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All we need is log?

sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

Atualizado às 07:27

O que é um log?

As recentes manifestações eleitorais trouxeram à tona este termo "velho" conhecido da Computação, mas que estava um pouco esquecido, até mesmo pela mídia específica de Tecnologia da Informação. Inclusive, recentemente, essa mídia especializada estava mais direcionada a comentar sobre soluções computacionais aplicadas, direcionadas a resolver problemas práticos do nosso cotidiano e não estava tão preocupada em remexer os baús de registros de fatos, de informações pregressas, de cousas antigas. Pois é, aqui foi uma explicação brejeira do que é um log.

Adianto que não somos o único País a discutir sobre arquivos de log em votações. A Estônia, um dos países com mais serviços governamentais eletrônicos, e-gov1, já analisou inclusive a natureza da interação social entre casais durante votações eletrônicas usando esse tipo de registro, os logs2. Também existem artigos seminais sobre os princípios da votação eletrônica em que o log é analisado3 até sobre seus aspectos forenses no intuito de desvendar eventuais vendas de votos4. No entanto, reforço que as eleições foram só um mote para comentarmos sobre esse tema. Voltemos ao essencial.

Aqui estão duas definições técnicas de log que são: 1) A primeira é própria e é oriunda da definição clássica das aulas de sistemas: "Um log é a documentação produzida automaticamente sobre eventos significativos num sistema computacional." Complemento afirmando que praticamente todos os aplicativos e sistemas de software produzem arquivos de log; 2) A segunda é uma definição dada pelo TSE (o "S" da sigla não significa "software", tampouco o "E" significa "especializado"): "Em linguagem de computação, log de dados é uma expressão utilizada para descrever o processo de registro de eventos relevantes num sistema computacional. Os logs são os registros de atividade, como o histórico, de qualquer sistema. É onde se pode localizar possíveis alterações e acessos, como um histórico de atividades desenvolvidas naquele programa"5.

Como afirmado, os arquivos de log são um registro histórico de, normalmente, todas as ocorrências num sistema computacional, incluindo eventos como transações, erros e até invasões ao software. São arquivos estruturados, ou seja, com campos específicos e bem definidos os quais geralmente incluem informações como o horário do evento, o tipo de evento e o usuário responsável.

Vejamos um exemplo. Muitos sistemas computacionais, como os sistemas hospitalares, registram os eventos ocorridos com e sobre seus profissionais usuários e pacientes. Num hospital informatizado, um log pode registrar eventos tais como: horários de visitas, ingestão de medicamentos, exames realizados, entre outros. Incluo também os equipamentos de beira de leito que monitoram sinais vitais de pacientes. Estes equipamentos podem gerar arquivos de log. É comum que estes sistemas não possam apagar registros anteriores. Em caso de erros ou enganos, um novo registro é criado comentando sobre o erro ou engano anterior. Em sistemas deste tipo, tudo é registrado num arquivo de log, o tipo de evento, o horário do evento e o responsável por ele. Por motivos de segurança, os arquivos de log recebem cuidados especiais de proteção, pois revelam o histórico completo dos acontecimentos no sistema.

Na computação, existem formas de registros de log ainda mais restritas e sofisticadas que são os sistemas de arquivos com journaling, termo que podemos traduzir para diário. Nesses sistemas, há um registro de todas as ocorrências, mesmo aquelas que ainda não foram confirmadas pelo sistema. Imagine você retirando dinheiro de um caixa eletrônico num domingo quando, repentinamente, ocorre uma falta de energia no momento em que a máquina se prepara para te entregar as notas? Os sistemas com journaling registram fatos assim e não comprometem o seu extrato e talvez ainda lamentem por esse acontecimento adverso no seu final de semana. 

Quem produz log?

Praticamente, todos os sistemas computacionais produzem arquivos de log. Por exemplo, o software mais básico que usamos, o sistema operacional, responsável por gerenciar e administrar o hardware do computador, bem como os recursos de softwares instalados, gera arquivos de log. Sim, o Windows, por exemplo, o sistema operacional que opera em mais de 95% dos computadores pessoais produz um arquivo de log que registra detalhes sobre erros no sistema do PC, tais como problemas de hardware e erros de gravação/leitura das memórias interna (RAM) e externa (discos e pendrives).

Também produzem logs, os aplicativos de celular, os sistemas das empresas de telefonia, os caixas eletrônicos, os aparelhos de GPS, os roteadores domésticos de acesso à web, as câmeras de segurança, os serviços web como email, editor de texto, planilhas de cálculo, os marcapassos cardíacos, como também alguns medidores digitais de energia elétrica, entre muitos outros equipamentos computadorizados. Sim, o monitoramento pelos arquivos de log é constante. E a minha privacidade? E a LGPD? Bem, esses assuntos podem ficar para uma próxima ocasião.

A legislação e os log

Como toda atividade diária que envolve os cidadãos, os arquivos de log também estão se moldando à legislação corrente ou, se envolvendo nela. Exemplos não faltam.

A lei estadual paulista12.228, de 11 de janeiro de 2006, dispõe sobre os estabelecimentos comerciais que colocam a disposição, mediante locação, computadores e máquinas para acesso à internet a obrigatoriedade de registrar e manter um cadastro atualizado de seus usuários incluindo a hora inicial e final de cada acesso, com a identificação do equipamento utilizado. Essa obrigatoriedade gerou a criação de softwares que são instalados nestas máquinas e que já fazem os registros regulares de atividades dos seus usuários, ou seja, criam arquivos de log. O projeto de lei federal PLS 296/08, similar à lei paulista, em tramitação desde 2008, prevê que os cadastros sejam armazenados por três anos nos estabelecimentos.

Talvez o caso jurídico mais emblemático e um dos pioneiros no uso de logs como prova criminal surgiu com a condenação de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, em março de 2010, pelo assassinato da filha de Alexandre. Mesmo antes do julgamento, na época das perícias criminais em 2008, o casal já havia sido colocado na cena do crime pelos dados coletados do rastreador por GPS do carro da família6. Numa linha semelhante, o famoso caso Carpenter x United States, julgado pela Suprema Corte Norte Americana, e abordado pelo Migalhas7, decidiu pela não aplicação da quarta emenda da Constituição dos EUA. Lembro que esta emenda proíbe a busca e apreensão sem que haja motivo razoável e mandado judicial baseado em causa provável. Recordo que o caso Carpenter x United States surgiu a partir de uma investigação pelo FBI de prática do crime de roubo. Nesta investigação o FBI usou dados sobre a localização dos aparelhos celulares dos suspeitos, bem como os registros das torres de telefonia celular.

A polêmica

Embora seja interessante a discussão técnica sobre os arquivos de log, é difícil se abster da discussão atual sobre relevância dos arquivos de log nas eleições majoritárias deste ano. Hoje discute-se os resultados dos pleitos recentes8-9. A urna deixou de ser inquestionável. Talvez para resolver os eventuais problemas das urnas eletrônicas de hoje haja mais especialistas do que os potenciais técnicos de futebol frente às partidas da seleção brasileira na Copa do Mundo do Catar.

É inegável que a urna é um sistema computacional complexo. Para muitos, é uma simples máquina que capta o número do seu título de eleitor e mais algumas dezenas que correspondem aos votos dados aos candidatos. Tudo é armazenado num "pendrive" cujo conteúdo é remetido aos tribunais eleitorais. Fim. Parece simples, mas não é. A urna é apenas uma parte de um "ecossitema" eleitoral. Esse ecossistema é dividido em vários sistemas específicos, tais como: o Gerenciador de Dados, os Aplicativos e Interface com a Urna Eletrônica (Gedai-UE); o Gerenciador de Aplicativos (GAP), os Softwares Básico da Urna Eletrônica (incluindo o sistema operacional da urna, o UENUX), ou seja, o sistema de Carga (SCUE), o sistema cerne de tudo que é o Votação (Vota), o sistema Recuperador de Dados (RED) e o Sistema de Apuração (SA). Este ecosistema ainda conta com o sistema de apoio ao sorteio de urnas para auditoria - Sorteio, Sistemas de apoio à auditoria de integridade (Votação); o Verificador Pré/Pós-Eleição (VPP); e o verificador de integridade e autenticidade de sistemas eleitorais (AVPART). Tudo isso corresponde a um sistema intrincado de milhões de linhas de código. Reforço que esse ecossistema tem apoio dos arquivos de log.

Recordo que comentei acima que vários sistemas computacionais que usamos rotineiramente também possuem históricos na forma de log. Lembro aqui de dois muito usados: os sistemas bancários (caixas eletrônicos e aplicativos) e os rastreadores de sinais de GPS. Estes últimos já usados como prova incontentável de localização e os primeiros já sedimentados quase como "registros em pedra". No entanto, por que motivos depois de 26 da implantação desta tecnologia eletrônica de votação estes dispositivos ainda são contestados?10.

A análise dos questionamentos procedimentais dos sistemas eleitorais não está no escopo deste artigo e tampouco é uma tarefa para uma pessoa resolver num curto intervalo de tempo. De qualquer forma, eu gostaria de contribuir neste tema usando duas premissas, ou dois aspectos, que podem ajudar a desvendar essa situação. São elas: a literacia digital e a governança digital.

A começar pela literacia digital. Esse termo pode ser entendido como "alfabetização digital", ou seja, refere-se à capacidade da pessoa de utilizar as ferramentas tecnológicas de modo eficaz. Neste quesito, quando vemos o Brasil no panorama global, o Brasil ocupa a 96a posição entre 134 países. Fica na frente da Namíbia por 0,1 ponto e atrás de países como Gana, Cuba, Marrocos, Botswana, Ruanda, Colômbia e segue a lista11. Dos 21 países da América do Sul e Central ocupamos a 12a posição. Não, não é falta de recursos financeiros. Considerando que o Brasil se qualifica como uma economia de rendimentos acima da média nesta região do globo, ocupamos a nona posição entre treze países. Essa falta de "alfabetização digital" não só coloca grande parte da população com pouca vantagem competitiva num universo dominado pela Computação, como coloca esse grupo de "analfabetos digitais" como irresponsivos e dominados por uma tecnologia a qual é obrigado a usar por força da lei.

O outro ponto é a governança digital. A governança digital (e-gov) é a utilização, pelo setor público, de TICs (tecnologias da informação e comunicação) para facilitar e agilizar o acesso à informação e à prestação de serviços. O e-gov também incentiva a participação social no processo de tomada de decisão, como é o caso das eleições no Brasil. No entanto, considerando os dados atuais de 2022 das Nações Unidas sobre o índice de desenvolvimento da governança eletrônica no Brasil12, o Brasil ocupa a 49a posição entre 193 países. Podemos considerar um desempenho um pouco melhor que o da literacia digital, mas mesmo assim continuamos atrás da Ucrânia, Croácia e dos nossos vizinhos argentinos. Pelos serviços digitais municipais, estaduais e federais que usamos, podemos perceber que ainda estamos na infância do e-gov, basicamente porque esses serviços digitalizaram a burocracia estatal e não conseguiu aprimorar esses serviços. Perceba, por exemplo, como os serviços digitais nos bancos fez encolher a sua presença física. Inúmeras agências já não contam mais com caixas bancários humanos, apenas caixas eletrônicos. Não foi assim que o e-gov aconteceu no Brasil. Veja as filas e a presença humana nos serviços municipais, estaduais e federais. Como exemplo, recentemente precisei apresentar uma Certidão Criminal Negativa. Acessando o site e-gov.br percebi que, como morador do estado de São Paulo, precisaria apresentar nada menos do que 8 certidões (Justiça Federal, Estadual, Eleitoral, ...)13.  Como essa, são várias outras decepções nos três níveis da Federação.

Dadas apenas estas duas constatações percebe-se que ainda temos um longo caminho pela frente para apaziguar essa diferença, essa distância entre os eleitores e a máquina de votação14. Máquina esta que vemos apenas a cada biênio. Elas não estão presentes no nosso cotidiano como os GPS e os caixas eletrônicos. Não temos intimidade. Reparem que essa é a mesma distância que temos diante da política nacional como cidadão15. Votamos e elegemos pessoas totalmente distantes da realidade nacional e as urnas representam e institucionalizam perfeitamente esse distanciamento.

All we need is log? Certamente não!

Referências bibliográficas 

1 How Estonia paved the way for e-government. Disponível aqui. Último acesso em 7 de dezembro de 2022.

2 UNT, Taavi; SOLVAK, Mihkel; VASSIL, Kristjan. Does Internet voting make elections less social? Group voting patterns in Estonian e-voting log files (2013-2015). PloS one, v. 12, n. 5, p. e0177864, 2017.

3 GRITZALIS, Dimitris A. Principles and requirements for a secure e-voting system. Computers & Security, v. 21, n. 6, p. 539-556, 2002.

4 PEISERT, Sean; BISHOP, Matt; YASINSAC, Alec. Vote selling, voter anonymity, and forensic logging of electronic voting machines. In: 2009 42nd Hawaii International Conference on System Sciences. IEEE, 2009. p. 1-10.

5 Glossário de TI - site do TSE. Disponível aqui. Último acesso em 2 de dezembro de 2022.

6 Rastreador ajuda nas investigações do caso Isabella. Disponível aqui. Último acesso em 7 de dezembro de 2022.

7 SCORSIN, Ericson M. Suprema Corte dos Estados Unidos: o debate sobre o direito à privacidade na era digital. Disponível no Migalhas. Último acesso em 7 de dezembro de 2022.

8 Eleições: Bolsonaro pede que TSE anule votos de parte das urnas. Disponível no Migalhas.  Último acesso em 7 de dezembro de 2022.

9 Moraes nega ação do PL que questiona urnas e aplica multa de R$ 22 mi. Disponível no Migalhas. Último acesso em 7 de dezembro de 2022.

10 The Big Lie Is Going Global. We Saw It in Brazil. The New York Times. 14 de novembro de 2022. Disponível aqui. Último acesso em 7 de dezembro de 2022.

11 The digital skills gaps index. Disponível aqui. Último acesso em 7 de dezembro de 2022.

12 E-Government Devopment Index. United Nations. Disponível aqui. Último acesso em 7 de dezembro de 2022.

13 Certidões criminais negativas. Portal do e-gov do Governo Federal. Disponível aqui. Último acesso em 7 de dezembro de 2022.

14 Proteção de Dados Pessoais e Eleitorais na Esfera Pública e Privada: análise segundo a LGPD. Disponível aqui. Último acesso em: 08 de dezembro de 2022.

15 Eleições municipais, LGPD e pandemia: uma combinação imprevisível. Disponível aqui. Último acesso em: 08 de dezembro de 2022.