariedade passiva dos fornecedores que se inserem em uma mesma cadeia de consumo (direito que, não sem razão, é sedimentado em diferentes medidas e distintas passagens, como se pode perceber dos arts. 7º, parágrafo único; 18, caput; 19, caput; 25, §§ 1º e 2º; 28, § 3º; 34).
Trinta anos depois, a sociedade brasileira deve ter maturidade para saber que a harmonia das relações de consumo é a meta a ser realizada. Não mais há lugar para anjos ou demônios. Consumidores e fornecedores não assumem posições adversariais. Não se deve, a apriori, atribuir responsabilidade a qualquer desses pólos pelas frustrações próprias do convívio social. Trinta anos depois, não mais há lugar para visões maniqueístas, preconceituosas ou apocalípticas nos conflitos entre consumidores e fornecedores. Solidariedade, autorresponsabilidade e empatia são as ordens do dia, como a pandemia pôde nos recordar nesse ano de 2020.
Nesse ano de júbilo, duas advertências finais são necessárias. Em primeiro lugar, é preciso observar um dever de cuidado na permanente afirmação da tutela do direito fundamental do consumidor. A História insiste em ensinar que a supressão dos direitos não se dá de modo frontal ou abrupto. A retirada do que nos é caro se dá pelas bordas, à sorrelfa, à noite, e muito discretamente; tão sutilmente que, quando nos danos conta do que se passou, já não mais temos aquilo que nos importa. O momento é, pois, de intransigente vigilância na preservação de todo arcabouço jurídico que se construiu àquele vulnerável consumidor. Dito por outras palavras, não há garantias de sedimentação permanente de quaisquer direitos, não nos iludamos jamais: todo Direito (con)vive em situação de permanente tensão, e justamente por isso exige diuturna afirmação pela própria comunidade jurídica. Leva-se muito tempo (e muito empenho) para os que direitos sejam reconhecidos; mas, infelizmente, a desatenção da sociedade pode rapidamente colocar tudo a perder. A grave pandemia que se atravessa não é motivo suficiente para mitigar o que com esforço se edificou no Brasil durante três décadas8.
A segunda advertência é igualmente vital no contínuo florescer do Direito do Consumidor. É preciso que os juristas mantenham os pés bem firmes no solo do presente, mas tenham os olhos a mirar os sonhos do futuro. Chegou o momento de (bem) disciplinarmos o comércio eletrônico nas relações de consumo (como quer o PL 3.514/15)9 e de tratarmos da prevenção do superendividamento (como disciplina o PL 3515/15)10. Ambos são diplomas vitais para que haja sol no futuro das relações de consumo. A comunidade jurídica deve conhecê-los, debruçar-se sobre suas diretrizes e mobilizar-se para que tais textos tornem-se realidade o quanto antes. Não há mais tempo a perder. Os méritos e os acertos dos referidos projetos de lei superam quaisquer imperfeições que porventura possam ter. A sociedade deve crer que a boa doutrina e as Cortes de Justiça do Brasil saberão conferir a melhor interpretação/aplicação aos seus preceitos. São diplomas essenciais para reger as relações de consumo na hipercomplexidade própria da Pós-Modernidade. A comunidade jurídica está a aguardá-los com as melhores expectativas. Que venham! Com tais aprimoramentos, hoje, trinta anos depois, teremos todos muito a comemorar.
*Alexandre Guerra é doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Professor de Direito Civil (Escola Paulista da Magistratura e Faculdade de Direito de Sorocaba). Professor convidado nos cursos de pós-graduação da PUC-SP/COGEAE. Juiz de Direito no Estado de SP. Associado fundador do Instituto de Direito Privado, do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil e do Instituto Brasileiro de Direito Contratual. Autor e coordenador de obras e artigos jurídicos.
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1 A jurisprudência não mediu esforços para dar respostas eficientes e justas aos problemas que abruptamente a Pandemia de COVID-19 pôs a nos desafiar. Para verificar a variedade dos conflitos (e soluções) postos à apreciação do Poder Judiciário de São Paulo nos últimos meses, ver, com ampla referência jurisprudencial e doutrinária: Boletim 4 do Grupo de Apoio ao Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo COVID-19. 4. ed. Set.2010, 108 fls. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020.
2 Para consulta de estudo recentemente publicado sobre os impactos da pandemia nas relações contratuais de direito privado, ver: GUERRA, Alexandre. Solidariedade, autorresponsabilidade e contrato: lições de protagonismo nas relações contratuais de direito privado em tempos de pandemia de COVID-19. SILVEIRA, João José Custódio da (coord.). In: Paradigmas jurídicos no pós-pandemia (Cadernos jurídicos). São Paulo: EPM, ano 21, n. 55, julho/setembro 2020, p. 95-116. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020.
3 Para consulta de aspectos de relevo no processo de consolidação dos direitos assegurados ao consumidor, ver: GUERRA, Alexandre; MALFATTI, Alexandre David (coords.). Reflexões de Magistrados Paulistas nos 25 anos do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: EPM, 2015. Disponível aqui. Acesso: 08 de outubro de 2020.
4 Por todos, seja consentindo remeter a: GRINOVER, Ada Pellegrini (et al.) Código Brasileiro de Defesa do Consumidor: comentado pelos autores do anteprojeto: direito material e processo coletivo. 12. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
5 Para reflexão, sob a perspectiva de diversos juristas, sobre o papel do Código Civil no ordenamento jurídico brasileiro, ver: GUERRA, Alexandre (coord.). Estudos em homenagem a Clóvis Beviláqua por ocasião do centenário do Direito Civil codificado no Brasil. São Paulo: EPM, 2018, v. 1. 2. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020.
6 A respeito dos contornos da Teoria do Risco, ver: PASQUALOTTO, Adalberto. Revisitando o conceito de risco no CDC. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020.
7 Dentre os pontos de destaque do CDC nas relações privadas nas últimas décadas, certamente a responsabilidade civil ocupa posição de relevo. Sobre seu perfil, seja consentido referir a: GUERRA, Alexandre; BENACCHIO Marcelo (coords.). Responsabilidade civil. São Paulo: EPM, 2015. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020.
8 A respeito da disciplina do direito de arrependimento previsto no art. 49 do CDC e sobre o perfil que a ele se impôs nos tempos de pandemia, ver: BARROS, João Pedro Leite; SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. O direito de arrependimento do consumidor e o RJET: Impactos diretos e indiretos da lei 14.010/2020 no art. 49 do CDC. Disponível aqui. Acesso: 8/10/2020.
9 Para conhecer o Projeto de Lei em foco, que trata do comércio eletrônico, ver aqui. Acesso: 8/10/2020.
10 Para leitura do Projeto de Lei em destaque, que disciplina o superendividamento, ver aqui. Acesso: 8/10/2020.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).