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Revisitando o conceito de risco no CDC

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Atualizado às 08:16

Texto escrito por Adalberto Pasqualotto

A responsabilidade civil do fornecedor fundamenta-se no risco (possibilidade de defeito). O Código de Defesa do Consumidor protege: a) a saúde e segurança do consumidor: o fornecedor responde por danos causados por defeitos de produtos ou serviços; b) os interesses econômicos do consumidor: garantia de adequação de produtos e serviços à sua finalidade. O sistema persegue dois objetivos: i) prevenção de danos (artigos 8º a 10), impondo deveres de informação ao fornecedor sobre a segurança de produtos e serviços; ii) reparação de danos, conforme a, b, acima.

Os deveres de informação do fornecedor para prevenir danos ao consumidor variam conforme a gravidade do risco: A) riscos considerados normais e previsíveis, em decorrência da natureza e fruição do produto ou serviço: dever de prestar as informações necessárias e adequadas (art. 8º); B) produtos ou serviços potencialmente nocivos ou perigosos: exigência de informações ostensivas e adequadas, sem prejuízo de outras medidas cabíveis em cada caso concreto (art. 9º); C) produtos ou serviços com alto grau de nocividade ou periculosidade: o fornecedor não poderá colocá-los no mercado se disso sabia ou deveria saber (art. 10).

Não deve passar despercebida a diferença terminológica dos artigos 8º, 9º e 10. A palavra riscos (art. 8º) é substituída (artigos 9º e 10) por nocividade e periculosidade; e reaparece no conceito de legítima expectativa de segurança (art. 12, § 1º, II): o produto é defeituoso quando não oferece a segurança esperada, levando-se em conta os usos e os riscos que razoavelmente dele se esperam.

É claro que a ausência de menção a nocividade ou periculosidade não significa que os produtos classificáveis nos artigos 9º e 10 não sejam abrangidos pelo conceito de legítima expectativa de segurança. Porém, não se pode ignorar a referência à razoabilidade: na avaliação da expectativa de segurança, não se pode fazer tábula rasa dos graus diferenciais de risco. Haverá de se exigir maior rigor informativo a um produto potencialmente nocivo (medicamento de tarja vermelha ou preta - informação ostensiva) do que a outro, cujo risco é normal e previsível, e que, por isso mesmo, não demanda rigor igual (facas, tesouras), porque o risco que apresenta é baixo. O que dizer, porém, do art. 10?

No art. 10, já não há exigência de informação como forma de prevenção, porque a informação já não é remédio, o produto sequer deveria estar no mercado1. O Poder Judiciário já pronunciou a alta periculosidade de produtos, podendo ser citados os andadores infantis, as camas de bronzeamento e, mais recentemente, em decisões do Supremo Tribunal Federal, os produtos à base de amianto, ou asbesto.

Na ADI 3.470-RJ (2017), o STF decidiu que a tolerância legal ao uso do amianto crisotila (art. 2° da Lei 9.055/1995) é incompatível com a proteção social aos trabalhadores que têm contato com o produto (art. 7°, XXII, CF), com o direito de todos à saúde (art. 196, CF) e com a proteção ao meio ambiente (art. 225, CF). Segundo a decisão do STF, poderia, até mesmo, haver o "banimento de todo e qualquer uso do amianto".

Apesar de altamente cancerígeno, o produto está presente no mercado. O Min. Marco Aurélio, que votou pela constitucionalidade da lei (não foi atingida maioria necessária para declarar a inconstitucionalidade), entendeu que os efeitos colaterais negativos do amianto deveriam ser controlados pela atuação administrativa do Estado e por via da responsabilidade civil.

A questão que se põe é justamente a responsabilidade civil como meio de controle dos efeitos nocivos de um produto. A escala de risco do CDC fornece referenciais adequados para a prevenção de danos, mas também para a reparação. Produtos de alta nocividade, como o amianto, assim como outros citados pelo Ministro Marco Aurélio2, aparentemente afrontam o art. 10. Pergunta-se, então: por que o Estado não os proíbe? Cabe citar novamente o voto do Min. Marco Aurélio: "As escolhas regulatórias normalmente estão situadas no campo do 'subótimo', ou seja, vão implicar a aceitação de certos danos prováveis em troca de benefícios maiores"3. A regulação, ao invés da proibição, pode ser alternativa melhor. Em outras palavras, foi o que expressou a Corte Constitucional da Colômbia (Expediente 8096 - Sentencia C-830, 2010), ao decidir pela constitucionalidade de lei que, naquele país, decretou a proibição da publicidade de produtos derivados do tabaco. A Corte referiu-se ao conceito de "mercado passivo", ou seja, um produto cujo consumo deve ser desestimulado, mas não proibido, para evitar o incremento do contrabando - mal maior, porque a proibição da comercialização do tabaco não resultaria em desuso do produto e aumentaria a criminalidade. Foi também a escolha do legislador brasileiro, que invocou o uso plurissecular do tabaco e o fato de que não produz, no fumante, alterações de comportamento socialmente nocivas4.

O Superior Tribunal de Justiça entende que o cigarro é um produto de periculosidade inerente, cuja nocividade é amplamente conhecida, não oferecendo, assim, legítima expectativa de segurança e não sendo considerado um produto com defeito (REsp 1.113.804-RS, 2010). O brilhante voto do Ministro Luis Felipe Salomão classifica o cigarro no art. 9°, do CDC, afirmando que vinculá-lo ao art. 10 teria como consequência a proibição da sua comercialização.

O art. 10 exprime um dever ser: o produto não poderá ser colocado no mercado se o fornecedor sabe ou deveria saber da sua alta nocividade ou periculosidade. O Estado, porém, por razões de oportunidade e conveniência, poderá regular o produto ao invés de proibi-lo, como ocorre com o amianto e com o tabaco. A tolerância do Estado não pode significar, contudo, imunidade à responsabilidade do fornecedor, o que acaba ocorrendo com os fabricantes de cigarro, em face do livre arbítrio do fumante. Sem aprofundar este debate, que não é o escopo presente, a culpa concorrente (ou risco concorrente, na oportuna tese de Flávio Tartuce)5 se faz oportuna, adotada em decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Ap. Cível nº 70059502898, 2018), que se encontra em trâmite de Recurso Especial.

Voltando ao julgamento da ADI 3.470, ressaltem-se mais dois aspectos relevantes: o caráter supralegal dos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e a evolução dos conhecimentos científicos. Foi lembrada a Convenção 162, da Organização Internacional do Trabalho, que recomenda a revisão da legislação nacional sobre o amianto à luz do desenvolvimento técnico-científico. Conforme a Ministra Rosa Weber, "à luz do conhecimento científico acumulado sobre a extensão dos efeitos do amianto para a saúde e o meio ambiente", as medidas de controle previstas na lei federal já não se mostravam compatíveis com a ordem constitucional. A decisão, neste aspecto, chama a atenção para o caráter dinâmico da pesquisa científica, que deve imprimir igual dinamismo à jurisprudência. Comungando com o mesmo pensamento, consignou o Ministro Dias Toffoli que "[a] Lei nº 9.055/1995 passou por um processo de inconstitucionalização em razão da alteração no substrato fático". E revelou que, como Advogado-Geral da União, proferira parecer favorável à constitucionalidade da Lei 9.055. Mudou, todavia, de opinião, com os depoimentos de especialistas na audiência pública promovida no STF sobre o amianto. Convenceu-se de que a ideia de uso controlado da crisotila, prevalecente até então, havia sido suplantada pelo consenso em torno da natureza altamente cancerígena daquele mineral e da inviabilidade do seu uso seguro, o que o levou a concluir pela inconstitucionalidade superveniente da lei federal em questão.

Na ADI 4.874-DF (2018), foi citada a Convenção Quadro de Controle do Tabaco como standard de razoabilidade para aferição da legalidade da resolução da ANVISA que proibiu a comercialização de produtos derivados do tabaco contendo aditivos.

Concluindo: a avaliação dos riscos no CDC não dispensa um olhar atento para a integralidade do contexto normativo nacional, inclusive para as convenções internacionais, e para a evolução dos conhecimentos científicos.

*Adalberto Pasqualotto é doutor em Direito (UFRGS). Professor de Direito do Consumidor (PUC/RS).

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1 Comentou Benjamin sobre produtos com "periculosidade exagerada": "(...) ao contrário dos bens com periculosidade inerente, a informação adequada aos consumidores não produz maior resultado na mitigação dos riscos. Seu potencial danoso é tamanho que o requisito da previsibilidade não consegue ser totalmente preenchido pelas informações prestadas pelos fornecedores" (BENJAMIN, Antônio. Comentários ao Código de Proteção do consumidor. Coord.: Juarez de Oliveira. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 52.

2 "Para o público em geral, não há indicações de que o amianto seja mais perigoso que outras substâncias igualmente conhecidas e lícitas, como o tabaco, o benzeno, o álcool, etc." (do voto do Min. Marco Aurélio na referida ADI 3.470).

3 A existência ou não de benefícios do produto é outro fator a ser ponderado. Há utilidade social em caixas d'água e em telhados, mas é questionável a mesma afirmação quanto a andadores infantis e tabaco.

4 "Quanto ao fumo, seja de produtos derivados ou não do tabaco, não se conhecem benefícios. Pelo contrário, seus malefícios físicos e provocadores de doenças mortais são hoje reconhecidos indiscutivelmente. Se não à possível, nem conveniente torná-lo ilegal, seja pela admissão plurissecular do seu uso, seja por não provocar alterações nocivas no comportamento social ou intelectual dos que o utilizam, é forçoso procurar reduzir-0lhe o emprego e advertir os usuários de seus malefícios". Da Justificação do Projeto-de-lei nº 4.556, de 1989, de autoria do Deputado Elias Murad e outros 11, que resultou na lei 9.294/1996. Disponível aqui. Acesso em 27/7/2020.

5 TARTUCE, Flávio. Responsabilidade civil e risco: a teoria do risco concorrente. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2011.

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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).