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Proteção de dados pessoais e a Política Nacional de Educação Digital

sexta-feira, 12 de abril de 2024

Atualizado às 07:48

A compreensão das potencialidades da educação digital ultrapassa as lindes da tecnocracia e deságua no clamor por um Estado capaz de dar concretude normativa aos deveres de proteção que lhe são impostos e, em última instância, à promoção da pacificação social (seu telos essencial); mas, sendo a sociedade da informação uma estrutura complexa, também aos cidadãos que tomarão parte desse metamorfoseado modelo administrativo-participativo devem ser conferidos os (novos) mecanismos de inserção e participação social. Um desses mecanismos adquire contornos normativos mais sólidos a partir da promulgação da Política Nacional de Educação Digital - PNED (lei 14.533, de 11 de janeiro de 2023), que detalha mecanismos de capacitação de competências específicas, como as digitais, midiáticas e informacionais.

A Política Nacional de Educação Digital - PNED, foi criada devido a uma disposição do Marco Civil da Internet (lei 12.965/2014), que está prestes a completar 10 anos de promulgação. Refiro-me aos seus artigos 26 e 27, I, abaixo transcritos: 

Art. 26. O cumprimento do dever constitucional do Estado na prestação da educação, em todos os níveis de ensino, inclui a capacitação, integrada a outras práticas educacionais, para o uso seguro, consciente e responsável da internet como ferramenta para o exercício da cidadania, a promoção da cultura e o desenvolvimento tecnológico. 

Art. 27. As iniciativas públicas de fomento à cultura digital e de promoção da internet como ferramenta social devem:

I - promover a inclusão digital; 

Na sociedade em rede, descrita por Manuel Castells, surge como um desdobramento evolutivo da sociedade permeada pelas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), configurando uma verdadeira 'nova era' na qual não se pode conceber a vivência social dissociada do acesso universal à Internet.1 Ter acesso à Internet se traduz em uma garantia de inclusão que se mostra 'relevante' para a vida em sociedade. Noutros termos, a 'relevância' - termo utilizado por Tefko Saracevic2 - adquire contornos que alçam a afirmação individual na sociedade da informação, a partir da enunciação de seus respectivos discursos, a um patamar fundamental.

A despeito disso, o acesso à Internet não é universal, como se desejaria que fosse. Estatísticas mostram que, no Brasil, pouco mais da metade da população tem acesso à Internet3, o que denota uma enorme carência em termos de conectividade e gera exclusão. É importante registrar, de todo modo, que iniciativas voltadas à positivação desse direito existem no Brasil: (i) em 2011, por exemplo, foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição nº 6 daquele ano, que pretendia fazer constar do rol de direitos sociais do artigo 6º da Constituição o direito de acesso universal à Internet; (ii) mais recentemente, foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição nº 8/2020, que visa incluir expressamente o acesso à Internet no rol de direitos fundamentais do artigo 5º da Constituição.

Um dos fundamentos da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais brasileira (Lei nº 13.709/2018, ou simplesmente LGPD) é a autodeterminação informativa (art. 2º, II), que revela essa dimensão de controle capaz de viabilizar as condicionantes para o exercício do equilíbrio sugerido pela leitura do conceito de privatividade. A partir dela, quando se cogita de um direito fundamental à proteção de dados pessoais4-5, deve-se, invariavelmente, proceder a uma investigação sobre as dimensões do conceito de privacidade, na medida em que a formatação de uma possível nova infraestrutura social6, a partir do implemento de técnicas direcionadas à coleta de dados e à formação de perfis para variados fins, representaria ruptura paradigmática capaz de atribuir novos contornos aos mencionados direitos fundamentais à intimidade e à privacidade.7

O saber tecnológico é solução necessária para a promoção do direito fundamental de acesso à Internet na sociedade da informação. Sem que se tenha cidadãos bem instruídos sobre os usos e práticas da tecnologia e das redes comunicacionais, qualquer medida destinada ao fomento da participação popular cairá no vazio. Dito isso, deve-se ressaltar que a Política Nacional de Educação Digital é composta por quatro eixos que, juntos, constituem a base da política em análise. Esses quatro eixos são: Inclusão Digital, Educação Digital Escolar, Capacitação e Especialização Digital, e Pesquisa e Desenvolvimento (P&D) em Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs).

A Inclusão Digital tem a responsabilidade de abranger todos os indivíduos nesse novo mundo digital. Considerando a significativa assimetria informacional, sobretudo no contexto tecnológico, o objetivo da inclusão digital é reduzi-la, ensinando àqueles que não possuem conhecimento como utilizar dispositivos tecnológicos e os cuidados que devem ser tomados ao manuseá-los, incluindo a vigilância contra crimes cibernéticos. A partir disso, é possível afirmar que, com uma implementação eficaz da inclusão digital, a sociedade brasileira se tornará mais igualitária, especialmente quando vista sob a perspectiva tecnológica. Isso facilitará a transmissão de informações, opiniões e a interação e comunicação entre os indivíduos.

O eixo de Educação Digital Escolar tem como principal objetivo promover práticas pedagógicas que tornem o processo de ensino e aprendizagem mais dinâmicos e envolventes. Para atingir esse propósito, a PNED estabelece que o objetivo do eixo é "garantir a introdução da educação digital nos ambientes escolares em todos os níveis e modalidades, promovendo o letramento digital e informacional, além do ensino de computação, programação, robótica e outras competências digitais".

O objetivo do eixo de Capacitação e Especialização Digital na Política Nacional de Educação Digital é capacitar a população brasileira em idade ativa, proporcionando oportunidades para o desenvolvimento de competências digitais a fim de promover sua plena integração no mercado de trabalho.

O eixo em questão tem como objetivo implementar o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação, conhecidas como TICs, ou alternativamente como TDICs, que se referem a Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação. Sua função principal é servir como intermediário nos processos de comunicação entre diversos indivíduos. Nesse contexto, a política visa incentivar a pesquisa científica voltada para TICs inclusivas e acessíveis, com soluções de baixo custo. No entanto, lamentavelmente, são poucas as escolas, tanto públicas quanto privadas, que efetivamente incorporam o uso das TICs. Isso resulta em inovação educacional limitada, reduzindo os avanços e deixando as escolas defasadas.

O ensino hodierno está intimamente ligado ao preenchimento das necessidades humanas, definidas por Abraham Maslow8 e perfeitamente enquadráveis no contexto da atual sociedade da informação, na qual se impõe o convívio com um novo ambiente chamado ciberespaço, em que a tecnologia atua como um poderoso componente do ambiente de aprimoramento individual. Nesse contexto, é preciso ressaltar que as relações sociais e pedagógicas, assim como os benefícios e malefícios trazidos pelas Tecnologias de Informação e Comunicação, são desdobramentos de comportamentos da própria sociedade, e não consequências da simples existência da Internet.9

Magda Pischetola registra três tipos de "competências digitais": 

1) As operacionais: ou seja, o conjunto de habilidades técnicas que permitem ao usuário acessar as aplicações básicas das TICs on-line e off-line, como, por exemplo, o editor de texto, o e-mail, as atividades de busca on-line.

2) As informacionais: habilidades para pesquisar, selecionar e elaborar as informações que se encontram nos recursos da rede.

3) As estratégicas: habilidades para determinar metas específicas orientadas a alcançar outras mais amplas, com o fim de manter ou melhorar sua própria posição social.10 

O desenvolvimento dessas competências (ou 'skills', para citar o termo utilizado por van Dijk e van Deursen11), é uma das chaves para a transição à sociedade da informação. Viver sem computadores está se tornando cada vez mais difícil, pois se perde um número crescente de oportunidades. Em várias ocasiões, as pessoas serão excluídas de acesso a recursos vitais. Todo candidato a emprego sabe que a capacidade de trabalhar com computadores e a Internet é crucial para encontrar e obter um emprego e, cada vez mais, para concluir um trabalho. O número de trabalhos que não exigem habilidades digitais está diminuindo rapidamente. A localização de empregos exige cada vez mais o uso de locais de vagas e aplicativos eletrônicos. Nas entrevistas de emprego, os empregadores solicitam cada vez mais certificados ou outras provas de habilidades digitais.12

Firme nesta premissa, infere-se que as plataformas vêm sendo desenvolvidas em, basicamente, três frentes: (i) "educational data mining", que nada mais é do que a mineração de dados voltada especificamente para a educação; (ii) "learning analytics", ou análise de aprendizado; (iii) "adaptive learning", ou aprendizagem adaptada.13

Marshall McLuhan dizia que, "[a]o se operar uma sociedade com uma nova tecnologia, a área que sofre a incisão não é a mais afetada. A área da incisão e do impacto fica entorpecida. O sistema inteiro é que muda".14 Nesse contexto, é preciso ter em mente que, "enquanto a análise de Big Data proporciona a possibilidade de relevar correlações entre os mais distintos eventos, ela não fornece a causa desses eventos".15 Nesse sentido, Edgar Gastón Jacobs Flores Filho lembra que "educar as pessoas para entender, empoderar e engajar pode ser um caminho para reduzir no futuro a opressão algorítmica e os vieses que se expressam em decisões automatizadas por meio de sistemas de inteligência artificial".16

Em conclusão, a LGPD do Brasil e a PNED se entrelaçam em um esforço conjunto para forjar uma sociedade mais igualitária, informada e protegida no cenário digital contemporâneo. Enquanto a LGPD se dedica a estabelecer diretrizes para a proteção de dados pessoais, garantindo a privacidade e a autodeterminação informativa dos cidadãos, a política de educação digital visa promover a inclusão e capacitação tecnológica em todos os níveis da sociedade. Ao endereçar a assimetria informacional e promover uma cultura de segurança cibernética e competências digitais, o Brasil se posiciona proativamente frente aos desafios e oportunidades da era digital. Essas iniciativas são cruciais para assegurar que os benefícios da revolução digital sejam amplamente acessíveis, marcando um passo significativo em direção a um futuro no qual a tecnologia sirva como ferramenta de efetivação de direitos.

__________

1 CASTELLS, Manuel. The rise of the network society. 2. ed. Oxford/West Sussex: Wiley-Blackwell, 2010. (The information age: economy, society, and culture, v. 1), p. 377-378.

2 SARACEVIC, Tefko. Relevance: a review of the literature and a framework for thinking on the notion in information science. Journal of the American Society for Information, Science and Technology, Newark, v. 58, n. 13, p. 1915-1933, out. 2007, p. 6.

3 COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL - CGI.br. Centro Regional de Estudos para o Desenvolvimento da Sociedade da Informação (Celtic.br). Pesquisa sobre o Uso das Tecnologias de Informação e Comunicação nos domicílios brasileiros - TIC Domicílios, 2017. Disponível em: https://cetic.br/tics/domicilios/2017/domicilios/A4/. Acesso em: 10 abr. 2024.

4 GONZÁLEZ FUSTER, Gloria. The emergence of personal data protection as a fundamental right of the EU. Cham: Springer, 2014. p. 48.

5 Sobre o tema, conferir, por todos, DONEDA, Danilo. O direito fundamental à proteção de dados pessoais. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti (coord.). Direito digital: direito privado e Internet. 5. ed. Indaiatuba: Foco, 2024, p. 45-46. SARLET, Ingo Wolfgang. Fundamentos constitucionais: o direito fundamental à proteção de dados. In: MENDES, Laura Schertel. DONEDA, Danilo. SARLET, Ingo Wolfgang. RODRIGUES JR, Otavio Luiz (coord.); BIONI, Bruno Ricardo (org.). Tratado de proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 21-59. Ademais, no contexto jurisprudencial, em maio de 2020, o Supremo Tribunal Federal reconheceu o direito fundamental à proteção de dados ao suspender a Medida Provisória n.º 954, que determinava o compartilhamento dos dados pessoais dos usuários de telefonia pelas empresas telefônicas ao IBGE (STF, ADIs n.º 6.387, 6.388, 6.389, 6.390 e 6.393. Relatora Min. Rosa Weber. Julgado em 07/05/2020).

6 VAN DIJK, Jan. The network society. 3. ed. Londres: Sage Publications, 2012. p. 6.

7 STAPLES, William G. Encyclopedia of privacy. Westport: Greenwood Press, 2007. p. 93.

8 MASLOW, Abraham H. Motivation and personality. 2. ed. Nova York: Harper & Row, 1970, p. 21.

9 MONTEIRO, Renato Leite; CARVINO, Fabrício Inocêncio. Adaptive learning: o uso de inteligência artificial para adaptar ferramentas de ensino ao aluno. In: ABRUSIO, Juliana (Coord.). Educação digital. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 242.

10 PISCHETOLA, Magda. Inclusão digital e educação: a nova cultura da sala de aula. Petrópolis: Vozes, 2016, p. 42.

11 VAN DIJK, Jan; VAN DEURSEN, Alexander. Digital skills: unlocking the information society. Nova York: Palgrave Macmillan, 2014, p. 1.

12 Comentando o cenário legislativo brasileiro, Renato Opice Blum explica que "(...) pouco adiantará a aprovação de leis para garantir uma segurança maior ao usuário da rede mundial de computadores se ele, antes de iniciar a conexão com um mundo tão rico, tão vasto, tão cheio de informações, mas por vezes perigoso, não for educado digitalmente. Primeiro, é necessário que o usuário, tanto no âmbito pessoal, quanto profissional, e de forma preventiva, seja educado para isso. Por meio de educação voltada para o uso correto da Internet e de suas informações. Esse aprendizado deveria começar na fase escolar e perdurar por toda a vida do ser humano, ante o dinamismo e a abrangência do mundo virtual. Da mesma forma, as escolas devem fazer uso de uma Política de Segurança da Informação, aplicando sistemas eficientes para resguardar o sigilo de suas informações, especialmente de seus alunos. Entretanto, é importante observar que de nada adiantará a escola empresa ter uma estrutura adequada na área de Tecnologia da Informação se os professores, alunos e pais não tiverem consciência da importância de se garantir a segurança da informação." OPICE BLUM, Renato. O Marco Civil da Internet e a educação digital no Brasil. In: ABRUSIO, Juliana (coord.). Educação digital. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 189-190.

13 Sobre o tema, conferir: MONTEIRO, Renato Leite; CARVINO, Fabrício Inocêncio. Adaptive learning: o uso de inteligência artificial para adaptar ferramentas de ensino ao aluno. In: ABRUSIO, Juliana (Coord.). Educação digital. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 246; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura; LONGHI, João Victor Rozatti. "Adaptive learning" e educação digital: o uso da tecnologia na construção do saber e na promoção da cidadania. In: BARBOSA, Mafalda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coord.). Direito Digital e Inteligência Artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 735-737.

14 McLUHAN, H. Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Tradução de Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 84.

15 MONTEIRO, Renato Leite; CARVINO, Fabrício Inocêncio. Adaptive learning: o uso de inteligência artificial para adaptar ferramentas de ensino ao aluno. In: ABRUSIO, Juliana (Coord.). Educação digital. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 245.

16 FLORES FILHO, Edgar Gastón Jacobs. A educação como um meio para tratar da ética na inteligência artificial. In: BARBOSA, Mafalda; BRAGA NETTO, Felipe; SILVA, Michael César; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coord.). Direito Digital e Inteligência Artificial: diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 717.