A importância do Marco Civil da Internet para o crescimento do Direito e da Computação no Brasil
sexta-feira, 19 de maio de 2023
Atualizado às 09:11
O Marco Civil da Internet não é apenas a primeira grande demonstração da união entre o Direito e a Computação, mas é uma garantia de continuidade do progresso destas duas áreas do conhecimento humano.
Introdução
Podemos elencar diversas invenções que alteraram o curso do mundo, tais como a prensa de Johannes Gutenberg (1450), a máquina a vapor de James Watts (1769) e a penicilina de Alexander Fleming (1928), entre muitas outras. Indiscutivelmente são todas invenções que tiveram um impacto enorme na humanidade, mas o foco principal de cada uma delas sempre foi específico. A primeira máquina universal que o homem produziu foi a Máquina de Turing, ou seja, o computador eletrônico que usamos hoje. Essa máquina dotada da conectividade proporcionada pela Internet, aliada a recursos de amplos de acessibilidade, modificou uma série de aspectos que alteraram o cotidiano das pessoas. Essas alterações vão do acesso ao conhecimento e à informação, até a convivência social, do modus operandi do comércio até a prestação de serviços. Hoje a nossa noção de espaço ocupado é outra diferente de anos passados e não se limita mais a territorialidade geográfica, tampouco o conceito de tempo, hoje extremamente explorado pelos zilhões de mensagens e comandos trocados a cada instante.
A internet, criada para fins militares nos Estados Unidos, teve seu início comercial bastante tímido ainda no ano de 1985 com o primeiro serviço comercial de provimento de internet (ISP) chamado "The World"1. Era tempo de acesso discado, o que mesmo assim conseguiu levar milhares de pessoas ao mundo virtual. Nesta época a National Science Foundation dos EUA havia proibido o uso comercial da Internet. Apenas agências governamentais e universidades estavam autorizadas a usar a rede mundial. Entretanto, nos EUA tudo mudou em 1991 quando a NSF suspendeu a proibição aos ISPs comerciais depois que percebeu que o "The World" havia "aberto as comportas" a um mundo que não seria mais o mesmo. Lembro que o mundo vivia o contexto de abertura ampla. O ano de 1991 também foi o ano do fim da União Soviética, apenas três anos após a queda do muro de Berlim.
A novidade não demorou a chegar no Brasil. Nossa estreia na internet comercial ocorreu em 1995. Discada até então. O Google só iria aparecer precariamente em 1998, época a internet começa a se transformar.
A internet participativa: 2.0
O início do século 21 é uma marca indelével para a chamada Web 2.0, ou seja, a época da internet participativa, época que a internet começa a dar voz a seus usuários por meio da criação de blogs e pelo engajamento destes nas mídias sociais. Grandes ideias e novos modelos de negócio surgem investidos pela massiva participação popular. Temos nesta época os seguintes lançamentos exemplares: Wikipedia (2001), Facebook (2004), YouTube (2005) e Twitter (2006). O termo Web 2.0 nasce neste turbilhão da internet social em 2004 cunhado pela empresa americana O'Reilly. O termo refere-se a uma segunda geração de comunidades e serviços que terá a web como plataforma para todo tipo de atividade online, com realmente é hoje: das compras aos jogos, do trabalho online aos seriados por streaming.
Por esta época já circulava o PL 89/2003 do senador Eduardo Azeredo (MG), também conhecida como "Lei de Cibercrimes", a qual previa a criação de novos tipos penais para algumas condutas no universo web2-3. As discussões continuaram em "banho maria" até que um acontecimento de repercussão internacional "empurrou" um anteprojeto de lei na Câmara Federal. Esse acontecimento foi a acusação, em 2013, do ex-técnico da CIA, Edward Snowden, de espionagem por divulgar informações sigilosas de segurança dos Estados Unidos. Entre estas informações divulgadas, estava o monitoramento de conversas da presidente Dilma Rousseff com seus assessores, demonstrando assim a utilização de servidores de empresas norte-americanas como a Google no seu esquema de vigilância e espionagem4. Em setembro do mesmo ano o projeto de lei do Marco Civil da Internet entrou em regime de urgência, por solicitação da Presidente Dilma, que futuramente a sancionou em abril de 2014. Lá se vão nove anos.
Não se lembra desta época? Trago aqui algumas pérolas inesquecíveis desta época: Ano de Copa de Mundo quando você provavelmente usava uma banda larga de 4 Mbps e poderia ter um iPhone 6 ou um Galaxy S5, as "ostentações" da época.
Não desmerecendo os grandes debates sobre o Marco Civil na época, muitos deles em razão do texto aprovado em 2014 ser muito distinto do proposto nos anos anteriores, ou por ser uma lei apenas de princípios e não uma lei normativa, entre outros debates, o fato que temos atualmente é que, muito embora a web seja um recurso e uma criação universal, seu estabelecimento e consolidação hoje no Brasil foi calçado pelo no Marco Civil da Internet.
Os termos gerais do Marco Civil da Internet
Lei 2.965, de 23 de abril 2014 estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Entre estes merecem destaque os seguintes princípios:
- Neutralidade da rede. Este princípio garante o tratamento isonômico para qualquer tipo de dado que circule na rede. A neutralidade da rede também garante o acesso a qualquer conteúdo independentemente do valor pago por este;
- Privacidade. O artigo 7º da lei garante a inviolabilidade e o sigilo do fluxo de suas comunicações, como também inviolabilidade e o sigilo de suas comunicações privadas armazenadas;
- Liberdade de expressão. A lei garante a liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, enfatizando que a decisão sobre a retirada de conteúdo fica condicionada à uma ordem judicial;
A lei 12.965 está descrita em 32 artigos, alguns dos quais já antecedem a LGPD quanto a proteção de dados pessoais exigindo informações claras e completas sobre a coleta, o uso, armazenamento e o tratamento de dados pessoais. Além disso, a lei trás disposições transitórias que focam na "proteção integral da criança e do adolescente e a dignidade da pessoa humana".
Vamos agora focar nestes três princípios para mostrar como esta lei é um marco importante para garantir o crescimento saudável de sustentável do Direito e da Computação no Brasil.
Neutralidade de rede
A neutralidade da rede é um princípio que garante que todo tipo de dado seja tratado da mesma maneira, independentemente se é parte de um blog, de uma música ou de um anúncio publicitário. Esta neutralidade também implica em "não enxergar" a origem e tampouco o destino do pacote de dados. Na época, esse princípio, tão sedimentado na atualidade, era um impasse entre duas grandes forças: por um lado as empresas de telecomunicações (Vivo, Claro, TIM, entre outros), que já haviam cabeado as cidades e forneciam conexão à internet; e, por outro lado, os provedores de acesso e conteúdo (grandes veículos da mídia tradicional, além das redes sociais, blogs, etc.). As teles pediam o direito de vender pacotes fechados de dados, limitando o acesso a alguns serviços, enquanto os provedores acreditavam que a internet deveria ser completamente neutra e não tolher a liberdade de escolha dos usuários. Já relatamos neste periódico como advogados e cientistas da computação se uniram para firmar este princípio da neutralidade da rede nos EUA e, consequentemente, em quase todo o mundo5.
A neutralidade da rede na prática, para os advogados, é uma garantia que eles não serão sobretaxados, por exemplo, por usarem algum serviço específico da rede, como o e-SAJ do TJSP, ou mesmo que seus dados não sofrerão uma restrição de velocidade no trânsito pela rede em relação a outro tipo de dado que eventualmente, pela provedora, possa ser mais importante que os dados que você precisa. Quanto ao usuário comum, este também poderá escolher à vontade como gastar seu pacote de dados, se assistindo a seriados e filmes, ou navegando pelas redes sociais. Analogamente os colegas da Computação poderão desfrutar da mesma liberdade e, inclusive, criar aplicativos e soluções computacionais inovadoras sem que a tipologia dos dados possa ser limitada, ou até mesmo censurada, pelos provedores.
Cuidado, "a bruxa está solta"! Muito embora o Marco Civil garanta e neutralidade da rede no Brasil, este tema vem à tona quase constantemente e, nestes novos tempos, o "bode expiatório" são a Internet das coisas (IoT)6 e a banda 5G7. A neutralidade da rede ainda é um tema em discussão nos dias de hoje nos EUA8 e é também um tema latente na Câmara Federal, como apontam as discussões do ano passado, 20229.
Privacidade
A inviolabilidade e o sigilo do fluxo de comunicação, bem como das mensagens armazenadas, salvo por ordem judicial, na forma da lei, é uma garantia do Marco Civil da Internet. A inviolabilidade protege uma série de serviços e atendimentos, como dos profissionais da saúde e, claramente, dos profissionais de Direito. Mesmo não sendo minha área de especialidade, é notório que o sigilo profissional é disciplinado no Código de Ética e Disciplina da OAB e também no artigo 5º da Constituição Federal10. Desta forma, não nos parece razoável imaginar estes princípios serem abalados dado o meio escolhido para a comunicação entre partes.
O entendimento de como a tecnologia funciona é necessário para evitar procedimentos desarraigados na boa intenção de se fazer justiça. Tomemos, por exemplo, um mensageiro muito utilizado no Brasil, o WhatsApp. Sabe-se que em 2021 este aplicativo tinha 2 bilhões de usuários que trocavam mais de 100 bilhões de mensagens por mês no mundo todo11. Parar um serviço como este, usado tanto para fins pessoais, mas também por muitas empresas, em busca de uma troca específica de mensagens, é uma atitude, no mínimo, temerária. Esses serviços de mensagens12 não tem a obrigação de manter históricos de mensagens trocadas. Estas mensagens podem conter todo tipo de arquivo, de sons e imagens, aos textos. Quanto custa armazenar 100 bilhões de mensagens ao dia por, por exemplo, uma semana? O que diz o contrato de prestação de serviço? Qual é o modelo de negócio ofertado? Vale lembrar que existem outras formas de comunicação digital que não sofrem este tipo de interferência13. Abalos à privacidade podem comprometer modelos de negócios futuros, eventualmente até modelos de negócio que beneficiem empresas e empresários brasileiros14.
Liberdade de expressão
A liberdade de expressão e consumo na forma de software sempre foi um movimento importante na Computação15 e que encontra paralelos vários no Direito16.
O Prof. Eric Roberts, enquanto Full Professor da Stanford University, lecionando a cadeira de Computação, Ética e Políticas Públicas, comenta que, mesmo que a esfera pública não esteja intrinsicamente relacionada à censura e a regulação de conteúdo, é natural ver a extensão desta. Roberts argumenta: "A esfera pública é um lugar onde as pessoas podem se encontrar e discutir livremente políticas e problemas sociais. É um lugar onde os cidadãos formam a opinião pública e podem tentar transformá-la em ação política. Isso é comumente considerado como o núcleo dos governos democráticos, já que as democracias são governos que ouvem e confiam em seu povo, ou seja, o público."
Na pista oposta corre o ministro Luís Roberto Barroso. O ministro, durante uma conferência da Unesco, no último 23 de fevereiro, defendeu que as plataformas digitais devem ser obrigadas a remover conteúdo ilegal antes mesmo de receberem uma ordem judicial17. Será que veremos a terceirização da censura prévia? Será que a big techs serão franqueadas a este fim? Terão elas o papel de var neste jogo? Assim, ficamos num embate em que todos perdem. Perdem os juristas, os precursores e formatadores da mídia moderna, o povo e, fundamentalmente, nosso futuro. Há de se perceber que os meios de comunicação, junto com quase todos os setores da sociedade, vivem a sua infância transformadora causada pela automação e digitalização de processos e serviços. Há um mundo novo por vir que ainda desconhecemos. As aplicações da nova onda da Inteligência Artificial ainda engatinham e prometem grandes feitos. Portanto, é nossa obrigação como sociedade buscar transformações que tragam progresso social, como também é nossa obrigação como cidadãos acompanhar, vigiar e lutar para que sejam transformações que gerem ganhos para a sociedade e não retrocessos.
Finalizo com um trecho da Areopagitica - Um discurso de John Milton, para o Parlamento da Inglaterra, pela liberdade da impressão não licenciada. Texto de 1644. O principal tema da Areopagítica é a rejeição da censura prévia. É uma obra que influenciou muito o pensamento jurídico.
"Embora eu não despreze a defesa de imunidades justas, ainda amo mais minha paz, se isso fosse tudo. Dê-me a liberdade de saber, proferir e argumentar livremente de acordo com a consciência, acima de todas as liberdades."
Referências bibliográficas
1 A Brief History of the Internet Service Providers. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
2 Azeredo: lei dos cibercrimes nos alinha com o primeiro mundo. Disponível na Agência Senado. Último acesso em 15 de maio de 2023.
3 Projeto de Lei da Câmara n° 89, de 2003. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
4 Entenda o caso de Edward Snowden, que revelou espionagem dos EUA. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
5 Advogados e cientistas da computação unidos para lacrarem a neutralidade da rede. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
6 The End of Net Neutrality Could Shackle the Internet of Things. Disponível aqui. Último acesso em 16 de maio de 2023.
7 5G é nova frente das teles para rediscutir neutralidade de rede. Disponível aqui. Último acesso em 16 de maio de 2023.
8 What Is Net Neutrality-And Why Is It So Controversial? Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
9 A dificuldade de regulação da Internet das coisas. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
10 O sigilo profissional do advogado no Brasil e no mundo. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
11 WhatsApp 2023 User Statistics: How Many People Use WhatsApp? Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
12 Antes do Telegram, WhatsApp foi bloqueado 4 vezes no Brasil; veja casos. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
13 Dilma criou e-mail como 'Iolanda' para mensagens secretas, diz delatora. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
14 Free speech vs Maintaining Social Cohesion. A Closer Look at Different Policies. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
15 Free software is a matter of liberty, not price. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
16 Liberty and Law. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.
17 Barroso defende que big techs removam conteúdo ilícito antes de ordem judicial. Disponível aqui. Último acesso em 17 de maio de 2023.