Redes sociais devem ser responsabilizadas por conteúdo de usuários? Qual o melhor caminho a seguir?
sexta-feira, 26 de abril de 2024
Atualizado às 07:32
O recente embate envolvendo Elon Musk e o Supremo Tribunal Federal brasileiro reacendeu a discussão em torno da responsabilidade das plataformas digitais por conteúdo gerado por usuários.
Trata-se de uma das maiores discussões na era da internet. A quem deve caber o controle das informações veiculadas por usuários de redes sociais (provedores de informação) que podem afetar a honra, intimidade, privacidade ou outro direito de terceiros? Em caso de violação desse tipo, deve ter o provedor de rede social alguma responsabilidade por conteúdo gerado por seu usuário?
Exemplificando para o leitor leigo: se Maria utilizar o Facebook para caluniar José, ou postar uma foto dele sem seu consentimento, deverá responder o Facebook por danos morais?
O tema é polêmico e gira em torno da existência de um "dever geral de vigilância" por parte do provedor de serviço, no caso plataformas de redes sociais como o Facebook, X, Instagram, Linkedin, entre outros. Na União Europeia, a antiga Diretiva de e-commerce 31/2000 excluía tal dever geral de vigilância em seu art. 15:
Artigo 15º
Ausência de obrigação geral de vigilância
1. Os Estados-Membros não imporão aos prestadores, para o fornecimento dos serviços mencionados nos artigos 12.o, 13.o e 14.o, uma obrigação geral de vigilância sobre as informações que estes transmitam ou armazenem, ou uma obrigação geral de procurar activamente factos ou circunstâncias que indiciem ilicitudes.
2. Os Estados-Membros podem estabelecer a obrigação, relativamente aos prestadores de serviços da sociedade da informação, de que informem prontamente as autoridades públicas competentes sobre as actividades empreendidas ou informações ilícitas prestadas pelos autores aos destinatários dos serviços por eles prestados, bem como a obrigação de comunicar às autoridades competentes, a pedido destas, informações que permitam a identificação dos destinatários dos serviços com quem possuam acordos de armazenagem.1
No entanto, prevalecia a regra denominada pela doutrina de "notice and take down" (notificação e retirada),2 ou seja, o dever de retirada de conteúdo ilegal após a notificação e conhecimento do referido conteúdo, como constava no artigo 14 da mesma diretiva:
Artigo 14º
Armazenagem em servidor
1. Em caso de prestação de um serviço da sociedade da informação que consista no armazenamento de informações prestadas por um destinatário do serviço, os Estados-Membros velarão por que a responsabilidade do prestador do serviço não possa ser invocada no que respeita à informação armazenada a pedido de um destinatário do serviço, desde que:
a) O prestador não tenha conhecimento efectivo da actividade ou informação ilegal e, no que se refere a uma acção de indemnização por perdas e danos, não tenha conhecimento de factos ou de circunstâncias que evidenciam a actividade ou informação ilegal, ou
b) O prestador, a partir do momento em que tenha conhecimento da ilicitude, actue com diligência no sentido de retirar ou impossibilitar o acesso às informações.
Em 2022, contudo, a União Europeia aprovou o Regulamento para Serviços Digitais (Digital Services Act - DAS), que passou a vigorar em 17 de fevereiro de 2024, alterando a disciplina anterior.3
O DAS manteve a responsabilidade condicionada dos provedores segundo a regra do "notice and take down", excluindo o dever geral de vigilância:
Artigo 8º
Inexistência de obrigações gerais de vigilância ou de apuramento ativo dos factos
Não será imposta a esses prestadores qualquer obrigação geral de controlar as informações que os prestadores de serviços intermediários transmitem ou armazenam, nem de procurar ativamente factos ou circunstâncias que indiquem ilicitudes.
Em geral, a norma europeia isenta as redes sociais de promover uma vigilância sobre as postagens dos usuários, salvo nas seguintes hipóteses:
a) que a rede social não participe direta ou indiretamente da postagem, originando a transmissão, ou selecionando ou modificando os destinatários ou conteúdo transmitido;
b) não tenha conhecimento efetivo da atividade ou conteúdo ilegal;
c) que após conhecimento da ilicitude, tenha agido para suprimir ou desativar o acesso aos conteúdos ilegais.
Nos Estados Unidos, o Telecommunications Decency Act, de 1996, também exime os provedores do dever de vigilância:
SEC. 230. Protection for private blocking and screening of offensive material.(...) (1) Treatment of publisher or speaker - No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider. (2) Civil liability - No provider or user of an interactive computer service shall be held liable on account of (A) any action voluntarily taken in good faith to restrict access to or availability of material that the provider or user considers to be obscene, lewd, lascivious, filthy, excessively violent, harassing, or otherwise objectionable, whether or not such material is constitutionally protected; or (B) any action taken to enable or make available to information content providers or others the technical means to restrict access to material described in paragraph (1).
Assim, no âmbito eurocomunitário e nos Estados Unidos, a responsabilidade da rede social por conteúdo danoso gerado por seus usuários é sempre subjetiva, ou seja, depende da comprovação de sua culpa, incorporando-se a regra "notice and takedown".
E qual regra se aplica no Brasil?
Em 14.12.2010, o STJ entendeu, no julgamento do Resp 1.193.764, que a Google, mantenedora da antiga rede social Orkut, não seria responsável pela fiscalização do conteúdo das informações prestadas por cada usuário. Posteriormente, o Superior Tribunal de Justiça consolidou a adoção do sistema do "notice and take down", com a necessidade de notificação extrajudicial do provedor de aplicação para retirada de qualquer conteúdo que se entendesse ilícito, a qual deveria ser atendida no prazo de 24 horas, sob pena de responsabilidade solidária.4
Em primeiro lugar, é importante reconhecer que as empresas que controlam redes sociais fornecem um serviço de hospedagem de conteúdo de dados fornecidos por consumidores, assumindo a natureza de relação de consumo.5
Também destaca Bruno Miragem que, mesmo em relações que não sejam consumeristas, mas regidas genericamente pelo Código Civil, a atividade desenvolvida pode gerar, por si, a responsabilidade por risco da atividade (art. 927 do CC).6
Desde 23 de abril de 2014, contudo, está em vigor o Marco Civil da Internet, o qual trouxe previsão específica sobre a responsabilidade das redes sociais por conteúdo de usuários, acolhendo em parte a regra do "notice and takedown". Assim como na Europa e EUA, o modelo brasileiro não impõe aos provedores o dever geral de vigilância e também os isenta de responsabilidade por conteúdo gerado por seus usuários. Além disso, segundo o artigo 19, não basta o "notice" (recebimento do aviso) para o "takedown" (remoção) - exige-se ordem judicial específica, ou seja, o "judicial notice". O "notice and takedown" foi acolhido em sua totalidade apenas no art. 21, no caso de violação à intimidade decorrente de divulgação, sem autorização, de imagens, vídeos ou outros materiais contendo cenas de nudez ou atos sexuais de caráter privado.
O modelo brasileiro assegura maior liberdade de expressão aos usuários, menor censura e mais segurança jurídica para os provedores. O aumento vertiginoso na utilização de redes sociais, contudo, transformou o ambiente virtual em um espaço extremamente vulnerável a abusos cometidos por usuários, expondo-se a honra e a intimidade de terceiros e, de forma mais grave, tornando-se um meio de propagação de notícias falsas e de todo tipo de desinformação, gerando riscos para a ordem pública e afetando de forma concreta direitos individuais e coletivos, como a saúde e a educação e até mesmo políticos, especialmente no que se refere aos processos eleitorais.
Tal massiva virtualização das relações sociais nesse ambiente ainda em fase de conhecimento e consolidação de normas espontâneas, como as normas morais e sociais presentes na sociedade tradicional, passou a produzir uma quantidade de conflitos incompatível com a regra prevista no artigo 19 do marco civil da internet.7
Deveras, se todas as postagens ofensivas, caluniantes ou mentirosas dependerem de intervenção judicial para sua remoção, teremos uma paralisia do Poder Judiciário.
Para isso, é necessária uma revisão da ultrapassada regra adotada no artigo 19 do marco civil da internet. Uma das propostas é a substituição da medida judicial por outros meios alternativos, como termos de ajustamento de conduta.8
Martins e Longhi observam ainda que a importação acrítica da regra do "notice and takedown" do direito americano ou eurocomunitário implica uma inversão do ônus da prova em detrimento do consumidor, violando o art. 51, VI, do Código de Defesa do Consumidor. Isso, porque ficaria o consumidor obrigado a provar que notificou a empresa responsável pela rede social solicitando a retirada de conteúdo danoso. Ainda segundo os autores,
Em face da vulnerabilidade técnica e informacional do consumidor na Internet, mostra-se excessivo condicionar a responsabilidade do fornecedor a uma atitude prévia do consumidor, o que afronta, inclusive, o principio constitucional do livre acesso ao Judiciário (art. 5.º, XXXV, da CF/1988).9
Martins e Longhi10 defendem ainda a tese da responsabilidade objetiva dos provedores de redes sociais no direito brasileiro por danos causados por usuários a terceiros, à luz do art. 14 do Código de Defesa do Consumidor, o qual dispõe:
Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos.
Segundo os autores, a responsabilidade objetiva dos provedores de redes sociais se justifica por três fundamentos: a) do controle maciço de informação para obtenção de remuneração mediante contratos de publicidade, b) detenção dos meios técnicos de se individualizar os reais causadores dos danos e c) realização da função social da atividade econômica, corolário da dignidade da pessoa humana (art. 1.º III, da CF/1988) e do princípio da solidariedade social (art. 3.º, I, da CF/1988). Ainda sugerem os autores que o risco do negócio e o pagamento de eventuais indenizações poderia ser embutido nos contratos de publicidade, devendo haver inclusive securitização contra esses eventos danosos.11
Concordamos apenas em parte com esse entendimento. De fato, nos casos em que o controlador das redes sociais utiliza o conteúdo gerado por provedores de informação para fins econômicos, o dano gerado com a informação tratada deve ensejar sua responsabilidade. No entanto, temos ressalvas quanto à responsabilização dos provedores de aplicativos por condutas exclusivamente imputáveis aos usuários. É o caso do uso de uma rede social para ofender ou caluniar alguém, em situações na qual a ofensa não é aferível de plano, ou a veracidade do fato depender de uma análise mais criteriosa.
A aplicação do Código de Defesa do Consumidor a essas situações é, de fato, juridicamente possível, afinal o usuário de uma rede social é um consumidor do serviço. O fato de não pagar uma mensalidade, v.g., não desnatura essa relação, consistindo tal contrapartida em decisão livre do provedor. A questão que se coloca para responsabilização do provedor, contudo, encontra paralelo em outras relações consumeiristas em que um dano ao usuário é ocasionado não pelo prestador do serviço, mas por outro usuário.
É o caso de um restaurante, de um estádio de futebol ou mesmo de um shopping, por exemplo. Imaginemos que um cliente de um restaurante ofenda outro cliente. Qual a responsabilidade do restaurante por esse ato?
O artigo 14 do CDC apenas cria a hipótese de responsabilidade objetiva (sem comprovação de culpa) nos casos de falha de prestação do serviço pelo prestador. Assim, prevalece nos tribunais o entendimento de que uma briga de clientes no interior de um restaurante, por exemplo, não pode ensejar a responsabilidade do restaurante, salvo se for comprovada alguma omissão do estabelecimento.12 Entende-se, assim, que tal responsabilidade é excluída por fato de terceiro ou culpa exclusiva da vítima.
A princípio, não vemos grande distinção entre a existência de ofensas ocorridas entre frequentadores de um restaurante, festa, supermercado, cinema, estádio de futebol, provedor de email, whatsapp e os "frequentadores" de redes sociais. Danos causados por usuários ou terceiros em qualquer relação de consumo apenas são imputáveis ao provedor dos serviços no caso de sua omissão ou culpa, o que deverá levar em consideração as peculiaridades da atividade exercida.
No caso das redes sociais, contudo, vigora a regra do "'judicial' notice and take down". Tal regra pode ser considerada ruim, mas não é inconstitucional. Trata-se de uma opção feita pelo legislador entre outras que também seriam possíveis e encontrariam fundamento na Constituição brasileira. Ponderaram-se os diversos princípios e valores constitucionais que informam o tema: de um lado, a liberdade de expressão e a proteção da livre iniciativa, sem a exigência de obrigações excessivamente onerosas; de outro, os direitos fundamentais ligados especialmente à proteção da intimidade, privacidade, honra, criança e adolescente, para citar alguns.
No entanto, dada a dificuldade e morosidade da dependência da autorização judicial para remoção de conteúdo danoso, uma alteração legislativa se mostra necessária, adotando-se os exemplos eurocomunitário e estadunidense como referência, especialmente dispensando-se a medida judicial para sua remoção.
Já o Projeto de Lei 2.630/2020, em tramitação na Câmara dos Deputados, vai na contramão dessas iniciativas, ao se exigir das redes sociais o dever geral de vigilância, em seu artigo 11, quanto a conteúdo disseminado por usuários que possam configurar alguns crimes ali previstos.13
A imposição desse relativo dever de vigilância pode ser feito sem onerosidade excessiva para as empresas por meio de sistemas de inteligência artificial que rastreiem publicações que veiculem práticas criminosas. Sem embargo, é necessária a criação de um procedimento interno de tratamento de notificações de usuários solicitando a remoção de conteúdo, de maneira fundamentada, por violar a propriedade intelectual, conter expressões ofensivas, discriminatórias ou simplesmente por veicular informações falsas.
Após o recebimento da notificação, o conteúdo pode ser previamente suspenso por prevenção, dando-se a oportunidade de o criador ou veiculador exercer o contraditório e a defesa, garantindo-se ao denunciante a réplica ou mesmo a desistência do pedido, mediante convencimento.
O sistema pode copiar os mecanismos de online dispute resolution (ODR), muito comuns para solucionar controvérsias entre plataformas de mediação de compras, como o Mercado Livre, Ebay etc.
É claro que, na ausência de um acordo, a rede social deve tomar uma decisão sobre a exclusão ou não do conteúdo, o que pode ser feito pela contratação de mediadores ou árbitros. Tal providência seria, inclusive, bastante salutar, reparando-se postos de trabalho eliminados em grande parte pelas mesmas big techs que hoje administram as principais redes sociais do mundo.
Desse modo, apenas nos casos em que a moderação de conteúdo na rede social seja questionada é que haveria o acionamento da máquina judiciária. Com o filtro promovido pelas redes sociais, o número de ações certamente seria bem menor. Além disso, com a criação de precedentes e entendimentos sumulados sobre as responsabilidades por tipos de conteúdos veiculados em postagens públicas em redes sociais, o número de demandas judiciais tende a diminuir.
Embora já existam alguns mecanismos adotados pelas redes sociais para exclusão de conteúdo danoso, há a necessidade de uma uniformidade de padrões e procedimentos mínimos, o que deve ser feito por alteração legislativa. Nesse sentido, com algumas adaptações, o Projeto de Lei n. 2.630/2020, que aguarda votação no Plenário da Câmara dos Deputados, ao menos no que toca à regra para remoção de conteúdos ilícitos gerados por usuários, propõe uma providência razoável que não destoa de forma significativa - antes até aperfeiçoa - o modelo empregado pela União Europeia no Digital Services Act.
As big techs não apenas deveriam se abster de promover lobby contra uma melhor regulamentação do assunto, como já terem criado mecanismos internos de moderação melhor desenvolvidos e aperfeiçoados, como uma medida de compliance e de boas práticas. Seu lucro exorbitante certamente não será afetado.
__________
1 Disponível aqui.
5 MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti. A tutela do consumidor nas redes sociais virtuais responsabilidade civil por acidentes de consumo na sociedade da informação. Revista de Direito do Consumidor, v. 78, p. 191-220, abr./jun. 2011, p. 11.
6 MIRAGEM, Bruno. Responsabilidade por danos na sociedade da informação e proteção do consumidor: defesas atuais da regulação jurídica da Internet. Revista de Direito do Consumidor. vol. 70. São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2009, p. 41.
7 LIMA, Cíntia Rosa Pereira de. A responsabilidade civil dos provedores de aplicação de internet por conteúdo gerado por terceiro antes e depois do Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/14). Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, v. 110, p. 173, jan./dez. 2015.
8 MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti. A tutela do consumidor nas redes sociais virtuais responsabilidade civil por acidentes de consumo na sociedade da informação. Revista de Direito do Consumidor, v. 78, p. 191-220, abr./jun. 2011, p. 12.
9 Ibidem.
10 Ibid., p. 13.
11 Ibidem.
12 "APELAÇÃO. RESPONSABILIDADE CIVIL. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. Ação ajuizada por consumidora agredida fisicamente por outros clientes em estabelecimento comercial da ré. Sentença de improcedência. Apelo da demandante. Falha na prestação dos serviços, porém, não configurada. Culpa exclusiva de terceiros. Danos que não podem ser atribuídos à omissão da ré. Ausência de nexo causal, pressuposto da responsabilidade civil. Sentença mantida. NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO". (v.24628). (TJ-SP - APL: 10052910320148260477 SP 1005291-03.2014.8.26.0477, Relator: Viviani Nicolau, Data de Julgamento: 02/03/2017, 3ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 02/03/2017)
13 Disponível aqui.