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Dados pessoais sensíveis sobre gênero: breve análise

sexta-feira, 15 de março de 2024

Atualizado às 07:38

A compreensão sobre gênero está em constante evolução e se relaciona com as transformações sociais e econômicas mundiais. Nesse contexto, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (lei 13.709/2018, ou apenas LGPD) ganha importância, pois busca garantir a proteção dos dados pessoais em um mundo cada vez mais conectado e digital.

O Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados Pessoais da União Europeia (2016/679(EU)) também é importante marco normativo para o tema, pois define dados pessoais como informações que identificam ou são potencialmente identificáveis de um indivíduo. Já a legislação brasileira vai além, pois apresenta uma diferenciação entre dados pessoais e dados pessoais sensíveis, reconhecendo estes últimos como informações que, pelo que se pode inferir de seu rol enunciativo (art. 5º, II), podem revelar aspectos íntimos da vida.

As investigações em relação aos pormenores relacionados às questões de gênero vão além dos conceitos fixos de homem e mulher. Modifica-se a perspectiva do sistema binário da sexualidade apresentado pela sociedade, buscando-se compreender e refletir com a devida atenção sobre as novas formas de sexualidade que ressignificam e reivindicam olhares mais sensíveis para as medidas de proteção e garantia dos direitos relacionados ao gênero, uma vez que estas se fundam na compreensão das relações históricas e sociais acerca o tema.

María Lugones1 explica que o sistema de gênero se associa com o sistema social e econômico não apenas de um local específico, mas se atrela a transformações a nível mundial, isso porque, apesar de cada sociedade viver sob um sistema próprio, ocorrem interferências e imposições de um país em relação a outro. Essas questões de dominação se modificam perante as transformações sociais e atingem não apenas a sociedade como grupo, mas também os cidadãos, independentemente do gênero.

As correlações das questões de gênero perante a sociedade impõem a necessidade de que sejam identificadas áreas que carecem de análise diligente sobre o assunto. Nesse sentido, vislumbrando o crescimento constante de utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação e a consequente importância da LGPD no atual contexto social, necessária a análise do respaldo propiciado por essa legislação para cada espécie de dado pessoal.

É de bom alvitre registrar que, para além de uma proteção legislativa dos dados pessoais, a Emenda Constitucional nº 115/2002 acrescentou ao texto constitucional o direito à proteção de dados pessoais, incluindo o amparo como direito fundamental a partir de nova redação expressa, que consta do inciso LXXIX do artigo 5º da Constituição. Sobre o tema, destaca Daniel Piñeiro Rodriguez que "o direito à proteção de dados pessoais figura como garantia de caráter instrumental, derivada da tutela da privacidade, mas sem nela limitar-se, fazendo referência a todo leque de garantias fundamentais que se encontram na constelação jurídica-constitucional"2.

Nesse sentido, a legislação brasileira apresenta tanto uma definição em relação a dados pessoais gerais, quanto uma definição para a categoria de dados pessoais denominados como "sensíveis", sendo que, de acordo com a diferenciação indicada pelo artigo 5°, nos incisos I e II, o dado pessoal é a "informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável", enquanto o dado pessoal sensível é definido enunciativamente como sendo aquele relativo a "origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural".

Maria Celina Bodin de Moraes explica que os dados sensíveis se relacionam com as opções e características essenciais de um indivíduo, que são elementos que podem estar associados a situações de discriminação e desigualdade3. Constatação importante essa para compreender os entrelaçamentos existentes entre os direitos que se encontram resguardados pelo ordenamento jurídico com aqueles que requerem atenção mais específica.

No entendimento de Wermuth, Cardin e Mazaro4, "os dados sensíveis estão intimamente ligados a muitos dos direitos da personalidade da pessoa, pois são aqueles que a qualificam individualmente, fazendo com que tenha um lugar único no mundo". E, de fato, a proteção dos dados pessoais está devidamente garantida perante a Constituição e a legislação infraconstitucional, porém, ao analisar as disposições existentes, verifica-se a ausência de abordagem explícita em relação a dados sobre gênero do ponto de vista conceitual/explicativo, pois o que o artigo 5º, inciso II, da LGPD apresenta é uma listagem das categorias que são reputadas como sensíveis para os fins de incidência da lei5.

Segundo a doutrina, a ausência de indicação expressa sobre como seriam conceituados os dados sobre gênero gera complexa zona cinzenta, pois a lei ainda apresenta a expressão 'vida sexual' no mesmo rol, o que pode levar a diferentes interpretações. Uma dessas interpretações é a de que, do ponto de vista teleológico, o rol de direitos do titular definido na LGPD incluiria tanto orientação sexual quanto identidade de gênero dentro do contexto de 'vida sexual'6. Por sua vez, a interpretação abrangente do termo permite que se almeje a devida proteção das questões de gênero, não negando, principalmente, o devido amparo à população LGBTQIA+, para além dos fundamentos da Constituição da República brasileira, que seriam devidamente conservados7.

Para fins de contextualização, convém lembrar que o primeiro pilar da sexualidade, o sexo, é definido como a conformação física ou morfológica genital constatada no instante do nascimento da pessoa, que haverá de ser consignada na Declaração de Nascido Vivo (DNV) e, ato contínuo, na Certidão de Nascimento da pessoa, atendendo, ordinariamente, ao padrão binário de homem ou mulher. Entretanto, existe um grande número de condições sexuais que não se enquadram nessa dualidade do ideal binário do homem/macho ou mulher/fêmea, caracterizando a figura da pessoa intersexo, situação que pode ser encontrada em até 2% da população mundial8.

O gênero, por sua vez, é a expressão social que se espera de quem seja homem/macho (masculino) ou mulher/fêmea (feminino) a partir de expressões socioculturais9. É comum ocorrer confusão entre os conceitos de gênero e sexo, mas o primeiro difere da concepção do segundo. Logo, embora a sexualidade seja parte integrante dos direitos humanos, fundamentais e da personalidade, são recorrentes os equívocos na compreensão dos conceitos vinculados à sexualidade, bem como com a aplicação errônea em diversos documentos oficiais, legislações e decisões judiciais.

Fato é que os dados pessoais, se mal categorizados ou inferidos, podem levar a discriminações de gênero porque muitos sistemas e processos que utilizam esses dados operam com base em estereótipos de gênero e normas sociais preconcebidas sobre como homens e mulheres devem se comportar e sobre quais são suas características fenotípicas10. Por exemplo, uma empresa pode usar dados como gênero e idade para decidir quem deve ser contratado para um determinado cargo, assumindo que homens são mais qualificados do que mulheres para certas posições ou que mulheres mais velhas têm menos capacidade de trabalhar em determinadas funções.

O debate, então passa a se concentrar na parametrização de deveres, especialmente no contexto delimitado pelos princípios da prevenção (art. 6º, IV) e da não discriminação (art. 6º, IX) da LGPD, o que também abre margem ao debate sobre a imprescindibilidade da responsabilidade civil como instituto apto a solucionar eventuais as contingências decorrentes de situações danosas derivadas do enviesamento algorítmico de dados pessoais sensíveis sobre gênero11.

Outra evidência disso é estruturação de revisões das decisões automatizadas (art. 20 da LGPD), que, desejavelmente, devem ser realizadas por agentes humanos (embora essa obrigatoriedade não conste mais do texto da lei). Bárbara Dayana Brasil destaca que "a proteção dos dados pessoais assume especial relevância, tendo em vista o modo como se procede a sua coleta, tratamento e processamento, assim como, a própria utilização dos dados"12. Assim, se a proteção insuficiente não pode ser admitida, sob pena de flagrante violação ao fundamento do inciso VII do artigo 2º da LGPD, que alberga "os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais", deve-se estruturar mecanismos de controle que atuem como freios aos desideratos que afastem os humanos de sua essência.

Embora a legislação brasileira reconheça a diferenciação entre dados pessoais gerais e sensíveis, ainda há dúvidas sobre o escopo de proteção garantido aos dados pessoais sensíveis sobre gênero, às consequências das discriminações de gênero a partir do tratamento de dados pessoais e à responsabilização dos agentes de tratamento.

Para mitigar a discriminação de gênero em contextos nos quais dados pessoais sobre gênero são tratados, é possível minimizar a quantidade de dados coletados e implementar medidas de privacidade, como o uso de dados anonimizados em vez de dados identificáveis direta individualmente, ou propensos à identificação por inferência. Também é importante garantir que as equipes responsáveis pelo tratamento dos dados sejam diversas e incluam pessoas de diferentes gêneros, de forma que diferentes perspectivas e experiências sejam consideradas no processo de análise de dados.

__________

1 LUGONES, María. Colonialidad y Género. Tabula Rasa, Bogotá, n. 9, p. 73-102, dez. 2008.

2 RODRIGUEZ, Daniel Piñeiro. O direito fundamental à proteção de dados: vigilância, privacidade e regulação. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 181.

3 MORAES, Maria Celina Bodin de. Apresentação do autor e da obra. In: RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade de vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 7.

4 WERMUTH, Maiquel Angelo Dezordi; CARDIN, Valéria Silva Galdino; MAZARO, Juliana Luiza. Tecnologias de controle e dados sensíveis: como fica a proteção da sexualidade na lei geral de proteção de dados pessoais? Revista Jurídica Luso-Brasileira, ano 8, nº 3, p. 1065-1091, 2022, p. 1077.

5 FICO, Bernardo de Souza Dantas; NOBREGA, Henrique Meng. The Brazilian Data Protection Law for LGBTQIA+ People: Gender identity and sexual orientation as sensitive personal data. Revista Direito e Práxis, Rio de Janeiro, v. 13, n. 2, p. 1262-1288, 2022, p. 1265.

6 TEFFÉ, Chiara Spadaccini de. Dados pessoais sensíveis: qualificação, tratamento e boas práticas. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 115.

7 COSTA, Ramon Silva. Proteção de dados sensíveis de pessoas LGBTI+: perspectivas sobre personalidade, vulnerabilidade e não discriminação. In: BARLETTA, Fabiana Rodrigues; ALMEIDA, Vitor (Coord.). Vulnerabilidades e suas dimensões jurídicas. Indaiatuba: Foco, 2023, p. 659-674.

8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A sexualidade como elemento juridicamente relevante e a necessidade de compreensão de seus aspectos básicos. Migalhas de Direito e Sexualidade, 26 jan. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 10 mar. 2024.

9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A sexualidade como elemento juridicamente relevante e a necessidade de compreensão de seus aspectos básicos. Migalhas de Direito e Sexualidade, 26 jan. 2023. Disponível aqui. Acesso em: 10 mar. 2024.

10 ALMEIDA, Vitor; RAPOZO, Ian Borba. Proteção de dados pessoais, vigilância e imagem: notas sobre a discriminação fisionômica. In: EHRHARDT JÚNIOR, Marcos (Org.). Direito Civil: futuros possíveis. Belo Horizonte: Fórum, 2022, p. 219-250.

11 COSTA, Ramon Silva; KREMER, Bianca. Inteligência artificial e discriminação: desafios e perspectivas para a proteção de grupos vulneráveis diante das tecnologias de reconhecimento facial. Revista Brasileira de Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, v. 1, p. 145-167, 2022.

12 BRASIL, Bárbara Dayana. Os direitos humanos como fundamento da proteção de dados pessoais na Lei Geral de Proteção de Dados brasileira. In: CRAVO, Daniela Copetti; JOBIM, Eduardo; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura (Coord.). Direito público e tecnologia. Indaiatuba: Foco, 2022, p. 54.