A Pandemia e o contrato de transporte aéreo: breves notas
quinta-feira, 14 de maio de 2020
Atualizado às 09:06
Texto de autoria Bruno Leonardo Câmara Carrá
Quando grafei, no título desse artigo, a palavra pandemia, sabidamente um substantivo comum, em maiúsculo, não o foi necessariamente por desconhecimento da regra gramatical, embora até pudesse ter sido. O que quis, com isso, foi sugerir que a pandemia da covid 19, diante assoladora crise sanitária que provocou em todo planeta, traz consigo uma ideia tão particular de desolação, de estagnação, de enfermidade física, mas também econômica e social que merece ser considerada já um nome próprio. Como a Peste, a Pandemia projeta seus efeitos deletérios por todos os lados, muitos, lamentavelmente, ainda por conhecer.
Quantos ainda haverão de perecer? Quantas mais vidas se afundarão mercê da debacle financeira por ela causada? Não há sequer resposta agora para isso. Tifão, o mais temido dos monstros da mitologia greco-romana, era capaz de impor grande pavor até nos deuses olimpianos e, abrindo os imensos braços, flagelar tanto o oriente como o ocidente. O novo coronavírus faz idêntico, disseminando toda forma de medo e dano por onde passa, sem nem mesmo precisar ter o tamanho bestial daquele titã.
Ao longo das últimas semanas publicam-se escritos nos mais diversos ramos jurídicos para tratar do impacto da covid-19 nas várias situações da vida humana que o direito, por definição, tem a função de normatizar a fim de garantir uma convivência minimamente pacífica entre nós, indivíduos, que damos forma a esse grande corpo que é a sociedade. Nesse texto, pretendo abordar seus efeitos sobre um dos primeiros e mais fortemente contratos atingidos por ela: os de transporte aéreo.
Por conta da Pandemia, parece ser inevitável uma crise sem precedentes na aviação mundial, a qual sempre trabalhou, como disse certa vez um famoso tenor de ópera, nos limites de seus agudos. Essa modalidade de transporte, com efeito, opera constantemente nos extremos de um tênue equilíbrio financeiro. Por outro lado, dado os antípodas dialéticos que o caracterizam, a saber, o risco natural para as pessoas e bens transportados, de um lado, e, por isso mesmo, a obrigação de segurança do transportador, que de longa data o caracteriza1, do outro, as regras de responsabilidade contratual no setor aéreo foram objeto, ao longo do século passado, de um constante aprimoramento a bem, via de regra, de seu usuário.
No âmbito internacional, da Convenção de Varsóvia ao Protocolo de Haia; da Criação da IATA - International Air Transport Association à Convenção de Montreal, põe-se à evidência uma nítida evolução destinada a fixação de um modelo de responsabilidade objetivo, mais amplo, no sentido de considerar juridicamente protegidos um maior leque de danos sofridos sobretudo pelo passageiro e com maiores topes indenizatórios. Igual fenômeno foi visto, no âmbito do transporte aéreo doméstico, aqui no Brasil, onde ficou evidente o conflito entre as antiquadas normas do Código Brasileiro de Aeronáutica, lei 7.565/86 ainda em vigor, e a novel legislação de proteção ao consumidor, ou ainda em relação ao próprio Código Civil de 2002, o qual, não raro, possui disposições mais favoráveis ao transportado que o próprio Código de Defesa do Consumidor2.
Sobre o assunto, por sinal, se há um caso onde o diálogo de fontes, para fazer referência à doutrina de Erik Jaime tão propagada no Brasil, tenha sido querido pelo legislador foi o contrato de transporte. Realmente, o Código Civil em seu art. 732 expressamente menciona a possibilidade de conjugação de suas normas com outras da legislação específica, gerando o fenômeno de complementação entre os vários diplomas legais que tratam do transporte, mais especificamente, do aéreo. A respeito do tema, por ocasião da IV Jornada de Direito Civil, aprovou-se, por proposta inicial do signatário, o enunciado 369, cuja redação foi substancialmente aprimorada pela intervenção de professores como Cláudia Lima Marques e Carlos Roberto Gonçalves entre outros.
Se dúvidas, no entanto, ainda existiam no pertinente à aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos de transporte aéreos, elas desaparecem diante das teses que restaram definidas pelo Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento, em 18/08/2016, do Recurso Especial 1469087/AC, tendo como relator o Ministro Humberto Martins. O acórdão cita a necessidade de diálogo entre as várias fontes normativas que tratam do transporte aéreo porquanto o "Código de Defesa do Consumidor não prejudica as normas do setor aéreo brasileiro uma vez que é um diploma que permite exemplarmente a aplicação conjunta de fontes para o equilíbrio das relações de consumo".
É dentro desse intrincado contexto de mosaico normativo que chega a Pandemia. Já não fosse difícil, sob condições normais encontrar o equilíbrio necessário entre a sobrevivência das companhias aéreas e os direitos daqueles que se valem de seus serviços, o que é cada vez mais comum e essencial3, o que dizer, agora, diante de uma catástrofe sanitária que, como uma das primeiras consequências, pôs em terra, literalmente, a aviação mundial. Como sabido, o fechamento de fronteiras, internas e externas, foi uma das primeiras medidas de contenção ao vírus. A União Europeia a anunciou em 16 de março passado com efeito em todos os seus países membros. No Brasil, antes mesmo, a redação da lei 13.979, publicada em 06 de fevereiro deste ano, e ampliada pela Medida Provisória 926, de 20 de março, já previa o bloqueio fronteiriço, o que, de fato, tem sido aplicado, senão total, pelo menos parcialmente, tanto nos níveis federal como estadual.
Na realidade, dois dias antes da mencionada MP, em 18 de março de 2020, já havia sido editada outra, de n. 925, a qual dispôs sobre "medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da covid-19" (art. 1º). A MP tem, na prática, apenas um artigo, o 3º, relacionado com o transporte aéreo. Nele é determinado que as companhias aéreas devem realizar o reembolso dos valores relativos à compra de passagens aéreas no prazo de doze meses, "observadas as regras do serviço contratado e mantida a assistência material, nos termos da regulamentação vigente" (caput); logo em seguida, enuncia que "os consumidores ficarão isentos das penalidades contratuais, por meio da aceitação de crédito para utilização no prazo de doze meses, contado da data do voo contratado" (§ 1º) e que tais disposições são aplicáveis aos contratos firmados até 31 de dezembro de 2020 (§ 2º).
Como é possível perceber, a MP em questão assegura, em primeiro lugar, o direito à restituição, embora em doze parcelas e sem custos de remarcação para o passageiro. No âmbito normativo, tal regra, poder-se-ia dizer, constitui-se como exceção, razoável e, por isso mesmo autorizada nesses tempos atípicos que vivemos à regra do art. 740 do Código Civil que lhe garantiria, em teoria, "rescindir o contrato de transporte antes de iniciada a viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que feita a comunicação ao transportador em tempo de ser renegociada". Na prática, se trata até de providência interessante e que pode favorecer em alguma medida o consumidor, pois, lamentavelmente, o citado art. 740 do CC nunca recebeu no âmbito do transporte aéreo de carreira, regulamentação em sua exata extensão.
Portanto, parece que, nesse torvelinho de incertezas que a Pandemia nos trouxe, a MP, a exemplo da Lei Faillot em sua época, nos traz alguma luz de certeza e algum ponto de equilíbrio ao preconizar uma alteração na base do negócio jurídico, estabelecendo a devolução da passagem, eventualmente do frete, no transporte de carga, sob uma sistemática diferente, um pouco mais favorável ao transportador, é verdade, mas plenamente justificada pelo momento excepcional4. O ponto de inflexão, a exigir dos juristas, parece, uma maior atenção vem a ser o confronto entre a regra do caput do art. 3º e aquela que decorre de seu § 1º, ambas transcritas. É que a Medida Provisória oferta também a possibilidade do crédito para remarcação do bilhete para utilização no prazo de doze meses, aqui expressamente mencionando que aqueles que assim o fizerem ficarão isentos das penalidades.
Pelas mesmas razões já apontadas, a providência, inclusive com a limitação temporal nela descrita, mostra-se, em princípio, dotada de razoabilidade, pois, uma vez mais, "se extrema é a doença, extremo deve ser o remédio", frase atribuída a ninguém menos que Hipócrates, pai da Medicina. Contudo, a leitura apressada das duas disposições pode revelar que apenas na segunda, a do § 1º, haveria o uso do crédito sem custos. Nesse caso, acredita-se, a resposta deve ser negativa. Contudo, antes de se adentrar no estudo propriamente dito do tema, uma advertência: há notícias de companhias aéreas que simplesmente estão ignorando até mesmo a norma do § 1º, do art. 3º, da MP 925/20. Aqui não há nem o que se conjecturar, cuida-se de prática abusiva e que pode ser objeto da devida reclamação pelo consumidor.
Quanto ao ponto propriamente dito, a regência normativa múltipla do contrato de transporte impõe, por justiça contratual, que ambas as disposições sigam a mesma lógica, não se podendo impor ao consumidor o ônus de pagar taxas de cancelamento de um serviço que não foi realizado. Para tanto, há argumentos que podem ser sacados seja da legislação consumerista, seja a partir das regras gerais constantes do Código Civil sobre a resolução dos contratos, o uso dos institutos do caso fortuito e força maior5, além do enriquecimento indevido, chegando-se ao mesmo resultado prático quer se as aplique conjugada ou independentemente.
É certo que, claro, o uso do crédito representa uma vantagem importante para as companhias aéreas, o que, numa situação de crise tamanha como a atual, pode ser um importante instrumento de soerguimento para elas; nada obstante, não compraz com nenhuma aplicação do princípio da boa-fé objetiva nas relações privadas querer que tal ônus seja transferido ao consumidor. Para tanto, a fim de não cansar em demasia o leitor, não é necessário nem mesmo recorrer à legislação protetiva do consumidor como, por exemplo, os arts. 20 e 51, IX e XI, da lei 8.078/90. Partamos do que diz o Código Civil, que regulamenta as relações negociais partidárias.
Incorporando regra que já existia desde o Direito Romano, em matéria de obrigações de fazer, prescreve a legislação civil: "se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos" (art. 248). Ora, essa vem a ser justamente a situação em comento. É certo, como antes também destacado, que não há culpa da companhia aérea no cancelamento do vôo, porém a consequência jurídica de tal situação não pode ser em hipótese alguma imposta ao passageiro dentro apenas de sua conveniência e interesse. Em tais situações, impossibilitada a prestação de fazer sem culpa do devedor, a obrigação resolve-se para ambas as partes e, com isso, retornam as partes ao status quo ante.
A disposição, naturalmente, se encontra em perfeita harmonia e compatibilidade com a norma de Justiça e boa-fé objetiva que impõe o dever de restituição, por parte daquele que experimentou o ganho sem contraprestação, de devolver o que lhe foi adiantado para não incorrer em enriquecimento indevido na forma do art. 884 e seu parágrafo único, ambos do Código Civil. Até mesmo porque, em vários casos, não há mais para o consumidor interesse algum em realizar a viagem. Logo, não realizado o serviço, se por um lado parece lídima a regra de parcelamento da devolução, o mesmo não se poderia dizer de qualquer tentativa de nela inserir taxas de cancelamento.
Para concluir, algo rápido, possivelmente polêmico, mas, sinceramente, de fácil resolução: cabem danos morais pela não prestação do serviço?6 Não, não os cabem. A jurisprudência mais recente do STJ deixa claro que em matéria de cancelamento de vôos, os danos morais resultantes não são in re ipsa, devendo o autor demonstra-los concretamente7. Basta isso, me parece, para referendar, pelo menos aqui, a disposição constante do art. 5º, da MP n. 948, de 08 de abril último. Por tudo o quanto se disse antes, nisso a princípio, as companhias aéreas se encontram plenamente justificadas.
*Bruno Leonardo Câmara Carrá é juiz federal; doutor em Direito Civil pela USP; pesquisador visitante nas Universidades de Bolonha, Paris V e Oxford; professor da UNI-7.
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Esta coluna é exclusivamente produzida pelos associados do IBERC (Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil).
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1 DE CUPIS, Adriano. I Fatti Illeciti. In: Trattado de Diritto Civile. Milano: Casa Editrice Dr. Francesco Vallardi, 1961. vol. IV. p. 10; PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 6 ed. universitária. Rio de Janeiro: Forense, 1994. vol. III. p. 208.
2 É o caso, por exemplo, do art. 735 do Código Civil que torna a responsabilidade do transportador de passageiros mais agravada que a do simples fornecedor de serviço constante do Código do Consumidor, na medida que exclui a alegação da culpa de terceiro. A despeito, a nosso sentir, da clareza legal, a questão é fonte de intenso debate na jurisprudência nacional.
3 Fato, por sinal, também devidamente consignado no precedente do STJ acima referido: "O transporte aéreo é serviço essencial e, como tal, pressupõe continuidade. Difícil imaginar, atualmente, serviço mais "essencial" do que o transporte aéreo, sobretudo em regiões remotas do Brasil".
4 A ironia reside justamente em usar um princípio de mutação (rebus sic stantibus) para preservar a imobilismo dos negócios privados (pacta sunt servanda). Sobre o assunto, cf.: RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão Judicial dos Contratos. autonomia da vontade e teoria da imprevisão. São Paulo: Atlas, 2002. passim.
5 Em outra oportunidade, afirmei que seria mais apropriado recorrer à ideia de act of God e sua experiência jurisprudencial nos tribunais da Common Law. Cf.: Coronavírus, direito à saúde e danos extrapatrimoniais: qual a correlação? In: ROSENVALD, Nelson; MONTEIRO FILHO, Carlos Edison do Rêgo; DENSA, Roberta. (org.). Coronavírus e responsabilidade civil: impactos contratuais e extracontratuais. Indaiatuba: FOCO, 2020, v. 1, p. 313-324
6 Perdão aos mais puristas se não uso o termo extrapatrimoniais, agora de moda.
7 Dentre outros: REsp n. 1796716/MG, 3ª Turma, Relª. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 27/08/2019, DJe 29/08/2019.