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Notas a alguns pontos nevrálgicos do projeto de lei das fake News

sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Atualizado às 08:09

O primeiro ponto que parte significativa dos especialistas têm debatido acerca do dito "Projeto de lei das Fake News"1 é se há ou não uma intromissão indevida - e, portanto, uma inconstitucionalidade - no sistema de proteção constitucional da liberdade de expressão.

Em choque há duas concepções diversas de liberdade de expressão. Por um lado - especialmente com raízes norte-americanas -, a ideia de que liberdade de expressão guarnece todo o tipo de manifestação inclusive os chamados discursos extremos, ensejando concepções ditas libertárias, baseada em uma utopia de "independência da Internet", em que a regulação é vista sempre com desconfiança, senão com ceticismo.

Mary Anne Franks, professora da Universidade de Miami, em recente livro intitulado "O culto da Constituição" (2019), conclui que tal visão é fruto de uma concepção distorcida do que deveria ser o exercício da liberdade de expressão, legitimando racismo, misoginia e mais recentemente a desinformação. 

Os provedores, por sua vez, encontram-se, segundo a autora, em posição vantajosa, uma vez que não são responsabilizados pela ilicitude de conteúdo inserido por terceiros antes da notificação, nem pela retirada unilateral de conteúdo com base em suas próprias cláusulas contratuais (FRANKS, 2019, p. 169).

Ao fim e ao cabo, criou-se um ambiente do que denomina de "moral hazard", especialmente por três razões: 1. Dificuldade na identificação de quem posta conteúdos ilícitos; 2. Assimetria de poder entre os grandes provedores e outros players na Internet; (talvez o pior deles) 3. Escala, ou seja, a velocidade e voracidade com que criminosos - via de regra, dolosamente - publicam informações maldosas, inverídicas promove um ambiente nocivo nas redes sociais (FRANKS, 2019, p. 166). Ao final, ressalta a autora que o sistema de imunidade dos provedores "é um dos mais poderosos instrumentos destrutivos para esta excepcionalidade da Internet". (FRANKS, 2019, p. 174).

A visão absoluta da liberdade de expressão se baseia em uma leitura distorcida do que é o exercício das liberdades públicas e influenciou sobremaneira a normativa norte-americana, os termos de uso dos contratos das plataformas digitais - já que concebidos neste ambiente normativo - e direcionou usuários e produtores de conteúdo ao ambiente em que vivemos hoje, em que, essencialmente, cada vez mais conteúdo tóxico, ilícito e criminoso é despejado online e distribuído conforme as "preferências do usuário". Chegou-se à situação extrema em que há inegáveis riscos à nossa privacidade, à democracia e mais recentemente à saúde pública e à vida da população. Mas, contrariamente à tendência da responsabilidade civil de aumento das hipóteses de responsabilidade objetiva, o risco é criado, mas quem deveria não o assume para fins de responsabilizar-se civilmente.

Diferentemente deste caminho foram os rumos na Alemanha. Em 2017, o país adotou uma legislação contra o discurso de ódio (NETZDG) na mesma linha da legislação francesa (antes de ser esvaziada pelo Conselho Constitucional). Entretanto, corajosamente, a Alemanha neste ano de 2020 endureceu o sistema, determinando às plataformas, além do dever que já tinham de retirar conteúdo sabidamente criminoso, ajudar a criar base de dados sobre os autores de postagens retiradas nos termos da legislação. 

Em que pese o medo do "overblocking" (EIFERT, 2020) e análises precipitadas com argumentos ad terrorem, os relatórios de posts deletados mostram, em resumo, que não transformou a Alemanha em mau exemplo para fins de proteção da liberdade de expressão. Pelo contrário, a lei é baseada em visão de democracia militante, onde se assume que nenhum direito é ilimitado e se assume posição política de atribuir responsabilidade às plataformas, que no fundo foram imunizadas de responsabilidade quando eram empresas incipientes e a legislação atuou para fins de promover a inovação. Mas, agora, os tempos são outros e pela posição dominante que os transformaram em verdadeiros "impérios da comunicação" (WU, 2012).

Portanto, não há que se falar em censura, mas em reconhecimento de responsabilidade à altura do risco criado pelos provedores de aplicação, que, dolosamente ou não, lucram com ao ódio, a desinformação e as falsidades que circulam na Internet. Risco cujos efeitos começaram a se descortinar como a ponta de um Iceberg desde o caso Cambridge Analytica.

Aos que sustentam a inconstitucionalidade do projeto, soma-se a linha de argumentação sobre o art. 19 do Marco Civil da Internet, que em seu caput, traz como função da norma a proteção da liberdade de expressão e vedação da censura, hoje sob questionamento perante o STF com repercussão geral reconhecida.

Não obstante, os limites do legítimo exercício da liberdade de expressão são constantemente testados no âmbito das redes sociais e da Internet como um todo.

Bem como as hipóteses em que seu exercício é visto como ilegal, abusivo e, portanto, deve ser coibido contratual, legislativa e jurisprudencialmente. No Marco Civil, está fora do sistema de notificação judicial, por exemplo, a pornografia de vingança (art. 21, MCI). E esse é mais um risco desse ambiente. Porém, por opção legislativa, restringiu-se a imunidade dos provedores neste caso, sendo este o momento de se assumir que pornografia de vingança não é o único.

A esfera pública nacional vem se deparando - sem alterar sensivelmente a lógica legislativa do art. 19, MCI - sobre outras questionáveis formas de ilicitude supostamente guarnecidas por esse gigante direito fundamental, a exemplo das Fake News e do discurso de ódio e outros conteúdos tóxicos.

O caput do art. 10 do PL das Fake News prevê a guarda dos registros (metadados) das mensagens veiculadas em encaminhamento em massa pelo prazo de 3 (três) meses, resguardada a privacidade e conteúdo das mensagens:

A segunda parte do dispositivo resguarda a privacidade/conteúdo das mensagens. Sendo assim, por mais que seja realizada uma operação de tratamento de dados, tal operação não é ilegal, nem viola o fundamental o direito à privacidade. Ressaltando-se que o conteúdo das mensagens é resguardado, ou seja, só ficam guardados os metadados, preservando-se o conteúdo das mensagens encaminhadas em massa.

Nesse contexto, poderia ser perguntado se a prática fere o sistema de criptografia ponta-a-ponta, que é a forma tecnológica achada por aplicativos de mensageria privada para proteger a privacidade das pessoas. 

Trata-se de temor precipitado. A norma não viola a alma do sistema de criptografia ponta a ponta, pois a conversa "de ponta a ponta" se trata de quando o usuário manda mensagem para outro usuário ou para um grupo em que está inserido. 

Ou seja, a determinação legal será para mensagens enviadas para mais de mil usuários, em que o provedor deverá guardar apenas os metadados acerca das mensagens que são encaminhadas (Art. 10, §4º, PL 2630). Isso, na verdade, é feito porque a ratio da legislação não é procurar esse ou aquele conteúdo que seja ilícito, mas, sim, combater as fake news, por meio do reconhecimento de um comportamento típico de propagação de desinformação.

Despiciendo destacar que a obrigação de guarda de metadados não é inovação do projeto de lei, já que há outras legislações nesse sentido no Brasil, com especial destaque para o Marco Civil da Internet (art. 15) e a lei 12.850/2013 (art. 17) que preveem períodos muito maiores para a guarda de dados para fins de investigação.

Outro ponto interessante do projeto é o art. 12, que estabelece verdadeiro "devido processo" para a exclusão de conteúdo das redes sociais pelo próprio provedor, ou seja, independentemente de ordem judicial.

A liberdade de expressão é um direito fundamental inalienável, sendo certo que a noção de que a proteção aos direitos fundamentais não se restringe ao direito público, cabendo tal aplicação a relações particulares - como aquela entre provedor de aplicação de internet e usuário -. Cabe mencionar o famoso precedente do STF no RE 201819/RJ, proferido no caso de exclusão de sócio excluído da União Brasileira dos Compositores (UBC) sem que lhe fosse garantido o devido processo legal.

O STF confirmou a reintegração, sob os auspícios de que a inobservância do direito fundamental ao devido processo legal restringiu a liberdade do sócio, não prevalecendo a tese da entidade no sentido de que as associações privadas possuiriam o direito de se organizar livremente. 

Por isso, a lei traz a obrigação ao provedor de garantir minimamente em suas cláusulas contratuais mecanismos eficientes para o contraditório e a ampla defesa, antes de decidir definitivamente pela retirada do conteúdo supostamente ilícito. Os parágrafos do art. 12 descrevem como deverá ser esse procedimento.

Sobre esse procedimento, importante destacar que o §2º traz as situações em que se dispensa a notificação do usuário, onde o risco de dano é alto. O dispositivo tem especial relevância em situações extremas, já que insere mais uma norma de ordem pública nas cláusulas dos termos de uso dos sites de redes sociais.

O dispositivo é importante, mas peca por não incluir um dos temas mais sensíveis quando se trata das polêmicas envolvendo a liberdade de expressão na internet: o discurso de ódio. Sendo assim, caberia a inclusão do hate speech no rol taxativo do §2º. Ademais, tendo-se em vista o art. 21, MCI, sugere-se a inclusão da divulgação de imagens íntimas sem autorização da vítima (pornografia de vingança).

Outro dispositivo nevrálgico para a responsabilidade civil diz respeito ao reforço nos standards de conduta referente aos comportamentos legitimamente esperados dos fornecedores de serviços pelo futuro Conselho de Transparência e Responsabilidade na Internet (COTRI), a ser criado pelo Congresso Nacional nos termos do art. 25, consistente no Código de Posturas (inciso II).

O Código de Conduta, como salienta a norma, terá de tratar de pontos obrigatórios como "desinformação, discurso de incitação à violência, ataques à honra e intimidação vexatória".

Trata-se de um conjunto de normas que, sob a ótica da responsabilidade civil, ajudam a construir os confins das legítimas expectativas dos usuários de serviços de redes sociais e de mensageria privada. Ou seja, o usuário que baixa um aplicativo, anui com os termos de uso, passa a consumir um serviço e, por essa razão, é legitimamente esperado que o fornecedor assuma o risco pelos danos a que está exposto na plataforma.

Práticas como racismo, misoginia, discursos de ódio de toda a sorte e, em especial como alvo deste texto de lei, as notícias falsas como veículo da desinformação, seguem uma lógica de publicidade e propaganda.

No concernente à publicidade, a simbiose entre normas associativas e autorregulamentares é sempre citada pela doutrina de direito do consumidor quando se invocam as decisões - especialmente - do Conselho de Autorregulamentação Publicitária como fonte de critérios sólidos para a compreensão dos limites entre lícito e ilícito, abusivo, enganoso etc.

Nesse sentido, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 22, que tratava da inconstitucionalidade pela ausência de legislação pela publicidade de cigarros e bebidas, julgada improcedente pelo Supremo Tribunal Federal, que entendeu pela suficiência das regras do CONAR para trazer parâmetros aos que realizam publicidade.

Ressalta-se que, no âmbito da regulamentação da Internet em especial, o Comitê Gestor da Internet é aquele responsável pela edição de normas orientativas e interpretativas dentro de suas atribuições e, em que pese as muitas perspectivas sobre a natureza jurídica do órgão, é certo que o modelo multistakeholder acaba por democratizar suas decisões frente aos players envolvidos na Internet, razão por que goza de ampla legitimidade. Como o órgão tem caráter mais de execução de políticas para a Internet, além de sempre contar com a expertise para a realização de pesquisas e ser ouvido em decisões estratégicas sobre a Internet no Brasil (como a Neutralidade da Rede - art. 9º, p.ú, Marco Civil da Internet; Diretrizes para o Poder Público na Internet - art. 24, II, MCI; Composição do Conselho Nacional de Proteção de Dados - art. 58-A, LGPD).

Portanto, a composição do órgão, que privilegia o pluralismo de ideias ao abarcar representantes dos diversos setores, legitima as normas vindouras, estabelecendo por lei parâmetros mínimos para o estabelecimento de parâmetros capazes de desnudar os confins do lícito e ilícito exercício da liberdade de expressão, trazendo elementos mínimos como "desinformação,  discurso de incitação à violência, ataques à honra e intimidação vexatória." (art. 25, parágrafo único, inciso II).

Os parâmetros não derrogam nem conflitam com o art. 19 do Marco Civil da Internet. Muito menos agridem a liberdade de expressão, mas trazem determinados conteúdos que merecem ao menos atenção redobrada a determinados conteúdos e que, caso não haja condutas satisfativas por meio dos provedores, poderá haver responsabilização. Mas, ainda, expressamente não há nada fora da sistemática do notice and takedown adotada pelo MCI.

Contudo, a exemplo do art. 12, o dispositivo também peca por não mencionar o discurso de ódio no rol dos fenômenos a serem tratados pelo código de conduta, razão por que se sugere pontual inserção.

Último mecanismo legal que merece destaque sob a ótica da Responsabilidade Civil é o artigo 30, que propõe um modelo contemporâneo de regulação de atividades econômicas, consistente, em suma, no fomento à criação por parte das próprias empresas  de "instituições de autorregulação" às quais, em suma, guardarão sua certificação no Próprio Conselho de Regulação e Transparência (art. 25, p. ú., inciso  X).  Trata-se do mecanismo previsto no artigo 30 do PL 2630, a chamada autorregulação regulada (CAMPOS; ABBOUD, 2020)

Acertadamente, a lei procura distribuir os deveres de proteção aos direitos fundamentais atribuindo aos players privados a necessidade de se envolverem na produção de tais regras, induzindo a autorregulamentação em um papel em que o poder público caminha lado a lado, instituindo padrões mínimos, como o de desinformação, ataques à honra, etc.  

Em caminho inverso ao do art. 19 do Marco Civil da Internet, o qual relegou ao juiz o papel central de determinar a retirada de conteúdo com necessidade de indicação da URL. Tal situação, ao fim e ao cabo, imunizou os provedores para além até mesmo da legislação americana e, por outro lado, deixou sem proteção a vítima - que tem de procurar a justiça para que sejam bloqueados um ou mais links quando milhares ou milhões podem ser replicados em questão de segundos - e toda a sociedade, pois não levou em conta os potenciais danos sociais da desinformação. Inclusive, relega ao Judiciário a decisão atomizada sobre a licitude da informação quando na verdade a desinformação se dá em grande escala e exige soluções que superem o paradigma binário da judicialização (MARANHÃO; ABRUSIO; CAMPOS, 2020).

 Apenas como sugestão, incitando o debate, dada a nobreza do dispositivo sob análise, questiona-se se não seria o momento de tornar sua adoção obrigatória para os provedores de redes sociais e serviços de mensageria privada de grande porte sem que isso implique necessariamente a compulsoriedade da filiação a entidades de fact checking, o que implicaria em violação da liberdade constitucional de associação. 

*Guilherme Magalhães Martins é doutor e mestre em Direito Civil pela UERJ. Professor adjunto de Direito Civil da Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Professor adjunto de Direito Civil (licenciado) da Universidade Candido Mendes-Centro. Professor visitante (2009-2010) do mestrado e doutorado em Direito da UERJ. Diretor do Instituto Brasilcon. Promotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro.

**Gabriel Oliveira de Aguiar Borges é mestre em Direito pela UFU/MG. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio. Professor de Direito Civil e membro do Comitê de Ética em Pesquisa, do Centro Universitário do Triângulo (UNITRI/MG). Advogado militante na área contratual, empresarial e digital.

***João Victor Rozzati Longhi é defensor público no Estado do Paraná. Professor visitante de doutorado e mestrado da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) e de graduação do Centro de Ensino Superior de Foz do Iguaçu (CESUFOZ). Pós-doutor em Direito na UENP. Doutor em Direito Público pela Faculdade de Direito da USP. Mestre em Direito Civil pela Faculdade de Direito da UERJ.

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1 BRASIL, Câmara dos deputados. Projeto de lei n. 2630/10. Institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet. Disponível aqui. Acesso em31 ago. 2020.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil