O que as funções da responsabilidade civil podem nos ensinar no período de pandemia e de pós-pandemia?
terça-feira, 7 de julho de 2020
Atualizado às 09:43
Texto de autoria de Flaviana Rampazzo Soares e Ísis Boll de Araujo Bastos
I want to hold your hand.1
Um novo mundo surgiu em 2020, e o Brasil, em meados do mês de março, passou a ceder espaço ora ao isolamento, ora ao distanciamento social, que se consolidou como medida necessária ante a onda pandêmica que fora inaugurada. Acoplaram-se aos indivíduos, nesse cenário, os sentimentos de insegurança, de incerteza, de ansiedade e de medo, os quais se tornaram comuns entre muitos.
Nesse período de pandemia, muitas mudanças ocorreram, em diferentes âmbitos da vida e, passados três meses, ainda vivemos um momento de grande obscuridade, conquanto tenhamos aprendido muitas coisas. Assim, é admissível a pergunta quanto ao papel da responsabilidade civil nesse contexto.
Aplicando-se o trecho da música dos Beatles acima mencionado ao objeto deste texto, pode-se afirmar, figurativamente, que a responsabilidade civil quer nos dar a mão. Para onde ela nos levará e de que forma ela pode nos ajudar a passar por esse período tão peculiar? Como podemos relacionar o conhecimento das funções da responsabilidade civil com os desafios enfrentados no momento que estamos vivenciando e para o pós-pandemia?
Oh, yeah, I'll tell you something
I think you'll understand
Podemos partir da constatação de que, embora o substantivo dano seja uma palavra de ínsita tortuosidade - que envolve uma perda vinculada a interesses de diferentes feições juridicamente tuteladas, em maior ou menor medida -, a responsabilidade civil pode se apresentar como bálsamo, como a mão estendida, para evitar, para suplantar ou para mitigar esses indesejáveis danos. Mas a isso não se limita.
Essa responsabilidade, como expressão polissêmica que é, tem uma mão generosa e multifacetada, das melhores de se poder contar. É neta do Direito, filha do Direito Civil. Portanto, vem de uma família com uma nobreza de propósitos e com uma base fundante louvável. É ramo do conhecimento, é doutrina e ciência, é fundamento de postulações e de decisões, e é prática jurídica. É o que se constata, o que se avalia e o que se almeja, conforme o contexto no qual for empregada. Essa pluralidade atribui à responsabilidade civil uma grande potencialidade, a qual se expressa, como visto, de diversas formas, em especial, por suas funções.
Nesse campo, a responsabilidade civil manifesta os seus méritos, por meio da sua multifuncionalidade e flexibilidade aos influxos do direito, em suas necessidades e circunstâncias. À clássica função indenizatória (nela compreendia a compensação e a reparação), agregam-se as funções precaucional, preventiva de danos, de desestímulo a comportamentos indevidos e punitiva2 quanto a condutas lesivas inaceitáveis3, a almejar a cessação do ilícito (na imputação subjetiva), a extinção do ato lesivo, a proteção de valores juridicamente albergados e o alcance da justiça e da equidade. Essas funções estão radicadas na tônica da responsabilidade civil, que é o dever de cuidado.
Portanto, a responsabilidade civil contemporânea exige um repensar, para o qual o objetivo é o de se ajustar às novas exigências da sociedade4. Se a resposta ao desafio apontado, no mundo anterior a pandemia, era algo que estava no radar de grande parte daqueles que se debruçam sobre o tema, essa adequação no novo (atual) e no próximo (pós-pandemia) mundo se faz ainda mais presente e necessária, em exercício contínuo, que ensejará possíveis soluções diferenciadas no tempo.
O Direito Privado, no mundo de pandemia e no de pós-pandemia, exige mudanças de comportamento dos seus atores, nos mais diversos contextos. É nesse sentido, que se reforça a necessidade de perceber e de alinhar a responsabilidade por meio da sua função preventiva, a qual se faz necessária pela visão do aspecto que é mais caro ao ser humano: a sua saúde.
Embora se reconheça que a relação coletividade versus individualidade seria tema para um novo texto, é necessário vislumbrar e vivenciar a responsabilidade civil como um instrumento capaz de sustar ou de suplantar uma conduta lesiva a um ou a vários indivíduos, ou, adicionalmente, para proteger interesses juridicamente tutelados que possam ser ou que tenham sido lesados indevidamente.
No mundo atual (pandemia) a nossa conduta individual, em alguma medida, costuma impactar na coletividade, e um exemplo simples é o cuidado no uso correto da máscara: quando nos protegemos individualmente, protegemos os demais da propagação do vírus, e jamais uma indenização será capaz de suprimir o dano decorrente de uma morte por Covid-19.
Com isso, por exemplo, cabe ao empregador tomar as melhores medidas para evitar que o seu colaborador possa ser exposto ao vírus ou a condições adversas de trabalho; ao comerciante, de adaptar as suas instalações para evitar aglomerações ou situações de risco não razoável de contágio; ao médico, de agir da melhor forma possível para tratar o paciente. Diante das feições da doença, em especial o seu modo de contágio, conquanto não se possa falar de responsabilização individual da pessoa enferma pela contaminação de outras pessoas, se foram observados os cuidados admissíveis, como o uso de máscara, tem-se que comportamentos dolosos ou de culpa grave poderão ensejar responsabilização civil ou penal, conforme as circunstâncias concretamente consideradas, pelos danos que possam ter sido causados a um indivíduo ou a uma coletividade, por eventual exposição ou facilitação ao risco de contágio (art. 81, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor).
Assim, nunca se faltou tanto em "medidas de prevenção" no âmbito do direito, tema este que já era motivo de construção teórica e prática na responsabilidade civil. Rosenvald já defendia e guiava nosso olhar para observar a prevenção para além de uma função pura e simples da responsabilidade civil, devendo ser ela entendida como princípio e como cerne da responsabilidade civil contemporânea e, nesse sentido, ela encontra-se presente em todas as demais funções da responsabilidade civil5.
Neste sentido, por exemplo, vislumbra-se com maior frequência a defesa de uma função precaucional no direito ambiental e na tutela do meio ambiente. Morato Leite e Melo defendem que a "responsabilidade civil passa a se preocupar com as questões que estão por vir", não sendo necessária "a efetiva concretização do dano, bastando a exposição da sociedade aos riscos"6.
A responsabilidade civil se manifesta e está presente, direta ou indiretamente, nas tutelas inibitórias postuladas na prevenção e no desestímulo a condutas indesejáveis, na análise particularizada de atos estatais vinculados a pandemia que representem desvio de finalidade, exercício desmedido de poder ou desproporcionalidade em vista das circunstâncias concretamente consideradas, para que se evitem danos ou para que os seus efeitos não se perpetuem; na tutela compensatória para tentar suplantá-los; nas astreintes, como ferramenta apta a incitar uma determinada conduta juridicamente correta e desejável. A pandemia igualmente indica a necessidade de uma atenção à potencialidade da pena civil como uma opção a ser pensada e aplicada, com maior envolvimento legislativo e com critérios técnicos a serem definidos quanto a sua incidência e os seus limites, a permitir uma implementação adequada no sistema jurídico brasileiro.
Num mundo pós-pandemia, portanto, a cultura da prevenção passará a ter maior proeminência.
And, please, say to me
You'll let me hold your hand
Now let me hold your hand
I wanna hold your hand
A responsabilidade civil nos estendeu a mão e nos diz que estará a postos sempre que estivermos dispostos a aceitá-la, a indicar a sua presença como ensinamento, como base e como ferramenta posta à disposição ao atendimento de fins legítimos, mas é preciso que, para alcançar esse desiderato, a comunidade jurídica saiba segurar essa mão quando e na medida do necessário e útil.
Mesmo que ela nos estenda a mão, não podemos ser inertes e esperar que ela, sozinha, resolva todos os males. Se nós aceitamos dar a mão à responsabilidade civil, admitimos que fazemos parte dessa aliança, que também somos protagonistas e, por isso, devemos trilhar por caminhos virtuosos, cujo trajeto e fim nos direcione à sua evolução, com o propósito de crescimento e de desenvolvimento virtuoso tanto das pessoas individualmente consideradas, quanto da coletividade, na melhor medida possível.
Essa talvez seja a principal reflexão que deve ser exercitada: enquanto atores desse mundo tão complexo, plural e desafiador, devemos nos perguntar como podemos utilizar o instituto da responsabilidade civil de maneira prospectiva, cuidando do presente, mas com o olhar para o resultado da sua aplicação sábia e com vistas a sua efetividade, no futuro.
*Ísis Boll de Araujo Bastos é professora de Direito Privado na UNIFESP. Doutora, com estágio doutoral de pesquisa na Universidad de Burgos (UBU) - Espanha e mestre em Direito pela PUC/RS. Mediadora com formação e certificação internacional pelo Instituto de certificação e formação de mediadores lusófonos (ICFML) e Universidade Católica Portuguesa - Porto/Portugal. Palestrante convidada em cursos de pós-graduação lato sensu e de e formação em mediação.
**Flaviana Rampazzo Soares é doutora em Direito pela PUC/RS. Mestre em direito pela mesma Universidade. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos Unisinos/RS. Advogada. Professora em cursos de pós-graduação em Direito lato sensu.
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1 Os trechos em inglês mencionados neste texto são da clássica música I want to hold your hand, dos Beatles. A linguagem figurada é a tônica do texto.
2 Na função punitiva, a intenção é de punir alguém pela conduta praticada e que "ofenda gravemente o sentimento ético-jurídico prevalecente em determinada comunidade". FACCHINI NETO, Eugênio. Funções e modelos da responsabilidade aquiliana no novo Código Civil Revista Jurídica, n. 309, julho/2003, p. 23-32. p. 27-28.
3 A tendência da "teoria da responsabilidade civil é no sentido de ampliar, cada vez mais, a sua abrangência, a fim de possibilitar que todo e qualquer dano possa ser reparado". FACCHINI NETO, Eugênio. Da responsabilidade civil no novo Código. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.) O novo Código Civil e a Constituição. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 181.
4 ROSENVALD, Nelson. As funções da Responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 34 e 49.
5 ROSENVALD, Nelson. As funções da Responsabilidade Civil: a reparação e a pena civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 69.
6 MORATO LEITE, José Rubens, MELO, Melissa Ely. As funções preventivas e precaucionais da responsabilidade civil por danos ambientais. Revista Sequência, n. 55, p. 195-218, dez./2007. Disponível aqui.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).