Primum non nocere: a responsabilidade do plano de saúde no congelamento de óvulos de pacientes com câncer
terça-feira, 1 de setembro de 2020
Atualizado às 08:49
Recente decisão da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, em acórdão relatado pelo Ministro Paulo de Tarso Sanseverino no Recurso Especial n° 1.815.796, reconheceu a exigibilidade de importante dever implícito em contrato de prestação de serviços de saúde celebrado por mulher acometida de câncer de mama.
Enferma aos trinta anos de idade, a beneficiária do plano de saúde, alertada pelo médico de que o tratamento a que se submetia poderia impedir uma futura gravidez, recorreu ao Poder Judiciário para que a operadora custeasse o procedimento de criopreservação, por meio do qual congelam-se os óvulos para que se mantenha a capacidade reprodutiva após as sessões de quimioterapia.
Em primeiro grau, julgou-se procedente o pedido formulado, havendo a sentença sido confirmada pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, com condenação em danos morais no valor de R$ 10.000,00. A requerida, desde a contestação, sustentou a tese de que o procedimento em questão não estaria contemplado pelo rol de cobertura obrigatória, nos termos da Resolução Normativa n° 387/16 da ANS, por se tratar de inseminação artificial.
De fato, a inseminação artificial não é elencada como procedimento que deve ser mandatoriamente coberto pelo plano de saúde. Contudo, o pedido não versava sobre inseminação, mas sim a respeito de prevenção das sequelas da doença, com o objetivo de se preservar a fertilidade da paciente.
A prevenção, aliás, encontra amparo, como bem apontado no acórdão do Tribunal carioca, no art. 6° da Constituição Federal, que apresenta a proteção à maternidade como direito social.
O relator no STJ estava inclinado a reverter a decisão das instâncias inferiores, tendo chegado a proferir voto, em 19 de maio, no sentido de dar provimento parcial ao recurso da operadora do plano para excluir da condenação a cobertura dos procedimentos de reprodução assistida posteriores à "punção dos oócitos."
Sucede que a Ministra Nancy Andrighi proferiu voto-vista na semana seguinte, provendo o recurso especial em maior extensão para reconhecer a responsabilidade do plano em "custear a criopreservação dos óvulos até a alta do tratamento de quimioterapia prescrito à recorrida para o câncer de mama", fazendo com que o relator retificasse seu voto para acompanhá-la.
Em sua fundamentação, o Ministro Sanseverino menciona com absoluta adequação um princípio consagrado na Medicina1 e com inegáveis reflexos jurídicos. Trata-se do princípio da não-maleficência ou do primum non nocere, através do qual os médicos se comprometem, ao prescreverem determinado tratamento, a evitar danos e a não prejudicar o paciente, reduzindo ao máximo a ocorrência de efeitos adversos ou indesejáveis.
No caso sob exame, o corpo médico, ao indicar a uma paciente jovem tratamento quimioterápico, ciente de que poderia lhe ocasionar uma falência ovariana prematura com a consequente superveniência de esterilidade, tem, em primeiríssimo lugar, o dever de lhe informar do potencial dano a ser experimentado e do meio de que se dispõe para evitá-lo, qual seja, o congelamento dos óvulos.
Nessa linha, se o plano de saúde, por força contratual e infralegal - esta última através das disposições da Agência Nacional de Saúde Suplementar - deve custear a quimioterapia, é também obrigado a arcar com os custos de tratamento para evitar danos que podem vir a ser configurados.
Ora, a desejada cura do câncer através da quimioterapia pressupõe o dever - com os consectários no campo da responsabilidade civil dele oriundos - de primum non nocere, ou, nas palavras da Ministra Nancy Andrighi, o "dever de prevenir, sempre que possível, o dano previsível e evitável resultante do tratamento médico prescrito."
Note-se, a esse respeito, que a atenção ao "dano previsível e evitável" não é, em absoluto, desprezada pela doutrina ou pelo regramento de Direito Privado. Ao contrário e por todos, menciona-se um dos coordenadores da presente coluna, para quem o protagonismo da reparação dos danos nos últimos dois séculos dará lugar doravante à prevenção2.
Parece-nos evidente que um beneficiário que se disponha a contratar um plano de saúde, faça-o, em que pesem as limitações de cada qual em função da contribuição mensal, esperando por uma cobertura ampla, sobretudo em casos graves como os de um câncer.
Contudo, a decisão do STJ não impôs à operadora o dever de custear indefinidamente a criopreservação dos óvulos, ao considerar que o período de fertilidade de uma mulher, como aponta o IBGE, compreende, em regra, a faixa dos 15 aos 49 anos de idade.
No mesmo contexto, afigura-se ainda possível que a paciente, após a conclusão do tratamento, venha a engravidar de modo natural sem a necessidade de manejo dos óvulos congelados, constituindo mais um motivo para não atribuir dever sine die ao plano de saúde.
Como já se mencionou, o relator pretendia eximir a recorrente da cobertura dos procedimentos de reprodução assistida posteriores à "punção dos oócitos", entendida como a retirada dos oócitos (os óvulos são oócitos em fase final de maturação) dos ovários após a ministração de medicamento.
A Ministra Nancy Andrighi, entretanto, revelou preocupação com a delimitação da responsabilidade da operadora nos termos descritos já que o oócito simplesmente fora do corpo humano, sem que seja submetido à criopreservação, deixa de ser apto à futura transferência embrionária, não se atingindo, portanto, o objetivo de prevenir a infertilidade.
Por outro lado, deve-se considerar que a resolução n° 2.168/17 do Conselho Federal de Medicina estabelece que a idade máxima para as candidatas à gestação por técnicas de reprodução assistida é de 50 anos. Excepcionalmente, a paciente com idade superior pode se submeter ao tratamento se houver critérios técnicos e científicos fundamentados pelo médico a respeito da ausência de comorbidades da mulher e após dar-lhe ciência sobre os riscos que podem ser experimentados por ela e seus descendentes.
Se a autora da ação, com 30 anos de idade, congela os óvulos em virtude da possível sequela oriunda da quimioterapia, seria irrazoável atribuir à operadora, por 20 ou mais anos, o dever de custear a sua preservação.
A solução encontrada, portanto, foi a de limitar essa responsabilidade até a alta do tratamento da quimioterapia. Por uma questão de simetria, se a obrigação da operadora do plano de saúde finda com a conclusão do tratamento indicado para combater o câncer de mama, também os custos envolvidos na criopreservação dos óvulos se submetem a esse marco temporal.
Por essa razão, a decisão do Superior Tribunal de Justiça prestigia, sem dúvida alguma, dentre outros, os princípios da boa-fé contratual e da função social do contrato, cujos efeitos são amplificados por tratar-se de relação de consumo.
Como é sabido, ambos os princípios podem apresentar viés hermenêutico, socorrendo o intérprete do contrato sem ignorar as circunstâncias fáticas que envolvem seu desenvolvimento e execução, podendo flexibilizá-lo, bem como podem limitar o exercício de direitos subjetivos, coibindo-se eventuais abusos e evitando distorções contratuais com origem na vontade das partes ou em fatores externos independentes da vontade dos contratantes3.
A boa-fé contratual, no caso particular apreciado pelo STJ, é indissociável da legítima expectativa da beneficiária, adimplente quanto às mensalidades do plano de saúde, de que, não obstante a possível superveniência de infertilidade não seja o objeto central do tratamento para a cura do câncer, essa potencial sequela seja igualmente coberta.
Por sua vez, quanto ao princípio da função social, já o dissera o Professor Junqueira que tem como objetivo integrar os contratos em uma ordem social harmônica, como meio de impedir aqueles que prejudiquem a coletividade, a exemplo de contratos contra o consumidor, e também os que prejudiquem ilicitamente pessoas determinadas, como as vendas das distribuidoras "atravessadoras", objeto da consulta que lhe foi formulada na ocasião4.
Não dispondo o Estado de condições de atender todas as necessidades médicas da população em um nível satisfatório, os que detêm maior poder aquisitivo naturalmente procuram celebrar convênios através das operadoras de planos de saúde.
Há um indiscutível objetivo social nessas espécies contratuais, fato que não importa em uma atividade filantrópica das operadoras, as quais devem ser adequadamente remuneradas e geridas, sob pena de novos episódios como o da Unimed Paulistana.
Essa realidade, todavia, não é incompatível com os benefícios sociais que devem ser espraiados, mormente quando se considera que a proteção à maternidade, como se ressaltou, é direito social constitucionalmente consagrado.
Irreprochável, portanto, o acórdão de lavra do Ministro Sanseverino, com grande contribuição da Ministra Nancy Andrighi. Espera-se que os seus frutos sejam amplamente colhidos em outras lides como forma de prestigiar a dignidade dos pacientes que se submetem a tratamentos tão penosos.
*Caio Morau é doutorando, mestre e bacharel em Direito pela USP, com um ano da graduação cursado na Universidade de Paris. Professor de Direito Civil, Direito Empresarial e Prática Cível da Universidade Católica de Brasília. Diretor da Comissão de Assuntos Legislativos da Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS). Parecerista da Revista de Direito de Família e das Sucessões. Assessor jurídico no Senado Federal, advogado, árbitro (CAMES) e consultor jurídico. Associado titular do IBERC.
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1 "O princípio da beneficiência refere-se à obrigação ética de maximizar o benefício e minimizar o prejuízo. O profissional deve ter a maior convicção e informação técnica possíveis que assegurem ser o ato médico benéfico ao paciente (ação que faz o bem). Como o princípio da beneficência proíbe infligir dano deliberado, esse fato é destacado pelo princípio da não-maleficência. Esse estabelece que a ação do médico sempre deve causar o menor prejuízo ou agravos à saúde do paciente (ação que não faz o mal). É universalmente consagrado através do aforismo hipocrático primum non nocere (primeiro não prejudicar), cuja finalidade é reduzir os efeitos adversos ou indesejáveis das ações diagnósticas e terapêuticas no ser humano." Disponível aqui. Acesso em 10 ago. 2020.
2 Cf. ROSENVALD, Nelson; FARIAS, Cristiano Chaves de; BRAGA NETTO, Felipe Peixoto. Curso de Direito Civil: Responsabilidade Civil, Volume 3. 2.ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Atlas, 2015, p. 19.
3 Cf. ZANETTI, Andréa Cristina; TARTUCE, Fernanda. Atualização do CDC: Boa-fé, Superendividamento e Proibição da Arbitragem de Consumo. Revista de Direito do Consumidor, vol. 106, jul.-ago. 2016, p. 11-12.
4 Cf. JUNQUEIRA DE AZEVEDO, Antonio. Princípios do novo direito contratual e desregulamentação do mercado - Direito de exclusividade nas relações contratuais de fornecimento... [Parecer]. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 87, n. 750, p. 116, 1998.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil