Na torcida por uma vacina, uma nota sobre os riscos do desenvolvimento
terça-feira, 18 de agosto de 2020
Atualizado às 07:59
Texto de autoria de Luiza Lourenço Bianchini
No momento em que escrevo esta coluna, o Brasil já ultrapassou a marca de 100 mil mortos pela Covid-19 e 3,3 milhões de infectados. Os números são possivelmente maiores, considerando a subnotificação de casos. A pandemia ainda dá poucas mostras de diminuir o ritmo de contágio, apesar de muitas regiões já terem avançado no processo de flexibilização das regras de isolamento social. Ao impacto sanitário de proporções inéditas, somam-se os efeitos econômicos catastróficos, que recaem, principalmente, sobre as populações mais vulneráveis.
Nesse contexto de muita incerteza, as esperanças centram-se no desenvolvimento de uma vacina, estando em curso diversos estudos, alguns já avançados. Recentemente, foi noticiado que existem 21 vacinas, concebidas a partir de técnicas variadas, que já estão no estágio de testes em seres humanos1. Duas delas seriam testadas também no Brasil e poderiam ser produzidas aqui em escala maior. O processo é, entretanto, lento. Vacinas eficazes e seguras exigem pesquisas científicas que perpassam diversas etapas, o que - por mais acelerados que sejam os esforços - demanda tempo.
A torcida pelo surgimento de uma vacina contra a Covid-19 traz a reflexão sobre a responsabilidade civil pelos riscos do desenvolvimento. A sociedade tem urgência na criação de uma vacina contra o coronavírus, mas se sabe que elas podem ter efeitos colaterais, muitas vezes imprevistos. Ainda que os laboratórios sigam todos os protocolos de pesquisa científica recomendados, a vacina pode revelar efeitos colaterais apenas num segundo momento, após o uso por uma população mais vasta e o decurso de maior tempo. Nessa hipótese, sobre quem deve recair a responsabilidade pelos danos?
Os riscos do desenvolvimento se mostram quando um produto é colocado no mercado em conformidade com o nível mais avançado da técnica naquele momento ("estado da arte"), mas, posteriormente, com a evolução do conhecimento, constata-se que ele é capaz de provocar danos antes imprevistos. O caso comumente referido é o da Talidomida, medicamento que, consumido por grávidas para aliviar os enjoos da gestação, provocou o nascimento milhares de crianças com deformidades físicas. Há, infelizmente, outros exemplos mencionados pela doutrina, como o fármaco DES - prescrito para evitar aborto ou parto prematuro e que depois se mostrou ligado ao desenvolvimento de cânceres nas gerações seguintes - e o anticolesterol MER-29, que acarretou graves problemas oftalmológicos a seus usuários, dentre outros2.
No Brasil, a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento é controvertida, não havendo dispositivo legal expresso a respeito. Parte significativa da doutrina entende que a responsabilidade deve recair sobre os fornecedores. Embora com ligeiras variações, a argumentação baseia-se, em geral, na ideia de maior proteção da vítima, que - por não auferir os lucros da atividade empresarial - não deveria suportar os seus ônus. Vozes autorizadas, entretanto, defendem o contrário, orientando-se no sentido de que os riscos do desenvolvimento excluem a responsabilidade do fornecedor3.
Não há jurisprudência consolidada sobre o assunto, mas, num processo julgado em maio deste ano, o Superior Tribunal de Justiça posicionou-se a favor da responsabilidade do fornecedor pelos riscos do desenvolvimento.
O caso dizia respeito ao medicamento Sifrol, prescrito para o tratamento do Mal de Parkinson. Posteriormente ao lançamento do produto no mercado, constatou-se que um dos possíveis efeitos colaterais do remédio consistia em desencadear comportamento compulsivo. Na hipótese tratada, a autora comprovou que apresentou dependência patológica de jogos - doença classificada como tal no nível internacional - exclusivamente durante o uso do fármaco, e isso resultou na dilapidação do seu patrimônio, bem como na perda de seu emprego. Vale destacar que a bula não indicava esse específico efeito colateral, embora contivesse a advertência de que o medicamento era novo e que poderiam ocorrer reações adversas imprevisíveis ainda não descritas ou conhecidas. O STJ decidiu responsabilizar o laboratório pelos prejuízos sofridos pela autora. Entendeu que os riscos do desenvolvimento não configurariam causa de exclusão de responsabilidade, pois se trataria "de defeito existente desde o momento da concepção do produto, embora não perceptível a priori, caracterizando, pois, hipótese de fortuito interno"4.
Em sentido contrário a essa orientação, afirma-se comumente que a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento poderia desestimular o avanço da ciência, pois a indústria ficaria temerosa de lançar no mercado produtos que pudessem, no futuro, vir a causar danos pelos quais seria responsável. Tal argumento, contudo, não vem acompanhado de qualquer comprovação empírica, mostrando-se meramente retórico. Na realidade, seria mesmo possível dizer o oposto: responsabilizar a indústria por esses riscos pode funcionar como incentivo para o avanço da ciência, uma vez que estimula a descoberta de produtos mais seguros, que gerem menos riscos para a sociedade.
A omissão legislativa não ajuda a solucionar a controvérsia, em que pese o ordenamento jurídico apontar, em regra, na direção de se proteger a vítima. Sem dúvida, afigura-se mais equânime e consentâneo com o direito brasileiro que os fornecedores - que auferem os lucros da colocação do produto no mercado - absorvam os riscos envolvidos nessa atividade, responsabilizando-se pelos danos incorridos pelas vítimas. É, inclusive, o que parecem indicar os arts. 927, parágrafo único, e 931 do Código Civil, sendo certo, ainda, que o art. 12, § 3º, do Código de Defesa do Consumidor não arrola os riscos do desenvolvimento como causa de exclusão de responsabilidade.
Entretanto, a responsabilidade civil no âmbito do direito do consumidor exige que o produto seja considerado defeituoso. E, de acordo com o art. 12, § 1º, III, do Código de Defesa do Consumidor, produto defeituoso é aquele que não oferece a segurança que dele legitimamente se espera, levando-se em conta "a época em que foi colocado em circulação". Diante do teor dessa norma, não é desarrazoado o entendimento no sentido de que o produto não pode ser reputado defeituoso, se, na época em que foi colocado em circulação, o risco era desconhecido. Em razão disso, essa corrente defende que deve ser afastada a responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento.
Mas, ainda que se venha a adotar posição contrária à responsabilidade pelos riscos do desenvolvimento, vale insistir que esses riscos abarcam apenas aqueles que não poderiam ser conhecidos pelo fornecedor conforme o grau mais avançado da técnica. Se forem conhecíveis (de acordo com o estado da arte), não devem ser considerados como riscos do desenvolvimento (e, portanto, aptos a excluir a responsabilidade do fornecedor para parte da doutrina), ainda que eventualmente possam não ter sido conhecidos de fato pelo fornecedor.
E, na impossibilidade de se saber se os riscos eram ou não conhecíveis, deve-se presumir a sua cognoscibilidade. Sendo o caso de hipossuficiência do consumidor, deve operar o mecanismo processual de inversão do ônus da prova (CDC, art. 6º, VIII), atribuindo-se ao fornecedor o ônus de demonstrar que os riscos eram incognoscíveis segundo o estado da arte. Não se desincumbindo desse encargo probatório, a presunção de cognoscibilidade dos riscos milita em favor do consumidor.
Além disso, uma vez que o fornecedor passe a conhecer os riscos envolvidos (ainda que incognoscíveis num primeiro momento), tem o dever de comunicar o fato imediatamente às autoridades competentes e aos consumidores, o que, se descumprido, atrai também a sua responsabilidade civil (CDC, art. 10, § 1º).
Tais circunstâncias ampliam o espectro de responsabilização do fornecedor, independentemente de uma tomada de posição específica acerca dos riscos do desenvolvimento. A bem da verdade, as hipóteses de risco do desenvolvimento devem se limitar a casos bastante excepcionais, nos quais há prova efetiva de que o fornecedor não poderia ter conhecimento da possibilidade de causação de danos, levando-se em conta o mais avançado estado da técnica. A categoria deve, portanto, ser considerada residual.
Voltando-se à vacina contra a Covid-19, o problema aqui se mostra ainda mais complexo: será que a situação emergencial poderia afetar os contornos dessa responsabilidade5? É fato que a pandemia exige ações rápidas, mas se tende a acreditar que essa circunstância não deve afrouxar a responsabilidade dos fornecedores. Perdoe-se o trocadilho, mas a corrida pela vacina não pode significar uma imunidade aos seus fabricantes, isentando-os da responsabilidade pelos eventuais danos. Até porque uma orientação nesse sentido poderia transformar o Brasil num gigante fornecedor de cobaias, em benefício do mundo inteiro (em especial dos países mais ricos, onde se localizam os principais laboratórios farmacêuticos).
De todo modo, já é mais do que hora de o legislador enfrentar expressamente a controvérsia relativa aos riscos do desenvolvimento. Já com relação ao coronavírus, espera-se que essa questão venha a se mostrar uma mera elucubração doutrinária, sem relevância prática, pois ausente a demonstração de qualquer risco. Enfim, torçamos por uma vacina rápida e segura, no presente e no futuro, sem significativos efeitos colaterais.
*Luiza Lourenço Bianchini é mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e juíza Federal.
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1 Corrida por vacina contra Covid-19 já tem 24 delas na fase de testes em humanos.
2 Esses e outros casos são detalhadamente relatados em WESENDONCK, Tula, O regime da responsabilidade civil pelo fato dos produtos postos em circulação: uma proposta de interpretação do artigo 931 do Código Civil sob a perspectiva do direito comparado, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2015.
3 São diversas as obras sobre o tema, dentre as quais: PASQUOLATTO, Adalberto. Dará a reforma ao Código de Defesa do Consumidor um sopro de vida?, in Revista de Direito do Consumidor, volume 78/2011, p. 11-20, abr./jun. 2011; REINIG, Guilherme Henrique Lima; CARNAÚBA, Daniel Amaral, Riscos do Desenvolvimento no Código de Defesa do Consumidor: a responsabilidade do fornecedor por defeitos não detectáveis pelo estado dos conhecimentos científicos e técnicos, in Revista de Direito do Consumidor, vol. 124/2019, p. 343-392, jul./ago 2019; KROETZ, Maria Cândida Pires Vieira do Amaral; SILVA, Luiz Augusto da. Um prometeu "pós"-moderno? Sobre desenvolvimento, riscos e a responsabilidade civil nas relações de consumo, in Revista Brasileira de Direito Civil, vol. 9, jul./set 2016; CATALAN, Marcos. O desenvolvimento nanotecnológico e o dever de reparar os danos ignorados pelo progresso produtivo, in Revista do Direito do Consumidor, vol. 74/2010, p. 113-153, abr./jun. 2010; MENEZES, Joyceane Bezerra de. O direito dos danos na sociedade das incertezas: a problemática do risco de desenvolvimento o Brasil. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 1, n. 1, jul.-set./2012, disponível em: , acesso em13.7.20.; CALIXTO, Marcelo Junqueira. O art. 931 do Código Civil de 2002 e os riscos do desenvolvimento, in Revista Trimestral de Direito Civil, vol. 21, jan.-mar 2005, p. 53-93; WESENDONCK, Tula, O regime da responsabilidade civil pelo fato dos produtos postos em circulação: uma proposta de interpretação do artigo 931 do Código Civil sob a perspectiva do direito comparado, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2015; TEPEDINO, Gustavo. A responsabilidade civil por acidentes de consumo na ótica civil-constitucional. In: Temas de direito civil. 4ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 277-295; BARBOSA, F. N. Pessoa e mercado: a distribuição de encargos decorrente dos riscos do desenvolvimento. In: Joyceane Bezerra de Menezes e Francisco Luciano Lima Rodrigues. (Org.). Pessoa e mercado sob a metodologia do direito civil-constitucional. Santa Cruz: Essere nel Mondo, 2016, v. 01, p. 109-117.
4 REsp 1.774.372-RS, 3ª Turma do STJ, Min. Relatora NANCY ANDRIGHI, julgamento em 05.5.20, publicado em 18.5.20.
5 A questão é formulada por TULA WESENDONCK na coluna publicada em 07 de maio de 2020.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil). @iberc.brasil